Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

domingo, 20 de abril de 2025

Ricardo Reis e Alberto Caeiro: A revelação pública há 100 anos

A revelação pública da poesia de Ricardo Reis e de Alberto Caeiro constitui um dos centenários mais significativos da vida e da obra de Fernando Pessoa. Verificou-se através dos cinco números da revista "Athena", editada desde outubro de 1924 até junho de 1925, data exata da publicação, embora o último número inscrevesse o mês de fevereiro de 1925.


 

A poesia de Alberto Caeiro e a de Ricardo Reis, qualquer delas bem diferente uma da outra, representa uma das etapas fundamentais do modernismo em Portugal, apesar de não terem, na altura, a repercussão alcançada por Álvaro de Campos, cuja expressão contundente e provocatória se manifestou quer no “Orpheu”, em 1915, quer no “Portugal Futurista”, em 1917, quer, ainda, em cartas para os jornais a rebaixar, por exemplo, Afonso Costa, uma das personalidades políticas mais relevantes da República. 

Contudo, a revelação de Alberto Caeiro e de Ricardo Reis ficara limitada a círculos literários muito reduzidos. A opinião pública debatia-se com sucessivas crises políticas, sociais e militares que afetavam a ordem pública e provocavam uma contínua instabilidade: consecutivas quedas de governos (que chegaram a durar 24 horas), a explosão de bombas, atentados pessoais, até durante um funeral no Cemitério dos Prazeres... Tudo isto acontecia em Lisboa e repercutia-se através das outras cidades do país. 

Durante os seus trajetos em Lisboa, Fernando Pessoa anulava-se entre os transeuntes das ruas e os passageiros dos transportes públicos. Num dos testemunhos que chegaram ao nosso conhecimento, Ofélia Queiroz (1900–1991), a sua única e episódica namorada, traçou-lhe um retrato sumário: “Um senhor todo vestido de preto [...] com um chapéu de aba revirada e debruada, óculos e laço ao pescoço [...] ao andar, parecia não pisar o chão.”

Era um desconhecido. Privava apenas com os proprietários e funcionários dos escritórios onde traduzia para inglês e para francês correspondência comercial. Mantinha um convívio restrito com poucos amigos, em pequenas tertúlias instaladas em cafés e em restaurantes da Baixa, do Chiado ou do Terreiro do Paço. A vida privada de Pessoa — objeto de várias suposições, tais como homossexual, bissexual, misógino, onanista, abúlico — só chegou ao nosso conhecimento através de manuscritos dispersos no espólio e posteriormente reunidos, em 1966, num volume com o título genérico “Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação”. 

Foi neste livro que Fernando Pessoa afirmou categoricamente: “Não encontro dificuldade em definir-me: sou um temperamento feminino com uma inteligência masculina. A minha sensibilidade e os movimentos que dela procedem, e é nisso que consistem o temperamento e a sua expressão, são de mulher. As minhas faculdades de relação — a inteligência, e a vontade, que é a inteligência do impulso — são de homem.” 

Esclareceu depois Fernando Pessoa: “Reconheço sem ilusão a natureza do fenómeno. É uma inversão sexual fruste. Pára no espírito. Sempre, porém, nos momentos de meditação sobre mim, me inquietou; não tive nunca a certeza, nem a tenho ainda, de que essa disposição do temperamento não pudesse um dia descer-me ao corpo. Não digo que praticasse então a sexualidade correspondente a esse impulso; mas bastava o desejo para me humilhar.” 

Fernando Pessoa em "páginas íntimas e de auto-interpretação" 

Alberto Caeiro e Ricardo Reis completam, agora, 100 anos com os poemas incluídos na revista "Athena" e, posteriormente, na revista "Presença". Mais tarde, as edições da Ática, em volumes próprios, consagrados a Alberto Caeiro e Ricardo Reis, ambos em 1946, demonstraram a excecional dimensão de Fernando Pessoa.

"Athena": as três polémicas

Os cinco números da revista "Athena" podem explicar aspetos fundamentais do universo heteronímico de Fernando Pessoa, o aparecimento de "O Guardador de Rebanhos", de Alberto Caeiro, e das "Odes", de Ricardo Reis. A revista é dirigida por Fernando Pessoa e por Rey Vaz (1891-1955), arquiteto, caricaturista e pintor, que esteve à frente da Escola Afonso Domingues, em Lisboa. (...) 

Por outro lado, a "Athena" não se limitou à publicação de Alberto Caeiro e Ricardo Reis. Incluiu, no contexto das revistas do modernismo, a primeira colaboração efetiva de uma mulher portuguesa, Mily Possoz (1888-1968). (...) 

Pintora, aquarelista e gravadora, Mily Possoz destacou-se entre os Cinco Independentes - que afinal eram sete - ao expor na Sociedade Nacional de Belas Artes. Trata-se da primeira grande exposição que veio consolidar as novas formas de expressão na pintura. 

Mas há ainda mais duas singularidades da "Athena": a colaboração de Mário Saa (1893-1971), como poeta que, no mesmo ano, se notabilizara com a edição do livro "A Invasão dos Judeus" (1925), na sequência de outro livro seu, "Portugal Cristão-Novo ou os Judeus na República" (1921). Ambos desencadearam, na primeira metade do século XX, a polémica do antissemitismo. 

Finalmente, a colaboração de António Botto (1897-1959) na "Athena" deu lugar a outra polémica, em torno da afirmação, sem equívocos, da homossexualidade na literatura portuguesa. (...) 

Foram queimados os livros de António Boto, Raul Leal e Judith Teixeira no pátio do Governo Civil de Lisboa. As campanhas promovidas pela Liga de Ação dos Estudantes de Lisboa, empenhada na defesa da moral e dos bons costumes, contribuíram para intensificar a indignação pública. Elas eram encabeçadas por Pedro Teotónio Pereira e Marcello Caetano, ambos apoiantes em 1926 da instauração da ditadura militar e ambos, posteriormente, ministros de Salazar. 

A génese dos heterónimos 

O acolhimento dispensado a Fernando Pessoa para colaborar na revista “Presença” (1927–1940) foi, sem dúvida, da maior importância para a divulgação da sua obra ortónima e heterónima. As numerosas cartas que Pessoa dirigiu a José Régio, a João Gaspar Simões e a Adolfo Casais Monteiro documentam a origem dos heterónimos, fundamentalmente Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Sem, todavia, remontar aos primórdios, aos 6 anos, na altura em que morava em Lisboa, na Rua de São Marçal, e inventou o Chevalier de Pas, que alguns biógrafos e críticos admitem ser um duplo da figura do pai, Joaquim Seabra Pessoa, falecido a 12 de junho de 1893. 

Em 1899, Fernando Pessoa concebeu o segundo heterónimo. Vivia na África do Sul com a mãe e o padrasto e frequentava a Durban High School. Deu-lhe o nome de Alexander Search, personagem inspirado em leituras de escritores de língua inglesa, entre os quais Edgar Allan Poe, um dos autores que o acompanharam a vida inteira. Estes dois heterónimos assinalam o início do debate íntimo e profundo para romper a solidão em que mergulhara. Era a busca obsessiva de uma companhia para dialogar com os seus próprios labirintos. 

Mas é na carta dirigida a Adolfo Casais Monteiro — alguns meses antes de falecer — que Fernando Pessoa descreveu em pormenor a génese dos principais heterónimos que lhe deram renome universal: “A 8 de março de 1914 acerquei-me de uma cómoda alta e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, ‘O Guardador de Rebanhos’. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre.” 

Pessoa acrescenta: “Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir — instintiva e subconscientemente — uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. 

Múltiplo e vário, homem da cidade por excelência, Álvaro de Campos quer “sentir tudo de todas as maneiras”. Adotou uma escrita torrencial para comunicar as transformações operadas pela civilização industrial e mecânica que caracterizam o século XX. A “Ode Triunfal” e a “Ode Marítima”, ambas publicadas em 1915 no “Orpheu”, traduzem a impetuosidade do futurismo, na sua fase mais imperativa, frenética e audaciosa. 

Já a “Tabacaria”, publicada em 1927 e com o maior destaque na revista “Presença”, tem outra respiração. A sequência narrativa leva-nos a questionar a luta contra o esquecimento, o apagar da memória, a aguda perceção da vulnerabilidade da condição humana: “Nunca serei nada./ Não posso querer ser nada./ À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.” Fernando Pessoa, logo no princípio, é direto. Explora a vulgaridade do quotidiano. As palavras encontram-se carregadas de uma ansiedade latente, de um desencanto visceral, de um tédio exorbitante e desmedido. O dia seguinte é (e será sempre) mais do mesmo, a sucessão da fatalidade, da angústia, do vazio e do desespero. 

Existiam alguns textos dispersos de Bernardo Soares. Só em 1929, passados mais cinco anos, ele fará a sua estreia pública. Contudo, o “Livro do Desassossego” só virá a ser publicado em 1982. Ou seja, 47 anos depois da morte de Pessoa. Qualquer Prémio Nobel da Literatura desejaria ser o autor desta obra de génio. 

O dia triunfal nunca existiu 

Uma investigação liderada por Ivo de Castro, numa equipa que, entre outros, integrou Luís Fagundes Duarte e João Dionísio, procedeu ao estudo dos manuscritos, à análise meticulosa de cada poema, de cada verso, da obra ortónima e heterónima, e de outros documentos do espólio de Pessoa. 

Ficou demonstrado que o dia triunfal, o histórico dia 8 de março de 1914, nunca existiu, tal como Pessoa o descrevera. Era uma ficção engenhosa para a posteridade. As contradições são evidentes. A versão de Pessoa, na carta a Casais Monteiro, não corresponde àquela versão: assim chegou a esta conclusão o grupo de trabalho que procedeu, durante anos, à leitura sistemática da correspondência para diversos destinatários e de numerosos outros manuscritos depositados na Biblioteca Nacional. 

Seja como for, os poemas de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos concorreram para a universalidade de Fernando Pessoa, a partir das décadas de 50 e 60 do século XX, ao verificar-se a projeção nacional e internacional da sua obra ortónima e heterónima. 

Caeiro, o encontro com a lezíria 

A presença humana e geográfica de Alberto Caeiro tem “a nitidez de uma fotografia”. Deixou de ser uma contemplação errante e misteriosa, coberta de névoas e de brumas. Escreveu Caeiro: “Eu não tenho filosofia: tenho sentidos.../ Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é./ Mas porque a amo, e amo-a por isso,/ Porque quem ama nunca sabe o que ama/ Nem por que ama, nem o que é amar...” 

Alberto Caeiro interroga-nos olhos nos olhos. O seu mundo exterior não mergulha no vago e no indeciso. Identificou-se com todo o vigor e autenticidade ao abrir a série de poemas “O Guardador de Rebanhos”: “Minha alma é como um pastor,/ conhece o vento e o sol/ e anda pela mão das estações/ a seguir e a olhar./ Toda a paz da Natureza sem gente/ vem sentar-se a meu lado.” Ou então nos “Poemas Inconjuntos”, que completam a conceção do mundo de Alberto Caeiro: “Com filosofia não há árvores: há ideias apenas./ Há só cada um de nós, como uma cave./ Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;/ — E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,/ que nunca é o que se vê quando se abre a janela.” 

Aliás, o drama “O Marinheiro”, cuja publicação fora recusada na revista “Águia” — onde Pessoa era colaborador — e virá a ser inserido no primeiro número do “Orpheu”, já demarcava um afastamento das conceções estéticas, da visão saudosista e das linhas doutrinárias da Renascença Portuguesa definidas por Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coimbra e Jaime Cortesão. 

Portanto: Alberto Caeiro apresenta-se como um Teixeira de Pascoaes virado do avesso. Nem António Nobre, sempre a incutir lamentações nostálgicas. Caeiro é um discípulo de Cesário Verde, na frontalidade da abordagem e dissecação da realidade. 

Reis, o universo intemporal 

O outro caso específico é Ricardo Reis. Constitui a oposição ao fascínio da lezíria ribatejana de Alberto Caeiro. Acentuou a supremacia da razão em face da emoção, sem o discurso exuberante de Alberto Caeiro e, sobretudo, a vibração da “Ode Triunfal”, da “Ode Marítima” e os meandros surpreendentes da “Tabacaria”. Ricardo Reis celebra a beleza intemporal de tudo quanto vê, de tudo quanto ouve, de tudo quanto sente. Assim o confirma em vários excertos que transcrevemos das suas odes: “Vê de longe a vida./ Nunca a interrogues. Ela nada pode/ dizer-te,/ a resposta está além dos deuses.” Há um gosto sóbrio de fruir e exaltar os prazeres de cada dia: “quão breve tempo é a mais longa vida”; “gozemos o momento”; “aguardando a morte como quem a conhece”; “quer gozemos, quer não gozemos, passamos o rio”; “sem ódios, nem paixões que levantam a voz/ nem invejas que dão movimento demais aos olhos,/ Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,/ e sempre iria ter ao mar”... 

Ricardo Reis assimilou a cultura clássica que tem como paradigma as “Odes” de Horácio. Possui o sentido da medida, o ritmo e a precisão de cada verso. A pluralidade dos silêncios alerta-nos para situações que transcendem a rotina, a construção geométrica não extingue o rasgo inconfundível da sua imaginação criadora. 

A inscrição no túmulo 

Nos seus 47 anos de vida, a maior parte dos quais passados em Lisboa, Fernando Pessoa ia de rua em rua, como qualquer outro cidadão. O ambiente desgastante da cidade prolongava-se à mesa do café, nos escritórios onde trabalhava, na solidão dos quartos alugados. É melhor citar Bernardo Soares ao mencionar as rotinas que o sufocavam — “as secretárias velhas do escritório”, “a pobreza das ruas intermédias da Baixa usual” e “a náusea da quotidianidade enxovalhante da vida”... 

É certo que Fernando Pessoa manifestou a urgência da mudança. Desejava “criar um outro mundo, igual a este, mas com outra gente”. Contudo, eram tantas as impossibilidades que se limitava a exigir, numa das “Odes” de Ricardo Reis: “Para ser grande sê inteiro/ Sê todo em cada coisa./ Põe quanto és/ no mínimo que fazes.” 

Estes versos inscritos no túmulo de Fernando Pessoa, no claustro dos Jerónimos, constituem o legado do seu carácter, para honrar e cumprir o que há de mais nobre na condição humana. De resto, cada poema de Fernando Pessoa ou dos seus heterónimos consiste numa viagem à sua própria vida, às nossas vidas e a muitas outras vidas imaginadas. António Valdemar – Portugal in “Expresso” com “saojoaodel-rei.blogspot.com”

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António Valdemar - Jornalista-carteira profissional número Um e investigador;  sócio efetivo da Academia das Ciências de Lisboa e sócio correspondente português para a ABL-Academia Brasileira de Letras-cadeira nº 3


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