Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

domingo, 28 de outubro de 2018

Brasil – Caetano Veloso: tempos sombrios estão a chegar ao meu país

No final da década de 60, a ditadura militar no Brasil deteve e prendeu muitos artistas e intelectuais pelos seus ideais políticos. Eu fui um deles. Os militaristas estão de volta



RIO DE JANEIRO - “O Brasil não é para principiantes”, dizia António Carlos Jobim. Jobim, que escreveu “A Garota de Ipanema”, foi um dos músicos mais importantes do Brasil, a quem podemos agradecer pelo facto de que os amantes da música em todos os lugares precisam de pensar duas vezes antes de classificar o pop brasileiro como “world music”.

Quando contei a um amigo americano sobre a linha do maestro, ele retorquiu: "Nenhum país é". O meu amigo americano tinha razão. De certa forma, talvez o Brasil não seja tão especial.

Neste momento, o meu país está a demonstrar que é uma nação entre outras. Como outros países do mundo, o Brasil está a enfrentar uma ameaça da extrema-direita, uma tempestade de conservadorismo populista. O nosso novo fenómeno político, Jair Bolsonaro, que deve vencer a eleição presidencial no domingo, é um ex-capitão do Exército que admira Donald Trump, mas parece mais com Rodrigo Duterte, o homem forte das Filipinas. Bolsonaro defende a venda sem restrições de armas de fogo, propõe uma presunção de autodefesa se um agente de autoridade matar um "suspeito" e declarar que um filho morto é preferível a um homossexual.

Se Bolsonaro vencer a eleição, os brasileiros podem esperar uma onda de medo e ódio. Na verdade, nós já vimos sangue. No dia 7 de outubro, um partidário de Bolsonaro esfaqueou o meu amigo Moa do Katendê, um músico e mestre de capoeira, devido a um desentendimento político no estado da Bahia. A sua morte deixou a cidade de Salvador de luto e indignação.

Recentemente, deparei-me a pensar nos anos 80. Estava a produzir discos e a tocar para multidões esgotadas, mas sabia o que precisava mudar no meu país. Naquela época, nós brasileiros estávamos a lutar por eleições livres depois de 20 anos de ditadura militar. Se alguém tivesse-me dito então que algum dia elegeríamos para a presidência pessoas como Fernando Henrique Cardoso e depois Luiz Inácio Lula da Silva, teria soado como uma ilusão. Então aconteceu. A eleição de Cardoso em 1994 e, de seguida, a de Lula em 2002 teve um enorme peso simbólico. Eles mostraram que éramos uma democracia e mudaram a forma da nossa sociedade ajudando milhões a sair da pobreza. A sociedade brasileira ganhou mais auto respeito.

Mas, apesar de todo o progresso e da aparente maturidade do país, o Brasil, a quarta maior democracia do mundo, está longe de ser sólida. Forças obscuras, de dentro e do exterior, agora parecem estar a impelir-nos para trás e para baixo.

A vida política aqui está em declínio há algum tempo - começando com uma recessão económica, depois uma série de protestos em 2013, o impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016 e um enorme escândalo de corrupção que colocou muitos políticos, incluindo Lula, na prisão. As facções de Cardoso e da Silva ficaram gravemente feridas e a extrema-direita encontrou uma oportunidade.

Muitos artistas, músicos, cineastas e pensadores viram-se num ambiente onde ideólogos reacionários, que - através de livros, sítios e artigos noticiosos - têm denegrido qualquer tentativa de superar a desigualdade ligando políticas socialmente progressistas a um tipo de pesadelo venezuelano, gerando medo que os direitos das minorias irão corroer os princípios religiosos e morais, ou simplesmente instruindo as pessoas na brutalidade através do uso sistemático de linguagem depreciativa. A ascensão de Bolsonaro como uma figura mítica cumpre as expectativas criadas por esse tipo de ataque intelectual. Não é uma troca de argumentos: aqueles que não acreditam na democracia trabalham de formas insidiosas.

As principais agências noticiosas tenderam a minimizar os perigos, trabalhando de facto para Bolsonaro descrevendo a situação como um confronto entre dois extremos: o Partido dos Trabalhadores potencialmente a levar-nos para um regime autoritário comunista, enquanto Bolsonaro lutaria contra a corrupção tornando a economia do mercado amigável. Muitos na imprensa de grande circulação ignoram intencionalmente o facto de que Lula respeitou as regras democráticas e que Bolsonaro defendeu repetidas vezes a ditadura militar dos anos 60 e 70. Na realidade, em Agosto de 2016, enquanto votava contra Dilma, Bolsonaro fez uma demonstração pública de dedicar a sua acção a Carlos Alberto Brilhante Ustra, que administrou um centro de tortura nos anos 70.

Como figura pública no Brasil, tenho o dever de tentar esclarecer estes factos. Eu sou agora um homem velho, mas era jovem nos anos 60 e 70, e tenho memória. Então eu tenho que falar.

No final dos anos 60, a junta militar deteve e prendeu muitos artistas e intelectuais pelos seus ideais políticos. Eu era um deles, junto com meu amigo e colega Gilberto Gil.

Gilberto e eu passámos uma semana numa cela conspurcada. Então, sem nenhuma explicação, fomos transferidos para outra prisão militar por dois meses. Depois disso, quatro meses de prisão domiciliária até, finalmente, o exílio, onde ficámos por dois anos e meio. Outros estudantes, escritores e jornalistas foram presos nas celas onde estávamos, mas nenhum foi torturado. Durante a noite, porém, podíamos ouvir os gritos das pessoas. Eles eram presos políticos que os militares pensavam estar ligados a grupos de resistência armada ou a jovens pobres que foram apanhados em roubos ou na venda de drogas. Esses sons nunca saíram da minha mente.

Alguns afirmam que as declarações mais atrozes de Bolsonaro são apenas posturas. De facto, ele parece muito com muitos brasileiros comuns; está a demonstrar abertamente a brutalidade superficial que muitos homens consideram que precisam de esconder. O número de mulheres que votam nele é, em cada sondagem, muito menor do que o número de homens. Para governar o Brasil, ele terá que enfrentar o Congresso, o Supremo Tribunal Federal e o facto de que as pesquisas mostram que uma grande maioria dos brasileiros dizem que a democracia é o melhor sistema político de todos.

Eu citei a frase de Jobim - “O Brasil não é para principiantes” - para trazer um toque de cor divertido ao meu ponto de vista dos tempos difíceis. O grande compositor estava sendo irónico, mas ele falou a verdade e sublinhou as particularidades do nosso país, um país gigantesco no Hemisfério Sul, racialmente miscigenado, o único país com o português como língua oficial nas Américas. Eu amo o Brasil e acredito que pode trazer novas cores para a civilização; Eu acredito que a maioria dos brasileiros também a ama.

Muitas pessoas aqui dizem que estão planeando viver no estrangeiro se o capitão vencer. Eu nunca quis morar noutro país além do Brasil. E não quero agora. Fui forçado ao exílio uma vez. Isso não vai acontecer novamente. Eu quero que minha música, a minha presença, seja uma resistência permanente a qualquer característica antidemocrática que venha de um provável governo Bolsonaro. Caetano Veloso – Brasil in “The New York Times”

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