A
Espanha é, para muitos portugueses (não direi a maioria, porque não sei quantos
são), um território imenso que devemos passar por cima, de avião — ou então de
carro, bem depressa, quase sem parar, até chegar a França e então respirar
Uma
Espanha escrita em português?
Para esses portugueses
distraídos — os mesmos que descobriram «o problema catalão» há duas semanas e
julgam que tudo começou no mês passado — há muitas surpresas escondidas para lá
da fronteira.
Por exemplo: há um mistério
escondido no mapa de Espanha. Aliás, nem será tanto no mapa, mas antes na lista
completa de aldeias, vilas e cidades espanholas. Se abrirmos essa lista, vemos
que mais de metade dos nomes não estão em espanhol, mas antes numa estranha
língua muito parecida com o português. Alguns exemplos: «O Barco», «A Guarda»,
«Gondomar», «O Porto de Corme», «A Lagoa», «Cabana Moura», «O Reino», «Os
Milagres do Medo»... Lembro que isto são nomes que aparecem exactamente assim
nos mapas de Espanha...
Também aparecem muitos nomes
que soam um pouco portugueses, mas têm o famoso «ñ» ou um excesso de «x» ou
«-ción»: «A Toxa», «O Carballiño», «A Estación», «Os Baños» e a famosíssima «A
Coruña»...
Mais de metade, dizia eu... E
isto porque mais de metade das terras de Espanha estão na Galiza, que se divide
em tantas aldeias, vilas e cidades que acaba por monopolizar a toponímia dos
nossos vizinhos.
Todos
dizemos palavrões galegos
Ora, a Galiza é qualquer coisa
que nós sabemos que está ali, mesmo em cima de nós, mas a que ligamos pouco. É
normal: nós somos distraídos no que toca à Espanha. Afinal, os tais portugueses
de que falava há pouco sofrem de uma estranha cegueira gustativa que os leva a
dizer coisas como «em Espanha come-se mal», o que deixa qualquer pessoa com
duas papilas na boca a coçar a cabeça sem perceber onde foram buscar tal ideia.
É o que dá provar a gastronomia do reino vizinho na perspectiva das estações de
serviço a caminho da França... Basta ir à Galiza para desfazer essa ilusão...
Mas as surpresas vão muito
para lá da gastronomia. Temos também um território e um clima muito semelhantes
ao território e ao clima do Norte do nosso país — não é por acaso que os fogos
da semana passada afligiram o Norte e a Galiza (embora o estrago tenha sido bem
maior aqui a sul do Minho).
Depois, temos a língua... Nas
últimas décadas, o uso do galego tem diminuído, mas ainda é a língua materna de
milhões de galegos. Ora, os falantes de galego, separados dos portugueses por
uma fronteira com 800 anos, ainda falam qualquer coisa de muito próximo da
nossa própria língua — muitos afirmam mesmo que o português e o galego são dois
nomes para a mesma língua e, nessa afirmação surpreendente, são secundados por
muitos linguistas.
Na escrita, é fácil perceber
essa proximidade. É verdade que os galegos têm uma relação um pouco difícil com
a versão escrita da sua língua — afinal, existem duas ortografias. A ortografia
oficial tem o «ñ» e o «ll» que associamos ao espanhol, enquanto uma minoria
significativa de galegos usa a ortografia chamada «reintegracionista», muito
mais próxima do português. Nós, portugueses, não temos de entrar nessas
guerras. Basta-nos saber que o galego escrito, mesmo na ortografia oficial,
está tão próximo do português que arrepia.
Já na fala, é mais complicado.
Nós confundimos facilmente o galego com o espanhol — isto porque estamos pouco
habituados a ouvir o sotaque galego, que usa uns quantos sons que associamos ao
espanhol. Assim, os nossos ouvidos pouco treinados enfiam o que ouvem no saco
do castelhano.
Se prestarmos atenção, no
entanto, lá encontramos na boca dos galegos os nossos verbos, os nossos artigos
— e os nossos palavrões.
Sim, peçam a um galego para
dizer palavrões e vão ouvir palavras à antiga portuguesa! Não posso reproduzi-las
agora porque o Sapo 24 é para toda a família.
A
saudade também é galega?
Mais surpresas: os galegos
também usam a palavra «saudade» — e também por lá têm pessoas que se entretêm a
pensar se não será essa palavra especialmente importante para descrever a alma
galega. Sim: esses mitos crescem em todo o lado.
E a História... Todos os povos
esquecem-se de muita coisa. Nós, portugueses, esquecemo-nos da Galiza. Houve
episódios de que raramente ouvimos falar, como o ano em que os galegos
aclamaram El-Rei D. Fernando de Portugal como rei — e ele aceitou, entrando na
Galiza numa invasão que foi muito bem-vinda. Partilhámos o rei durante dois
anos, mas entretanto as guerras da época lá deram mais uma guinada e D.
Fernando desistiu de ser rei a norte do Minho. Já bastavam as confusões a
sul...
Perder
o medo de falar português
Quando converso com galegos,
muitos contam estranhas histórias em que falam em galego com portugueses e
estes respondem em espanhol, julgando estar a fazer um favor ao turista. Na
verdade, com os galegos, nós podemos mesmo falar português: eles percebem e agradecem.
Sim, existem milhões de
cidadãos espanhóis que querem que falemos português com eles e que vivem em
terras com nomes tão nossos como «Os Milagres do Medo» (na Província de
Ourense).
Falemos com os galegos sem
medo. Depois do choque inicial, é como chegar ao pé dum vizinho com quem nunca
falámos e começar a conversar — na nossa língua, pois então.
(Se alguém quiser ler mais
sobre a Galiza, pode começar por Outra idea de Galicia, de Miguel Anxo Murado,
que está escrito em galego e pode ser lido sem dificuldades por qualquer
português. Um livro mais do que recomendável.) Marco Neves – Portugal in “24 Sapo”
Marco
Neves - É tradutor, professor e autor do livro A Incrível História
Secreta da Língua Portuguesa e do romance de aventuras A Baleia Que Engoliu Um
Espanhol. Escreve no blogue Certas Palavras.
Sem comentários:
Enviar um comentário