Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Portugal – Comunidade chinesa dá máscaras para ajudar o seu “segundo país”

Em plena pandemia da covid-19, elementos da comunidade chinesa em Portugal angariam fundos para comprar e fazer doação de máscaras. O objectivo é ajudar o “seu segundo” país, onde alguns nasceram e todos vivem, trabalham e têm a escola dos filhos

Foto: Cláudia Aranda


Em Lisboa, Nuno Min planeia ir ao final do dia distribuir máscaras cirúrgicas aos bombeiros e polícias que encontrar pelo caminho em trabalho. “Este é um tempo difícil e eu quero dar máscaras para ajudar a fazer prevenção e protecção”, explica ao Ponto Final o jovem piloto de 23 anos, a quem a pandemia da covid-19 já atrasou a entrada na carreira comercial de aviação. “Estou a fazer isto em nome individual, vou andar na rua e quando encontrar polícias, bombeiros vou dar um pacote de máscaras, cerca de 50 peças”, explica o jovem originário de Hangzhou, Zhejiang, há oito anos em Portugal. As máscaras adquiridas em lojas locais, pagou-as do seu bolso. “As que eu dou são as minhas máscaras privadas, os polícias e bombeiros são vitais, quando estão a fazer operações têm mais contacto com as pessoas, é perigoso e, por isso, comecei a ir à rua entregar”, relata. Entretanto, e até ao final do dia, Nuno Min vai estar na Rua da Palma, na zona do Martim Moniz, a organizar com outros voluntários do “Centro de serviço e de apoio à comunidade chinesa em Portugal” a distribuição de máscaras fornecidas pela Embaixada da República Popular da China em Portugal destinadas à comunidade chinesa. As embalagens com 10 peças cada são registadas antes de partilhadas. “Devemos fazer ‘scanning’ do código QR para fazer o registo na embaixada”, explica o voluntário.

É quarta-feira e completa-se uma semana desde que, a 18 de Março, foi decretado o estado de emergência para travar a pandemia da covid-19, que entrou em vigor às 00h00 do dia 19. As ruas foram ficando vazias de gente, muitas lojas e restaurantes encerraram, alguns ainda antes da implementação do confinamento obrigatório para doentes com covid-19 e recolhimento domiciliário para a generalidade da população. Foram suspensos o comércio e serviços. Há muito que a população chinesa se tornou invisível, não anda ninguém na rua, estão resguardados em casa. Os negócios fazem-se à porta fechada, por telefone ou WeChat, a rede social chinesa equivalente ao WhatsApp. A excepção à regra acontece em dia de fazer doações.

Em Vila do Conde foi com as palavras de ânimo “Força Portugal” que foram doadas 1500 máscaras certificadas e de utilização hospitalar à câmara municipal por um grupo de 24 pais e mães de crianças da comunidade chinesa daquela zona do país – a entrega fez-se na terça-feira, dia 24. “Conseguimos 1500 máscaras N95, nós comprámos estas máscaras para doar à câmara municipal de Vila do Conde, para eles distribuírem pelos hospitais”, explica Jie Zheng Chiou. Quem se encarregou de encontrar a mercadoria foi outra mãe, Jiang Xiaoqing. “Comprámos através de um intermediário, a senhora Jiang viu que um senhor tinha essas máscaras à venda, não é preço de origem, é mais caro, decidimos comprar para doar. Então mandámos mensagem para um grupo de WeChat para quem quisesse partilhar. No fim, juntámos 24 pais e mães de alunos do Colégio Luso-Internacional do Porto”, diz Jie. Metade das máscaras seguiram no mesmo dia para o Centro Hospitalar Póvoa de Varzim e Vila do Conde, adiantou ao Ponto Final a presidente da Câmara Municipal de Vila do Conde, Elisa Ferraz.

Ajudar o “segundo país”

Foto: Cláudia Aranda
Ultrapassada a angústia de poderem ver os familiares infectados na China, a propagação da covid-19 na Europa é o que mais inquieta a população chinesa, cerca de 35 mil, segundo Y Ping Chow, presidente da Liga dos Chineses em Portugal. Neste número incluem-se os que já nasceram no país e que são naturalizados portugueses, por isso os números da Liga não coincidem com as estatísticas oficiais do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), que indicam no relatório publicado online uma população residente em Portugal de 25 357 pessoas com nacionalidade chinesa. Só em Vila do Conde concentram-se cerca de dois mil cidadãos de origem chinesa, na zona industrial de Varziela onde se localiza aquele que é descrito como o maior centro empresarial do país. A autarca Elisa Ferraz explica que esta é “uma comunidade muito antiga. Temos muitos elementos que já aqui nasceram, que aqui fizeram o seu percurso de vida, que frequentam as nossas escolas, nomeadamente o ensino superior, e que também participam na vida associativa concelhia, quer cultural, quer desportiva, portanto é uma comunidade que está perfeitamente integrada na vivência deste nosso concelho”.

Depois de se unir para apoiar familiares na China durante o pico do surto da doença respiratória aguda com origem em Wuhan, na província de Hubei, a comunidade agora volta a mobilizar-se para ajudar as cidades e concelhos onde se inserem. “Esta pandemia é uma coisa muito grave, quando na China deu-se esta doença nós ajudámos os nossos familiares, comprámos máscaras aqui em Portugal para mandar para a China. Muitas comunidades chinesas fizeram isso, na Europa, nos Estados Unidos, mandaram tudo para a China. Desta vez está a acontecer a mesma coisa e nós decidimos ajudar”, explica outro pai do grupo de 24, empresário, chinês nascido e criado em Portugal, que prefere não ser identificado. “Acho que é uma preocupação para nós comunidade chinesa, Portugal é o nosso segundo país, e queremos ajudar tal como ajudámos a China. Temos que ajudar onde nós estamos, onde temos as nossas empresas e família e a escola dos nossos miúdos. Para a maior parte dos chineses que estão cá há mais anos a reforma também vai ser em Portugal, ou seja este é o nosso segundo país”, afirma o empresário com negócio no Porto.

Y Ping Chow reforça a ideia afirmando que “o chinês sente que está a viver em Portugal, o dinheiro que ganha também ganhou a trabalhar aqui, portanto sente a obrigação de contribuir e ajudar o seu segundo país”.

Conselhos que vêm da China

A comunidade chinesa reproduz em Portugal o modelo recomendado pelos familiares e autoridades na China, apesar de a Direcção-Geral de Saúde em Portugal, assim como a Organização Mundial de Saúde (OMS), desincentivarem o uso da máscara por pessoas sem sintomas, alegando não haver evidência que a sua utilização previna a infecção. Não obstante o uso da máscara não ser obrigatório, tal como o é na China continental, Macau e Hong Kong, onde se defende que a sua existência reduz a probabilidade de transmissão, a procura em Portugal aumentou, assim como a especulação de preços. Ainda na semana passada, na multicultural Rua do Benformoso, junto ao Martim Moniz, em Lisboa, vendia-se cada máscara por três euros – que baixava a dois se regateado. Nas poucas farmácias onde se consegue encontrar o escasso material o preço por unidade multiplicou nas últimas semanas, alegando aumento por parte dos fornecedores.

“Nós, agora, estamos em casa e sair só com máscara é o que os meus pais que estão na China aconselharam. Ficar em casa, porque não precisamos de fazer mais nada para evitar [a doença]. E sair com máscara. É o que se passou na China, estamos aqui e estamos a ouvir os conselhos daqueles que já passaram por isto, os meus pais ficaram em casa um mês e meio quase dois meses, eles estão em Zhejiang”, explica Jie. Também o empresário que não quer ser identificado está convencido de que o uso da máscara é essencial. “Esta é uma doença muito forte, que se ultrapassa pela prevenção, acho que toda a gente deveria usar máscara”. Mas, não há máscaras no mercado nacional que cheguem para os 10 milhões de habitantes, a distribuir diariamente, admitiu já a autoridade de saúde.

Para evitar que o coronavírus se propague, alastra-se a solidariedade. Nas redes sociais o relato de vizinhos chineses que num prédio da capital colocaram à disposição de todos solução alcoólica desinfectante e onde as crianças vão de porta em porta distribuir máscaras entusiasmou os cibernautas e já conta com quase sete mil partilhas. Nas mesmas redes sociais, partilham-se novas aplicações, onde quem precisa de apoio e os que se voluntariam para auxiliar se podem inscrever. Para não falar nos anúncios nos prédios residenciais de voluntários que oferecem ajuda aos vizinhos idosos.

Entretanto, o grupo de 24 pais e mães, agora em nome da comunidade chinesa do Porto, prepara-se para doar mais um conjunto de máscaras cirúrgicas, 15 mil, ainda esta semana. Esta não será, contudo, a última acção. “Estamos a tentar ver se continuamos, se houver máscaras no mercado, e nós soubermos, vamos comprar e continuar a doar”, assegura Jie.

Jogar majong e ver CCTV

Em tempo de pandemia, “os chineses estão em casa, a jogar majong e a ver televisão, canal CCTV 4, em chinês”, diz Y Ping Chow. A professora Ruike Wang está em casa desde finais de Fevereiro, quando encerraram as escolas destinadas a ensinar a língua chinesa aos filhos de chineses, em Vila do Conde, antes mesmo do primeiro caso de coronavírus em Portugal ser confirmado, a 2 de Março. “Já tínhamos parado as aulas, porque os pais estavam preocupados”, diz a jovem de 25 anos. Também originária de Zhejiang, a professora viveu em Pequim até vir para o Porto, há três anos, depois de estudar tradução e interpretação de chinês para português em Macau. Apesar da situação ter melhorado na China, Ruike não tenciona regressar a Pequim tão cedo, para “não correr riscos nos aviões”.

Foto: Cláudia Aranda
Em termos económicos, Y Ping Chow não tem dúvidas de que a comunidade vai sofrer um embate. Mas, fazer uso das medidas de apoio às empresas prometidas pelo Executivo português, em princípio, está fora de questão. “Há sempre impacto económico, porque nós próprios deixamos de ir ao restaurante”, diz. Por isso, “as empresas vão enfraquecer, vão sofrer muito, mas paciência, vamos aguardar, porque nós não queremos sobrecarregar mais o Governo português”.

Já em meados de Fevereiro, ainda antes do surto ter alastrado a Portugal, proprietários de lojas e restaurantes chineses queixavam-se de quebras de clientela devido ao coronavírus. Na altura, a Liga promoveu visitas a estabelecimentos por entidades portuguesas para afastar o clima de desconfiança que se havia instalado e mostrar “o apoio institucional português que a comunidade tem”, diz o seu presidente. No início do surto, associar o coronavírus a quem quer que tivesse aparência asiática tornou-se prática recorrente, vulgarizaram-se as chalaças e observações xenófobas. Instalou-se um “mal-estar”, sobretudo nas escolas, refere Y Ping Chow, afirmando que “as crianças portuguesas afastaram-se das crianças chinesas com quem brincavam, porque os pais pediam para afastarem-se, porque podiam ter o vírus”. Também a professora Ruike Wang conta que viveu um episódio pontual que lhe criou algum desconforto quando um dia estava sentada num centro comercial no Porto e um grupo de jovens lhe gritou a palavra “coronavírus”.

“Vivemos tempos estranhos e isto traz o melhor e o pior que temos em nós enquanto seres humanos”, comenta a actriz Jani Zhao, portuguesa de origem chinesa, que viveu situação idêntica, quando numa esplanada alguém fez um comentário na sua presença relacionado com o vírus. Um episódio desagradável, que Jani Zhao atribui “ao medo profundo que as pessoas têm do desconhecido”.

A 27 de Março, o novo coronavírus, responsável pela pandemia da covid-19, já havia infectado mais de meio milhão de pessoas em todo o mundo, das quais mais de 24 mil morreram, indicava o mapa interactivo da Johns Hopkins University, nos EUA.

Perante o flagelo, Jani prefere encarar a pandemia e o período de recolhimento domiciliário como oportunidades de mudança. “O mundo estava a precisar que as pessoas parassem um bocadinho, os níveis de poluição baixaram drasticamente, o céu na China está azul novamente, a minha família em Xangai diz que agora ouve os pássaros”. E, acrescenta, “apesar de ser uma tragédia e uma catástrofe acredito que seja uma oportunidade para a humanidade se redefinir, reestruturar e reorganizar, é uma altura importante para reflectirmos”. Cláudia Aranda – Portugal in “Ponto Final” - Macau

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