Revelação do mecanismo antes dos sintomas e diagnóstico abre caminho para a identificação de um biomarcador capaz de prever e de prevenir a doença
Uma
equipa internacional de investigadores, liderada por Salomé Pinho, do Instituto
de Investigação e Inovação em Saúde da Universidade do Porto (i3S), descobriu
uma assinatura única de glicosilação em anticorpos (moléculas do sistema
imunitário) que é detetável no sangue muitos anos antes do desenvolvimento de
sintomas e do diagnóstico clínico de Doença de Crohn.
A
identificação desta glicoforma alterada de anticorpos poderá ser responsável
pelo início da inflamação até seis anos antes do diagnóstico e da
sintomatologia. A revelação deste mecanismo numa fase pré-clínica (antes dos
sintomas e diagnóstico) abre caminho para a identificação de um biomarcador
capaz de prever o início da doença e de a prevenir.
Neste
trabalho pioneiro, cujos resultados foram publicados na prestigiada revista
científica Nature Immunology, a equipa
estudou pela primeira vez o que acontece na transição da saúde para a doença, e
em concreto para a inflamação intestinal que caracteriza os doentes com Doença
de Crohn. Para isso, centrou-se especificamente na caracterização da composição
de glicanos (açúcares complexos) que modificam os anticorpos que temos em
circulação.
Em
colaboração com o Hospital Mount Sinai, Nova Iorque, EUA e com o Departamento
de Defesa dos EUA, foram analisados milhares de soros provenientes de amostras
de sangue de indivíduos (militares) numa fase pré-clínica, até seis anos antes
do desenvolvimento e diagnóstico de Doença de Crohn.
As
amostras foram recolhidas em quatro momentos temporais (um mais próximo do
diagnóstico e os outros dois, quatro e seis anos antes do diagnóstico).
Foram
também analisadas amostras de sangue de doentes com a doença já estabelecida,
assim como de familiares em primeiro grau de doentes com Doença de Crohn e de
indivíduos saudáveis, obtidas em colaboração com o serviço de Gastroenterologia
do Centro Hospitalar Universitário de Santo António no Porto e com o serviço de
Gastroenterologia do Hospital Beatriz Ângelo e do Hospital da Luz em Lisboa.
Em
colaboração com investigadores da Croácia, foi feita a caracterização do perfil
de glicosilação de anticorpos em circulação, com recurso a tecnologia avançada.
Os investigadores encontraram uma alteração única na composição de glicanos
desses anticorpos circulantes, tendo verificado que essa alteração é detetável
até seis anos antes do diagnóstico e que se mantém constante durante todo o
período que antecede os sintomas clínicos.
Esta
descoberta pioneira abre assim portas para a identificação de um biomarcador
não-invasivo capaz de prever o diagnóstico de Doença de Crohn e, desta forma,
estratificar o risco de desenvolver a doença.
Descoberta “abre portas” para a prevenção da doença
A
equipa descobriu também que os anticorpos ASCA, que normalmente são detetados
em 40 a 60 por cento dos doentes com Doença de Crohn e que se pensava não terem
influência no desenvolvimento da doença, “têm uma glicoforma que é patogénica e
que começa a montar a resposta inflamatória muitos anos antes do diagnóstico da
doença”, adianta Salomé Pinho, líder do grupo “Immunology, Cancer &
GlycoMedicine” e professora afiliada da Faculdade de Medicina (FMUP) e do
Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS) da U.Porto.
“Demonstrámos
que esta glicoforma de ASCA, detetada na fase pré-clínica, desencadeia uma
resposta do sistema imune pró-inflamatória através da ativação e reprogramação
de células imunes inatas, tais como células dendríticas e células NK”. Isto
significa, sublinha Joana Gaifem, uma das primeiras autoras do estudo e
investigadora júnior no grupo do i3S, “que identificámos uma potencial causa ou
uma das causas desta doença assim como um potencial alvo de futuras abordagens
para a prevenção da Doença de Crohn”.
Esta
descoberta “de um potencial novo biomarcador preditivo da Doença de Crohn
revela um novo alvo que poderá abrir portas para a prevenção da doença”,
acrescenta Cláudia Rodrigues, coprimeira autora do artigo e estudante do
Programa Doutoral em Ciências Biomédicas do ICBAS, a fazer investigação no i3S.
Ensaios clínicos arrancam já em 2025
No
âmbito do projeto europeu GlycanTrigger, também liderado por Salomé Pinho, e
com base nestas descobertas, a equipa deste consórcio, da qual faz parte a
gastroenterologista Joana Torres, do Hospital da Luz-Lisboa, e o
gastroenterologista Jean-Frederic Colombel, do Mount Sinai-Nova Iorque, vai
arrancar, já em 2025, com um ensaio clínico com doentes com a Doença de Crohn
que removeram cirurgicamente parte do intestino.
“Vamos
fazer uma intervenção no pós-cirurgia (após remoção do segmento de intestino
que se encontra doente) que visa modular a glicosilação, assim atuando num dos
potenciais mecanismos primários da doença, e tentar perceber qual o impacto a
nível do sistema imunitário do intestino e do microbioma intestinal”, explica
Joana Torres. O recrutamento de doentes vai começar naquele hospital no início
de 2025.
Entretanto,
acrescenta Salomé Pinho, “como as amostras cedidas pelo Departamento de Defesa
dos EUA se restringem a militares jovens, predominantemente do sexo masculino e
com atividade militar, o próximo passo será validar o desempenho preditivo do
glicomarcador noutros estudos”.
Sobre a Doença de Crohn
A
doença de Crohn é uma doença intestinal inflamatória crónica e imune-mediada
que causa inflamação do trato digestivo. Os sintomas comuns são diarreia, dor
abdominal, fadiga, perda de peso, entre outros. Pode afetar todos os grupos
etários, mas tipicamente é diagnosticada em adolescentes e adultos jovens.
Nos
últimos anos, em Portugal e em todo o mundo, tem-se assistido a uma incidência
crescente desta patologia que anda não tem cura. Existem, contudo, vários
tratamentos disponíveis que têm como objetivo travar a resposta inflamatória
exacerbada que caracteriza esta patologia.
Em
muitos casos, consegue-se controlar a doença, evitando que as pessoas tenham
crises durante longas temporadas. Contudo, continua a ser uma doença com um
enorme impacto na qualidade de vida dos doentes, com uma proporção de
indivíduos a não responder aos tratamentos atualmente disponíveis e a
necessitar de cirurgia, o que realça a importância de se investigarem novos
paradigmas, nomeadamente o de diagnosticar precocemente a doença e prevenir o
seu início ou as suas complicações. Universidade do Porto - Portugal
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