Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

“Prisão, flores e luar”: mergulho em busca do eu

A personagem-narradora do romance de Carla Dias desfia uma série de inquietações, nunca contradições pessoais mesquinhas, mas profundas, angustiosas – e que libertam

Poesia se faz apenas com palavras? A uma consulta de um poeta de 24 anos, no “Correio” do semanário Zycie Literackie (Vida Literária), a polonesa Prêmio Nobel Wislawa Szymborsksa (1923-2012) respondeu assim: “Não tente ser poético a qualquer preço: a poeticidade é chata, porque é sempre secundária. A poesia, como, aliás, toda a literatura, retira suas forças vitais do mundo em que vivemos, das vivências realmente vividas, das experiências realmente sofridas e dos pensamentos que nós mesmos pensamos. É preciso descrever o mundo continuamente, porque, afinal, ele não é o mesmo de tempos atrás”. [Correio literário ou como se tornar (ou não) um escritor, tradução de Eneida Favre, Belo Horizonte, Editora Âyiné, 2024, p. 37].

No recente Prisão, flores e luar (Sinete, 2024), Carla Dias [Santo André, 1970; vive em São Paulo] deixa claro que conhece bem o que disse a poeta polonesa. Autora de oito livros e artista de múltiplos talentos, Carla buscou o alto teor de poesia desse romance curto, denso, na experiência de vida. Essa é a fonte do vigor poético que a escritora expressa, num grande mergulho em busca do eu, por meio de sua personagem-narradora, quase um alter ego da autora.
 

Trata-se de uma narrativa bonita (igualmente, a edição gráfica, da própria escritora), viva, forte, inquietante e, acima de tudo, que traz esperança, defende a vida, o amor entre os seres humanos. Carla Dias dribla com maestria a tentação do clichê romântico do ponto de ruptura, não é nem um pouco niilista. Sem pieguismo, ela busca e encontra saída, alento, esperança (“O que seria de nós sem a tal esperança?”, p. 19). A instabilidade existencial da narradora não traz desordem mental ou desalento sem alternativa. É firme em sua lucidez, nunca vacilante.

Essa atmosfera do romance e a determinação da personagem-narradora têm sua raiz na personalidade da autora. Além de poeta e prosadora, a escritora é fotógrafa (com olhar de cineasta) e baterista – a música pontua o livro (“Com a música eu me comporto melhor até comigo”, p. 15). Também editora, domina e executa todas as tarefas da produção e divulgação de um livro, desde a preparação do texto, diagramação, capa, orelha, sites, redes sociais etc. Para essa profissional inquieta, incansável, não há trabalho impossível. Sua personalidade forte, plena de vida, ecoa em Prisão, flores e luar, com poesia desde o próprio título e na abertura de capítulos.

Eis o trecho mais lírico do romance, o parágrafo inicial da página 93 (bastaria dividi-lo em versos para se tornar um poema): “Abri janelas, portas, frestas e sorrisos. Abri tréguas, suspeitas, rezas. Abri um vinho. Bebi do corpo, do sonho, do hálito e das palavras. Bebi do gesto, do medo, do vento, bebi fantasmas. Olhei montanhas, o sol, a lua e olhei nos olhos. Olhei figuras, castas, impuras, olhei os mortos. Criei dilemas, filmes, loucuras e confusão. Criei poemas, asas, música, criei paixão. Pintei o rosto, o fogo, as formas. Pintei encontro, desencontro, e as horas. Senti vazio, eco, frio e senti medo. Senti virtude, dom, instinto, senti segredo. Feri o homem, o bicho, o frágil e feri o tempo. Feri quem fere, forte, opaco, feri o zelo. Amei em silêncio, pássaros, atos e amei o mundo. Amei delírios, épocas, acasos e o absurdo”.

A autora e a narradora (em alguns momentos, pode-se dizer o eu lírico, graças à densidade poética do texto, como o excerto transcrito acima e vários outros trechos do romance) sabem que a sua essência está no que viram, aprenderam, viveram e construíram (esses verbos podem ser conjugados no presente) ao longo da existência. “Conhece-te a ti próprio” é o mais célebre dos provérbios délficos, lembra Oliver Taplin em Fogo grego (tradução de Ana Maria Pires et alii. Lisboa, Gravida, 1999, p. 2). “Quem sou?” sempre foi e será uma questão filosófica do ser humano, uma interrogação metafísica, busca da essência, da identidade, o que distingue um dos outros. Essa preocupação com o ser (imutável), não como ter (algo transitório), está presente na narrativa de Carla Dias. Para Georg Lukács, “o romance é a forma da aventura do valor próprio da interioridade”. Ele diz ainda em A teoria do romance (tradução de José Marcos Mariani de Macedo, São Paulo, Duas Cidades/Editora 34, 2000, p. 91): “... seu conteúdo é a história da alma que sai a campo para conhecer a si mesma, que busca aventuras para por elas ser provada e, pondo-se à prova, encontrar a sua própria essência”.

A narradora de Prisão, flores e luar desfia uma série de inquietações (“A gente nunca sabe direito da gente”, p. 74), nunca contradições pessoais mesquinhas, mas profundas, angustiosas – e que libertam. Questiona tudo, sem tormento ou desespero; ao contrário, com esperança, fé no encontro, na solução. Inicialmente reclusa no pequeno apartamento, a personagem-narradora inquieta-se e inquieta o leitor. Só para começar: “A felicidade é uma libertina e, vez em quando, entrega-se à revelia” (p. 12). Sensível, ligada à dor alheia, a narradora pergunta: “Tudo bem se eu chorar? É que vi acontecimento de guerra na televisão” (p. 17). Num monólogo que se torna diálogo com um eu que se desdobra, a narradora se questiona (“Mas quem sou eu para dizer a você o que importa?”, p. 13) e, mais adiante, encontra uma interlocutora que pode ser a própria sombra, nomeada Cora (“É feito ser um anjo infernal”, p. 67. “A dualidade.”). Ela expõe a solidão de um modo singular: “O amor é o copo sobre a mesa” (p. 19). 

A dualidade, oscilação do estado de alma, marca o romance de Carla Dias, como nos trechos seguintes. “Acordo à noite e sinto uma arrebatadora falta vazia de definição. Recorro à música para aliviar saudade, escorrego a caneta no papel, o sentimento se espalha” (p. 23). “Pedir paciência é sempre véspera de confusão” (p. 32). “Estou pétala. As pétalas não resistem à queda. Eu resisto, pois creio não ser a minha vez, já que pouco sei; tenho muito a aprender” (p. 36). “Preciso sobreviver para aprender a viver” (p. 38). “Duas taças de vinho e um rodopio pela sala. Meu coração partido se debruça na janela da esperança” (p. 42). “Sou pássaro. Tenho os olhos atentos ao acontecimento abaixo de mim. Enquanto sobrevoo a terra sinto vertigens, lânguido corpo de pássaro a se perder entre nuvens” (p. 45). “Minha matéria precisa de torpor” (p. 51). “Como não tentar ser feliz?” (p. 52). “Porque o amor é um superar constante” (p. 55). “Sabe a sensação de se tornar explosão? Eles explodiam e se transformavam em planetas independentes” (p. 60). “E eu chego com a ideia de trocar o medo por uma flor, assumidamente partidária da esperança” (p. 60). “Já imaginou a imensidão do que somos?” (p. 64).

Os exemplos são inúmeros. Só mais alguns. A narradora dialoga com seus demônios, mas para se livrar deles: “[Uma música] Invoca meus demônios, e eu abrigo muitos deles. São eles a me induzirem a girar o corpo, movimento espontâneo, em busca de proteção” (p. 74). Vejam que beleza: “Sairei por aí brilhando a luz de um pecado que é quase prece” (p. 77). “Sou hóspede da vida, às vezes, sou vulcão, fogo alastrando e tomando conta, ainda assim: só” (p. 79). “A madrugada me levou para um passeio interno. Pensei que jamais voltaria de lá” (p. 94). “Ser é trabalho árduo” (p. 107).

O leitor há de perceber em Prisão, flores e luar evocações ou ressonâncias de Clarice Lispector, Fernando Pessoa e outros autores consagrados. No entanto, são ecos quase em surdina, livres, renovados por Carla Dias, mesmo porque, ainda que a alma humana tenha halos permanentes, o mundo se renova, agora é outro, como observou Wislawa Szymborsksa, e todo grande escritor sabe. Hugo Almeida - Brasil

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Prisão, flores e luar, romance de Carla Dias. São Paulo: Editora Sinete, 2024, 124 páginas, R$ 55,00. https://www.sineteeditora.com.br/ Site da escritora: https://carladias.com.br/

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Hugo Almeida, jornalista e escritor, é doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP). Autor, entre outros livros, de Vale das ameixas (romance) A voz dos sinos, ensaio livre sobre o sagrado, a mulher e o amor na obra de Osman Lins, ambos publicados em 2024 pela Sinete. Almeida participa da coletânea Minas Gerais – Contos e confidências, organizada por Luísa Coelho (Gato Bravo, Lisboa, 2024): Site do autor: https://hugoalmeidaescritor.com.br


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