Demarchi,
o artesão do verso antropofágico
I
Datas
redondas exigem balanços como forma de se perpetuar em papel a vida passada por
entre os dedos ou, neste caso, por entre versos. Em tempos de Internet, nada
disso é possível porque sites, blogs e facebooks criados há alguns anos
costumam se desmanchar no ar ao sabor dos provedores e das circunstâncias. Sem
contar que os responsáveis por revistas eletrônicas também envelhecem e morrem
e com eles se vão essas aventuras intelectuais.
Com
o papel, não. A perenidade é maior, embora não seja eterna, ainda mais em
países úmidos em que o mofo, o bolor e a traça tudo devoram. Tivesse Jesus
Cristo escolhido para apóstolos doze analfabetos – e não homens letrados, entre
eles até publicanos, como Mateus, por exemplo, que sabia contar e anotar a
coleta dos impostos –, hoje, por certo, ninguém saberia o que teria dito no
Monte das Bem-Aventuranças para mais de cinco mil fieis, sem alto-falantes nem
gravadores, valendo-se apenas da sonoridade natural da montanha à beira do Mar
da Galileia. Basta dizer isto para se ressaltar a importância do papel e do pergaminho
em que se registraram os manuscritos em comparação com os atuais e etéreos
meios digitais.
Mas
a que vêm estas reflexões de quem, um dia, descobriu na Ilha de Rhodes que os
gregos antigos sabiam como construir um teatro de arena em que o ator podia
falar e ser ouvido por toda a plateia, igualmente sem dispor de alto-falantes?
Vêm a propósito da edição do livro Pirão
de Sereia, do poeta Ademar Demarchi, que marca os 50 anos de vida de seu
autor e 30 de lida com poesia, assinalados em 2010. E que, como denuncia o
próprio título, constitui também uma homenagem à Antropofagia, movimento
artístico brasileiro da década de 1920, fundado e teorizado pelo poeta paulista
Oswald de Andrade (1890-1954), que costumava ironizar
em suas obras a submissão da elite brasileira aos países desenvolvidos e
propunha, em contrapartida, a deglutição cultural das técnicas importadas para
reelaborá-las com autonomia, convertendo-as em produto de exportação.
Entendia
Andrade que era preciso “devorar” o estrangeiro para adquirir suas qualidades
espirituais e produzir algo novo – isso é o que faz Ademir Demarchi em Pirão de Sereia, seu 15º livro em que
reuniu uma produção poética de três décadas publicada em obras anteriores
acrescida de parte ainda inédita. O legado antropofágico, porém, está mais
presente nos livros Os mortos na sala de
jantar (2007), Passeios na floresta
(2008), Palavras cruzadas e Preceitos da dúvida, que fazem parte
deste volume comemorativo, ainda que apareçam de maneira eventual em outros. É
de assinalar que estes dois últimos livros saem à luz pela primeira vez. Eis um
exemplo desses versos em “Antropofagia consentida”, que estão em Os mortos na sala de jantar:
nervosa, a mídia ganiu
um
alemão comeu outro
em
antropofagia consentida
longe
de absurdo, normal
pesquisa
demonstra:
para
o consumo há à disposição
oferecidas
500 novas pessoas
dispostas
a se darem
ao
deleite de serem comidas
De
Os mortos na sala de jantar, o
professor Raul Antelo diz que é um livro que se une à tradição de André Breton
(1896-1966), Paul Claudel (1868-1955) e Roger Caillois (1913-1978) no gosto pelas
pedras e pelas escrituras lapidares. Já na epígrafe de seu livro, Demarchi
reproduz um epitáfio de Marcel Duchamp (1887-1968): além disso, é sempre os outros que morrem. E acrescenta outro de
sua lavra, à guisa de dedicatória: aos
cadáveres que a vida nos dá de comer. A propósito de epitáfios, o poeta dá
a sua própria definição:
epitáfios são epígrafes
de histórias que continuam
túmulo
adentro
Mais
adiante, acrescenta:
das
velas e
do morto o odor
das
vidas queimando
II
Nascido
em Maringá, interior do Paraná, Demarchi vive há mais de 25 anos junto ao mar,
em Santos, no litoral de São Paulo, experiência que está mais evidenciada em
livros como Costa a Costa e do Sereno que enche o Ganges (2008), já
traduzido para o espanhol e publicado no Peru em 2010, e ainda em Janelas para lugar nenhum (1993). Em Costa a Costa, lê-se esta homenagem às
cidades siamesas de Santos e São Vicente:
no alto do morro do itararé
o
vento aos olhos sussurra
com
aleivosia os sabores
das
carnes doces da baía
salpicada
de navios e contêineres
azulada
como um peixe
sanguínea
como uma sereia no cio
subo
para vê-la, desço para perdê-la.
Ainda
que nos versos de Os mortos na sala de
jantar ressoe certo tom poético da década de 1980, é em Maria, a cidade sem rosto (1985, edição
mimeografada) que está mais clara essa percepção de um mundo que saía dos
tempos de horror da ditadura militar (1964-1985). Como nestes versos de “Cemitério
de estátuas de Moscou” em que o poeta demonstra também o seu precoce desencanto
com a utopia soviética, que, naquele tempo, embora caminhasse célere para a
desintegração, ainda seduzia a juventude contestadora:
no cemitério de estátuas de moscou
não
há silêncio
não esse que se conhece
mudas
e castradas, as estátuas estão russas
erigidas desde a revolução
lá estão, humilhadas
de
lenin, pálida de estupor
de brejnev, impávida no uniforme
de
stalin, maneta depois de inúmeros braços
liderando
um exército de outras
formando
uma corja sem fim de estátuas menores
de
comissários aprisionados na pedra e no tempo
agora
sem partido mas todos ainda disputando espaço
com
a grama
num
lugar desimportante que mereceria chinfrim
o
nome de medusa cemitério jardim
Já
em Preceitos da dúvida, Demarchi
exercita versos curtos, nada líricos, que anseiam se tornar epitáfios ou
máximas, na tradição dos dísticos gregos e romanos, rimados ou não, procurando constituir
“uma saída para o lugar-comum em que se tornou a expressão poética
contemporânea, tributária cordata e senil de modelos asfixiantes”, como diz o
próprio autor, que aqui se mostra como um perfeito artesão do verso
antropofágico. Eis alguns exemplos:
o jornalista
é
o coveiro
do
inesperado
o
jornal
a
cova
do
deteriorado
quem
não morre
envilece
III
Ademir
Demarchi (1960) é editor das revistas de poesia Babel – Revista de Poesia, Tradução e Crítica e Babel Poética, bem como do selo editorial
de livros artesanais Sereia Ca(n)tadora. Formou-se em Letras na área de Francês
pela Universidade Estadual de Maringá e cursou o mestrado em Literatura
Brasileira na Universidade Federal de Santa Catarina, sob a orientação de Raul
Antelo, um dos maiores especialistas acadêmicos na Antropofagia. É doutor em
Letras pela Universidade de São Paulo na mesma área. Com numerosos poemas, artigos
e ensaios publicados em livros e revistas impressos e em sites da Internet,
mantém há mais de quatro anos uma coluna semanal no jornal O Diário do Norte do Paraná, de Maringá. Adelto Gonçalves - Brasil
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PIRÃO
DE SEREIA, de Ademir Demarchi. Santos:
Editora Realejo/Secretaria de Cultura de Santos, 268 págs., R$ 35,00, 2012.
E-mail: editora@realejolivros.com.br
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Adelto
Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e
autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo
(Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona
Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil,
2002), Bocage – o Perfil Perdido
(Lisboa, Caminho, 2003) e Tomás Antônio
Gonzaga (Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras, 2012). E-mail:
marilizadelto@uol.com.br
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