O título do romance de Hugo Almeida não funciona como metáfora exagerada, mas como diagnóstico sensível. Há, de fato, muitas solidões caminhando juntas
Comecei a ler Mil Corações Solitários, de Hugo Almeida, como quem se aproxima de uma casa antiga – uma casa feita de ecos e memória, onde o ar carrega vozes que nunca deixaram de falar. Antes mesmo da primeira página, senti que havia um ritmo próprio: algo na linguagem respirava. Há livros que não se leem apenas com os olhos, mas com a pele; livros cuja matéria é silêncio e cuja vibração se sustenta nas pausas. O romance de Hugo Almeida pertence a essa linhagem rara: obras que escutam.
Desde as primeiras linhas, percebe-se que há um subterrâneo sustentando cada gesto do enredo. Não se trata apenas de personagens, mas de pulsações. Hugo escreve com o ar entre os verbos, confiando na força das suspensões, dos intervalos em que o sentido se forma antes de ser dito. Sua escrita entende que o silêncio não é ausência, mas presença que excede a palavra; e que, às vezes, é o silêncio que conduz o leitor.
Níobe, a figura central, encarna esse modo de existir. Suas cartas à mãe não são confissões, nem busca de explicação – são respiração. Escrever, para ela, é um modo de impedir que o tempo a dissolva. Há uma coragem particular na forma como tenta sustentar a própria vida através da linguagem; como transforma o gesto da escrita em contenção e sobrevivência. A carta, para Níobe, é abrigo e limite: o mesmo movimento que a ampara é o que a aprisiona dentro de si. Hugo captura essa ambivalência com precisão sutil, sem dramatização: apenas deixando que a dor se mova na página sem ser violentada pelo excesso.
À volta dela, Gamaliel – personagem construído com uma delicadeza ética rara. Seu silêncio não é indiferença, mas impossibilidade. Um silêncio que pesa, que guarda uma densidade própria, que devolve a Níobe uma sombra de si mesma. Entre os dois há um amor suspenso, feito de gestos que quase se completam, de presenças que se roçam sem se fundir. Hugo trata essa relação com pudor narrativo: não invade, não explica demais, apenas observa com compaixão.
A estrutura epistolar cumpre, no romance, uma função dupla e profunda. Ao mesmo tempo em que cria um espaço íntimo, expõe aquilo que só a solidão pode formular. As cartas de Níobe ecoam tradições distintas – Flaubert, Clarice Lispector, Raduan Nassar – mas Hugo desvia desses modelos ao não usar a carta como descoberta interior. Aqui, a carta é o próprio lugar onde o sujeito continua existindo. Níobe não escreve para compreender o que sente, mas para continuar sentindo; sua escrita é o gesto que impede o apagamento.
Existe, em todo o romance, uma contenção formal que o dignifica. Hugo não desperdiça sílabas: escolhe cada palavra como quem escolhe uma pedra para não romper o silêncio da água. Seu texto se aproxima de uma música de câmara: pausas calculadas, nuances mínimas, ecos que se entrelaçam. Essa contenção é estética, mas também ética – não invadir o interior dos personagens é tratá-los com respeito.
O título – Mil Corações Solitários – não funciona como metáfora exagerada, mas como diagnóstico sensível. Há, de fato, muitas solidões caminhando juntas: fragmentos de vidas que batem em ritmos distintos, mas que se reconhecem no silêncio. Cada personagem carrega uma possibilidade interrompida, um rumor de vida que poderia ter sido outra. E é nesse rumor que reside a beleza do romance: a melancolia que se sustenta não na dor explícita, mas naquilo que resta.
Níobe atravessa a narrativa como tempo encarnado. Sua escrita percorre o passado e o presente, tentando recompor uma memória ameaçada pela ausência. Há nela uma sabedoria antiga: a de quem compreende que o amor, para durar, precisa aprender a existir mesmo quando não há reciprocidade imediata. Suas cartas são mapas íntimos, tentativa de manter viva a chama de uma existência muitas vezes invisível.
E é justamente essa invisibilidade que o romance ilumina: a solidão como condição de escuta. Hugo propõe que só quem aprendeu a estar só consegue ouvir verdadeiramente. Seu livro aposta na lentidão, na presença, na atenção – e essa aposta é política, no melhor sentido. Em tempos de cacofonia, escrever com silêncio é um gesto de resistência.
Há uma dimensão corpórea na leitura. Em certo ponto, percebi que não lia mais com os olhos: lia com a pele. O texto altera a respiração do leitor, desacelera o olhar, reorganiza o espaço interno. Poucas obras conseguem produzir esse efeito – o de transformar o estado de consciência de quem lê. Neste romance, o silêncio não é apenas tema: é método, é atmosfera, é corpo.
Quando a narrativa chega ao fim, o silêncio que permanece não é vazio. É um silêncio pleno, como o que fica após uma confidência verdadeira. O leitor sai do livro não com respostas, mas com uma companhia. O romance continua respirando depois de fechado; permanece como uma presença que não se impõe, mas que não se retira.
Mil
Corações Solitários é um livro raro: delicado sem
ser frágil, rigoroso sem ser árido, emocional sem ser sentimentalista. Acredita
no amor como forma de lucidez – e talvez seja essa a sua grande revelação.
Quando o amor se torna lucidez, o silêncio se torna luz. Lara Vaz-Tostes - Brasil
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Mil
Corações Solitários, de Hugo Almeida. 4ª
edição. São Paulo: Editora Sinete, 228 páginas, R$ 65,00, 2025. Site: https://www.editorasinete.com.br ; E-mail: editorasinete@gmail.com
Site do autor: https://hugoalmeidaescritor.com.br
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Lara Passini Vaz-Tostes – Natural de Belo
Horizonte, capital do Estado de Minas Gerais, onde nasceu a 04 de Maio de 1998, é
escritora, advogada pela UFMG (2022) e pesquisadora. Autora de O Lugar que
Não Existe (mas sou eu) (Minimalismos, 2025) e Por dentro, onde os nomes
nascem (Terra da Garoa, 2025) e outros livros. Desenvolve pesquisas nas
interseções entre literatura, ética e escuta, com ênfase em Dostoiévski e
filosofia da linguagem. Publica poesia, contos e ensaios críticos em revistas e
portais literários.
Parabéns Hugo, por mais esta vitória!! 🙏👏👏
ResponderEliminarQue bela análise feita pela Lara Passini. Concordo com ela. E que texto maravilhoso, também cheio de poesia. Eu também gosto muito de "Mil corações solitários". Estou lendo-o pela terceira vez. Aliás, acabo de concluir uma música sobre solidão. Pela primeira vez, usei a IA para musicar uma letra minha baseada no meu momento atual e no filme argentino "Medianeras". Caso alguém queira ouvir as duas versões, é só avisar que eu mando os links pelo meu zap (11) 97786-7368. Me adicionem e mandem um alô. Abraço a todos.
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