A aventura, nos mares ainda desconhecidos e nas terras ainda ignoradas, de Fernão Mendes Pinto, relatada na Peregrinação, possui a fluência, a agilidade e o imprevisto de uma grande reportagem
Foi
tudo o que quis ser ou aquilo que as circunstâncias o obrigaram a ser:
mercador nos confins do Oriente, “a subir e descer as vias de água” no
Mar Amarelo; soldado, cortesão, mendigo e pirata. Ele próprio resumiu as
adversidades que sofreu: “treze vezes cativo e dezassete vezes vendido”. Como
se tudo isto não bastasse também foi jesuíta, mas despiu a roupeta quando
entendeu e voltou a ser um homem livre.
Era
natural de Montemor-o-Velho. Pertencia a uma família humilde. Até aos 10 ou
12 anos – confessa na Peregrinação – encontrava-se “na miséria e estreiteza
na casa do pai”. O apelo da distância incutiu-lhe o espírito da aventura.
Correndo riscos e sobressaltos, quis libertar-se de um ambiente sem futuro.
Tinha um primo na Índia. Embarcou numa caravela com destino a Setúbal. A
certa altura o barco foi aprisionado por corsários franceses.
Os passageiros, açoitados, roubados e todos nus, conseguiram chegar à praia alentejana de Melides. Esta a primeira grande provação que o atingiu, até que seguiu para a Índia. Tinha 18 anos incompletos e, de março de 1537, até 1557, confrontou-se com as maiores incertezas e os mais diversos imprevistos, quantas vezes em luta frontal com a morte.
Várias
gerações de investigadores, em arquivos e bibliotecas portuguesas e
estrangeiros, ocuparam-se da autenticidade do texto da Peregrinação,
para esclarecer localizações geográficas, fatos históricos, as relações
com a Companhia de Jesus, os contatos com São Francisco Xavier. Um fato,
porém, é notório: há saltos evidentes no texto, no decurso da sequência da
narrativa.
Até
ao fim da vida, – e mesmo depois da morte –, Fernão Mendes Pinto ficou sob a
vigilância dos jesuítas. Ao saberem que redigia a Peregrinação, a
pretexto de uma consulta, os jesuítas são acusados de retirar do manuscrito
do livro inúmeras referências de tudo que diz respeito à Companhia de Jesus.
Assim se pronunciaram, em obras, devidamente fundamentados, vários
historiadores e ensaístas, entre os quais António José Saraiva, que publicou
estudos de consulta obrigatória.
Regresso a Portugal
Ao
voltar a Portugal, Fernão Mendes Pinto passou pelos Açores, tal como se
verificou com Vasco da Gama e Luís de Camões. Esteve, possivelmente, na ilha
Terceira. Gaspar Frutuoso, nas Saudades da Terra (livro VI), foi
categórico ao afirmar que a Baía de Angra era, em pleno Atlântico, a
“universal escala do mar poente e por todo o mundo celebrada”.
Chegou
a Lisboa a 22 de setembro de 1558. Durante quatro anos e meio, procurou retomar
a vida. Malograram-se as possibilidades. Casado e com filhos, instalou-se na
margem sul do Tejo. Adquiriu uma casa no Pragal, onde escreveu muito do que
viu, e do que ouviu e lhe aconteceu do Extremo Oriente: na Abissínia, na
Arábia, em Malaca, em Java, no Pegu, em Sião, na China e no Japão, até
regressar a Portugal. Contemporâneo de Camões, nasceu antes dele, (c.
1509/1514 - 1583) e faleceu depois de Camões (1524/1525 - 1579/1580). Fernão
Mendes Pinto ultrapassou o itinerário de Camões no Oriente e as fatalidades
que o atingiram em Goa e em Moçambique. A Peregrinação faz parte das
obras indicadas como paradigmas da literatura portuguesa de viagens na
expansão marítima que se verificou nos séculos XVI e XVII, desde Os
Lusíadas até a História Trágico Marítima.
“Fascinação Irresistível”
Entre
as obras e escritores portugueses que Teixeira Gomes mais considerava, incluía
Camões: “o melhor exemplo de uma repentina e salutar renascença, de pureza de
formas e claridade de ideias e de estilo”. Embora o grande público continue a
ignorar que “foi e é o maior autor dos tempos modernos”. Mencionava depois
Fernão Mendes Pinto: “figura que, no meu espírito, sempre exerceu
fascinação irresistível, e pela qual conservo ainda hoje a mesma
admiração”.
“Não
é só pelo encanto das suas peregrinações – insistia Teixeira Gomes – mas,
sobre tudo, pela graça, e cristalina simplicidade do seu estilo, que parece de
agora, e pela riqueza e propriedade dos seus vocábulos. Ele introduziu na
nossa língua centenas de preciosos e úteis neologismos, que ficaram”.
A
Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, que se lê com a fluência, a agilidade
e o imprevisto que deparamos numa grande reportagem – é, sem dúvida, uma das
obras mais notáveis da literatura portuguesa e da literatura universal.
Encontra-se traduzida nas principais línguas europeias. Revela o homem em toda
a sua dimensão e em todas as circunstâncias. Transmite-nos, com “a
simplicidade sempre tão difícil de conseguir” o que lhe aconteceu ver no
contato direto com o mundo.
A ausência do Brasil
Fez
parte de uma das primeiras expedições portuguesas que logrou alcançar o
Japão em 1542. A chegada de portugueses ao Japão foi muito celebrada e
perdura ainda na memória cultural japonesa, também porque permitiu a
introdução das armas de fogo naquele país. O próprio Fernão Mendes Pinto
descreveu o espanto e o interesse das autoridades locais, quando viram um dos
seus companheiros disparar uma arma enquanto caçava.
Ainda
pequeno, um tio trouxe-o para Lisboa, onde o pôs ao serviço da casa de D.
Jorge de Lencastre, duque de Aveiro, filho bastardo do rei D. João II.
Manteve-se aqui durante cerca de cinco anos, dois dos quais como moço de
câmara do próprio D. Jorge.
Em
1537, partiu para a Índia, ao encontro dos seus dois irmãos. De acordo com o
que relatou na sua obra Peregrinação, foi durante uma expedição ao
mar Vermelho – em 1538 – que participou num combate naval com os otomanos,
tendo sido feito prisioneiro e vendido a um grego. Este vendeu-o por sua vez a
um judeu, que o levou para Ormuz, onde foi resgatado por portugueses.
Acompanhou
Pedro de Faria a Malaca, de onde fez o ponto de partida para as suas aventuras,
tendo percorrido, durante 21 acidentados anos, as costas da Birmânia, Sião,
arquipélago de Sunda, Molucas, China e Japão, grande parte desse tempo ao
lado do pirata António de Faria. Numa das suas viagens, conheceu São
Francisco Xavier e, influenciado pela sua personalidade, decidiu entrar para a
Companhia de Jesus e promover uma missão jesuíta no Japão.
Em
1554, depois de libertar os seus escravos, foi para o Japão como noviço da
Companhia de Jesus e como embaixador do vice-rei D. Afonso de Noronha. Esta
viagem constituiu um desencanto para ele. Desgostoso, abandonou o noviciado e
regressou a Portugal.
Com
a ajuda do ex-governador da Índia Francisco Barreto, conseguiu arranjar
documentos comprovativos dos feitos realizados pela pátria, que lhe deram
direito a uma tença, que nunca recebeu. Desiludido, foi para a Quinta de
Palença, em Almada, onde se manteve até à morte e onde escreveu, entre 1569
e 1578, a obra que nos legou, a Peregrinação. Esta só viria a ser
publicada cerca de 30 anos após a sua morte, receando-se que o original tenha
sofrido alterações, às quais não seriam alheios os jesuítas. O livro (de
700 páginas) passou também o crivo da Inquisição.
Deixou-nos
um relato tão extraordinário que, durante muito tempo, não se acreditou na
sua veracidade. De tal modo, que até se fazia um jocoso jogo de palavras com o
seu nome: “Fernão Mendes Minto” ou então “Fernão, mentes? Minto!”. A
Peregrinação, porém, tornou-se um sucesso, tendo rapidamente dezenove
edições em seis línguas.
Na
atualidade, Fernão Mendes Pinto é considerado um dos maiores escritores da
literatura portuguesa e mundial. Ele contribuiu, ao lado de Luís de Camões,
para enriquecer e fazer evoluir a língua portuguesa. A sua vida e obra têm
sido tema regular para estudos universitários, um pouco por todo o mundo, nas
áreas de História, Antropologia, Geografia, Sociologia, Semântica e
Literatura.
Existem
ruas com o seu nome em Lisboa, Porto, Montemor-o-Velho, Guimarães, Portimão,
Ovar, Freixo de Espada à Cinta e Loures, em Portugal; no Rio de Janeiro e São
Paulo, no Brasil; em Luanda (Angola), no Maputo (Moçambique) e na China. António
Valdemar – Portugal in “saojoaodel-rei.blogspot” com “Jornal de Letras”
(Texto publicado originalmente no Jornal de Letras nº
294, Rio de Janeiro, 2 de agosto, 2023)
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