Bissau - O investigador guineense, Sumaila Jaló, participou na mesa redonda sobre Cabral e a Juventude: um debate inter-geracional
O
estudante em doutoramento no Centro de Estudos Sociais da Universidade de
Coimbra afirma ser preciso "resgatar o pensamento revolucionário de
Amílcar Cabral - enquanto ideologia progressista - para as lutas de hoje".
RFI: Amílcar Cabral teve uma relação profunda com a
juventude, tanto no contexto do movimento de libertação como em termos de
inspiração política e ideológica. Esta relação entre o legado de Cabral e a
juventude ainda existe?
Sumaila
Jaló: Existe há uma transdimensão em que podemos falar dessa relação de Cabral
com a juventude. Uma primeira dimensão que é a dimensão da ausência, que
consiste nas tentativas de apagamento do legado da luta e da acção
revolucionária de Amílcar Cabral e dos seus camaradas no espaço público, tanto
no sistema educativo como no espaço dos partidos políticos para a mobilização
pública. No próprio PAIGC que ele ajudou a fundar que, a partir do golpe de 14
de Novembro de 1980, se desligou com a sua base ideológica fundadora, pan
africanista, socialista e que pugna pelo progresso do povo realizado pela
mobilização do próprio povo, mas também uma tentativa muito actual de certos
poderes políticos identificados no caso da Guiné-Bissau, que decretam a celebração
do Dia da Independência a 16 de Novembro, dia das Forças Armadas e não 24 de
Setembro, que é o dia da proclamação unilateral histórica da independência da
Guiné-Bissau. Uma tentativa de militarização do poder, mas também, muito
recentemente, através de um despacho que impede a fixação de cartazes no espaço
público para a celebração do centenário. Primeiro esta ausência, depois a
presença na cultura em toda a sua dimensão na produção cultural. A figura de
Cabral e o legado da luta aparece e a partir da produção cultural que a
juventude se conecta com o legado de Amílcar Cabral. Através disso, os
movimentos sociais que, tanto na Guiné-Bissau como em Cabo Verde, assim como
nas suas diásporas, se mobilizam com base no pensamento revolucionário de
Amílcar Cabral, para a transformação. Finalmente, há uma dinâmica de resgate da
figura de Cabral.
O
que eu acredito é que essa dinâmica de resgate não seja no sentido de salvar o
pensamento do Cabral, porque isso está salvo, 51 anos depois do seu
assassinato, nós ainda falamos de Cabral e celebramos Cabral e o seu
pensamento. O que nós precisamos é um resgate para o pensamento revolucionário
de Cabral enquanto ideologia progressista e de transformação da realidade que
nos sirva para as lutas de hoje, as lutas para a emancipação do povo guineense
e cabo-verdiano, mas sobretudo para a construção de uma nova vida na paz e na
dignidade em Cabo Verde, na Guiné-Bissau, em África e para toda a Humanidade.
E porque é que acontece esse distanciamento entre as
classes políticas, com a sociedade civil e este legado de Amílcar Cabral?
Este
desligar de entidades políticas, particularmente partidos políticos com as
bases populares que mobilizam deu-se primeiro, como o próprio PAIGC, que é um
movimento revolucionário de massas na sua origem. Mas a transição de sistema de
partido único para a liberalização económica e depois para a abertura política.
Não estou a dizer que estas aberturas não deviam ter acontecido, mas não são
motivos para um partido dessa dimensão esvaziar do seu espaço o pensamento
comprometido com a transformação dessas massas populares. O que aconteceu foi o
aburguesamento das lideranças desses partidos políticos que repeliu a sua
relação com as massas populares e essa desconexão começou a gerar desconfianças
desse próprio povo que alimentou o surgimento do PAIGC com esta estrutura. Esta
dinâmica se alastrou para todos os outros partidos criados com a abertura
democrática: Em vez de o partido ser uma instituição ao serviço da população, o
partido passou a transformar-se em entidades que se servem do erário público
produzido pela população e pela massa popular.
Amílcar Cabral defendia a educação política dos jovens.
Acreditava que o futuro da África dependia da formação das novas gerações
conscientes e preparadas, muitos jovens foram educados pela visão de autodeterminação
e igualdade. O que é que aconteceu a estes jovens? Onde é que estão estes
jovens hoje? E o que é que fizeram pelo país?
Há
duas questões aqui: Quando o PAIGC e o resto dos outros partidos políticos se
transformaram em espécies de castas para incorporar interesses pessoais e não
interesses colectivos, quadros até formados por esses partidos, na linha
progressista de servir para a transformação da realidade, para o benefício de
todos. Quadros que não se inscreveram na lógica de instrumentalização do
partido para agendas particulares tinham duas possibilidades ou continuar e
acomodar-se na destruição da base ideológica fundadora do PAIGC, por um lado,
dos outros partidos que queriam ser alternativas ou então vão fora do partido
político. O que acontece? Por um lado, há uma fuga de quadros, aqueles que
recusaram acomodar se no sistema para não ser cúmplice da destruição do nosso
país, na Guiné-Bissau, também em Cabo Verde encontrou outros refúgios fora dos
nossos países.
Mas
há aqueles outros que se acomodaram nos espaços das ONG ou arranjaram outra
forma de sobrevivência, mais uma vez, para não fazerem parte do sistema a
destruir o país. Só que nenhuma dessas opções funciona como alternativa a esses
lugares de mobilização política. O que nós devemos começar a pensar em fazer é criar
alternativas de todas as dimensões, tanto no espaço político quanto no espaço
social e de mobilização cultural. Três dimensões fundamentais para construção
de qualquer sociedade no mundo, disputarmos esses espaços, afirmarmos nos
nesses espaços com novas agendas viradas para o progresso. O progresso nada
mais é do que trabalhar colectivamente, consentir sacrifícios que são
indispensáveis, consentir para a melhoria das nossas vidas. Porque a luta de
libertação, o legado de Amílcar Cabral e dos seus companheiros, se continuar só
no domínio teórico e não for concretizado no domínio da transformação da vida
das populações, não serve para nada que não seja teoria e que não encontra a
prática que transforme a realidade das nossas mobilizações.
Este legado de Amílcar Cabral foi esquecido pelos nossos
representantes?
Foi.
Primeiro porque o pensamento de Amílcar Cabral é sólido e é um pensamento que
não dialoga bem com demagogia, que não dialoga bem com traição, que não dialoga
bem com corrupção, que não dialoga bem como mentir ao povo. É um legado assente
em princípios éticos, morais e de compromisso patriótico que as actuais
lideranças políticas não têm na sua gramática política. Por isso, não estão
interessados em conhecer Amílcar Cabral.
Amílcar
Cabral e o seu pensamento inquietam. Amílcar Cabral e o seu pensamento
fazem-nos perguntar onde estamos e por onde vamos caminhando. Lideranças
políticas interessadas em construir castas, em consolidar burguesias para a
captura do erário público, para interesses localizados e não colectivos, nunca
estarão interessados na afirmação e consolidação do pensamento cabralista nas
nossas sociedades. Por isso é que esse pensamento é repelido através de
decretos e através de despachos que o pretendem apagar do espaço público. Mas
isso é impossível porque, mesmo que existam mais do que esses decretos, o
pensamento de Cabral que já se consolidou 50 anos na academia, na cultura, nos
movimentos sociais e mesmo nesses partidos políticos, apesar de uma lógica
instrumentalizada e demagoga.
Amílcar Cabral tornou-se um símbolo de luta contra o
colonialismo e a opressão. Nos últimos 50 anos surgiram líderes que foram ou
são vistos hoje como mentores ou guias pelos mais jovens?
Não
têm surgido muitos. Há líderes que nós podemos reconhecer que tenham feito
esforço em Cabo Verde e também para a África. Nós devemos reconhecer a força, a
resistência e a longevidade do compromisso patriótico do comandante Pedro Pires
é um exemplo. Apesar de todas as dificuldades com que se confrontou no contexto
em que foi primeiro-ministro de Cabo Verde e Presidente da República, manteve o
vínculo com os valores da luta de construir o bem-estar dos nossos povos.
Ensinou-nos a pensar na nossa unidade, que é um legado histórico, mesmo que
essa unidade não exista numa dimensão binacional.
No
caso da Guiné-Bissau, nós tivemos Presidentes da República, como o Luís Cabral,
que herdou uma linha, se esforçou a afirmar nos primeiros anos da
independência. Depois houve três Presidentes da República, a quais eu tenho
muito respeito na Guiné-Bissau.
Malam
Bacai Sanhá pelo seu carácter. Em tempos em que tipos de liderança que tivemos
na altura não só se divorciaram destes princípios éticos e morais, mas se
desafiaram com o próprio povo. Se nós olharmos para todos os Presidentes da
República na Guiné-Bissau, podemos olhar para esta figura de Malam Bacai Sanhá
como aquele que não teve muito tempo na Presidência, mas que nos ensinou a
construir paz, estabilidade, mesmo que seja a fogo e ferro. Temos o Serifo
Nhamadjo e o Henrique Rosa, que mesmo no caso do Serifo Nhamadjo, tendo sido
Presidente num contexto de golpe de Estado e tenha havido muitas interpretações
dessa altura. A forma como foi Presidente da República. Estamos a falar de um Presidente que chegou à
Presidência da República através de um golpe de Estado, mas que teve um
desempenho ético e moral de larga dimensão, melhor que a situação actual. São
exemplos que não são perfeitos, exemplos criticáveis, mas exemplos aos quais
nós podemos olhar para fazer melhor, sobretudo melhor, no sentido que eles não
conseguiram, no sentido de recuperar o pensamento cabralista enquanto base
ideológica para olhar para a realidade, compreender a realidade e transformar a
realidade para o nosso bem-estar. In “Agência de Notícias da Guiné” – Guiné-Bissau com “RFI”
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