Historiadores apontam várias 'heranças' do império de D. Pedro II no Brasil atual
Exilado na Europa depois do golpe
militar que proclamaria a República no Brasil em 1889, Dom Pedro II, nasceu a
02 de dezembro de 1825, segundo e último imperador brasileiro, redigiu um
documento em Cannes, no sul da França, que é visto como seu testamento
político.
Intitulado Fé de Ofício, o texto foi o
último ato público do monarca deposto. Dom Pedro II morreria em 05 de dezembro
de 1891.
Escrito de próprio punho, o documento está datado de 23
de abril daquele ano — e foi publicado no Jornal do Commercio, do Rio de
Janeiro, na edição de 28 de maio.
Neste 02 de dezembro, quando se recorda o segundo
centenário do nascimento do único imperador brasileiro nascido no Brasil — e
alguém que foi chefe de Estado do país independente em praticamente um quarto
de sua história, 49 dos 203 anos, reler esta carta é compreender um pouco qual
era a nação que Pedro II imaginava ter ajudado a construir.
Se consideramos também o período de regência, quando ele
já tinha sido aclamado imperador mas não governava, foram 58 anos sob a coroa
de Pedro II.
É praticamente consenso entre estudiosos de sua biografia
que o monarca imaginava um Brasil que alcançaria o progresso por meio da
ciência e da tecnologia.
Ele também almejava uma nação com instituições políticas
e sociais sólidas e demonstrava crer em um futuro republicano, em que o governo
seria representativo e o exercício da cidadania por parte dos brasileiros seria
mais próximo do universal.
Fé de Ofício
deixa pistas interessantes para este pensamento.
Para o ex-imperador, era preciso proteger a economia do
país frente à concorrência estrangeira, "até o período do seu próspero
desenvolvimento".
E embora se autoclassificasse como alguém que tinha
"sentimento religioso", entendia que cabia ao Estado apenas a
inspeção "quanto à moral e à higiene, devendo pertencer a parte religiosa
às famílias e aos ministros das diversas religiões".
Destacou também a importância do investimento em
educação, sobretudo criando e desenvolvendo instituições de ensino superior.
"Igreja livre no Estado livre", pontuou.
"Mas isso quando a instrução do povo pudesse aproveitar de tais
instituições".
Pedro II acreditava na imigração como ferramenta para o
melhor "aproveitamento das terras" e defendia a criação de "um
observatório astronômico" no país.
Lembrou que era importante investir no exército e na
marinha, "a fim de que estivéssemos preparados para qualquer
eventualidade, embora contrário às guerras". "Buscava, assim,
evitá-las", sentenciou.
Posicionou-se contrário à pena de morte, enfatizando que
acreditava na regeneração do ser humano.
Defendeu eleições livres para os cargos públicos e
concursos para postos no judiciário e na administração estatal. Mas acreditava
que somente os alfabetizados deveriam poder votar.
Demonstrou sensibilidade às pautas da habitação e da
fome, ressaltando a importância de projetos que zelassem pela "sorte
física do povo, sobretudo em relação a habitações salubres e a preço cômodo e à
sua alimentação".
No documento, Pedro também defendeu a importância das
artes, da organização de dioceses para a Igreja Católica e de expedições
científicas que se dedicassem a estudar o Brasil.
Especialistas concordam que, mesmo sendo ele próprio um
monarca, Dom Pedro II via no regime republicano o futuro do Brasil. Mais
exatamente, em um modelo inspirado no que vigorava nos Estados Unidos,
independente e República desde 1776.
"Ele considerava que a República era um
desenvolvimento natural do sistema político", explica à BBC News Brasil o
pesquisador e escritor Paulo Rezzutti, autor da biografia D. Pedro II - A
História Não Contada.
"Mas ele achava que o Brasil não estava pronto para
ela, precisava de uma melhora na estrutura administrativa antes de dar esse
passo."
"Ele é visto por muitos de seus biógrafos como um
imperador republicano", comenta à BBC News Brasil a historiadora Bruna
Gomes dos Reis, pesquisadora na Universidade Estadual Paulista e professora no
Serviço Social da Indústria (Sesi).
"Pessoas que conviveram com ele notavam que ele
tinha um espírito bastante republicano. E ele imaginava um certo governo
republicano para o Brasil", afirma à BBC News Brasil o historiador Silas
Luiz de Souza, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Há diversos registros de comentários de Pedro II no
sentido de reconhecer que o regime republicano seria o melhor para um
desenvolvimento do sistema político.
"Porém, o republicanismo dele comportava-se mais
como um espírito", compara Reis.
"Ele se fazia presente em ações como como a
liberdade de imprensa, o amor à pátria, na sua busca pela 'civilização' por
meio dos estudos, das artes e da ciência e em lampejos de nacionalismo".
Era um pós-iluminista, defensor da razão. Nesse ponto, o
republicanismo parecia se enquadrar melhor em sua própria ideologia.
"Ele era adepto das ideias liberais vindas do
Iluminismo, com defesa das liberdades individuais", situa Souza.
"Apesar disso, seu espírito republicano não tocava
sua carne", ressalta Reis. "Ou melhor: não tocava nas estruturas
políticas e econômicas do Brasil."
A historiadora comenta, por exemplo, que o último
imperador brasileiro "desfrutou do poder moderador" até o fim do
império. Era aquele instrumento criado no Estado brasileiro por seu pai, Pedro I,
que desequilibrava o princípio da tripartição dos poderes entre executivo,
legislativo e judiciário, porque situava o imperador como um quarto poder
sobreposto aos outros.
O historiador Victor Missiato, pesquisador no Instituto
Mackenzie, cobra um pouco de cuidado ao situar Pedro II como
"republicano".
"Soa um pouco anacrônico", pondera ele, à BBC
News Brasil.
"Embora ele tenha escrito algumas cartas e
interpretado a realidade como a inevitabilidade de um regime republicano na
história do Brasil, […] associá-lo à pecha de um monarca republicano não cabe
em um mundo em que muitas monarquias ainda estavam de pé."
Além disso ele lembra que Pedro teve um reinado longevo e
com o exercício do poder moderador. Ambas essas características destoam de uma
postura dita republicana.
Mas Missiato reconhece que havia pitadas de
republicanismo em seu governo, com "a ideia de maior liberdade
religiosa", "críticas à escravidão" e a instituição de órgãos
públicos "para a formação do bem comum".
Pedro II também foi beneficiado, como lembra a
historiadora Reis, pelas "riquezas produzidas pela escravidão, sem
mover-se em direção à transformação desses aspectos que poderiam acelerar a
construção da república".
"Ele acreditava que a fase monárquica era necessária
para o amadurecimento nacional, e que o regime republicano apareceria em algum
momento, como resultado do processo natural de desenvolvimento nacional",
esclarece Reis.
Em anotação feita por Pedro II em 31 de dezembro de 1861,
ele ressalta que "a ocupar posição política, preferiria a de presidente da
República ou ministro à de imperador".
A imprensa da época — que o imperador fazia questão de
deixar sob livre funcionamento, sem censurá-la oficialmente — extravasava o
estranhamento que seu perfil causava dentro de um regime monárquico.
"Nas cortes da Europa vai passando, republicano,
ateu, darwinista e não sei que mais", publicou a Gazeta de Notícias em 19
de agosto de 1883.
"Ele olhava para as Américas e via as repúblicas
sendo formadas. Os Estados Unidos tinham já uma força muito grande naquele
período", comenta Missiato.
O historiador lembra que Pedro II estava atento a
discussões, principalmente europeias, sobre a formação de esfera pública nas
sociedades, com maior participação cidadã. E demonstrava simpatia a isso.
Como pontua a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz no livro As
Barbas do Imperador: D. Pedro II, Um Monarca nos Trópicos, o titular do
trono brasileiro "era dado a novidades […] e a palavra progresso, para
ele, vinculava-se à ciência e ao intelecto".
Certamente por isso, a seu modo, o monarca investiu em
educação e conhecimento. Era assim que ele enxergava as bases para um país que,
no futuro, seria republicano.
"Dom Pedro via a si mesmo como um homem da
ciência", diz Rezzutti. "Desde a infância ele considerava os estudos
mais prazerosos que as brincadeiras, e esse amor continuou pela vida
inteira."
"Ele mandava adquirir equipamentos científicos na
Europa, estudou astronomia e matemática avançada e foi um incentivador da
fotografia no Brasil, sendo um dos primeiros fotógrafos amadores do país",
enumera o biógrafo.
"Também se tornou patrono de diversas instituições
científicas e culturais, entre elas o Instituto Pasteur, que graças à sua
proteção acabou sendo inaugurado aqui antes do que na França, e a Escola de
Minas, criada em Ouro Preto há exatamente 150 anos, em 1875, por iniciativa do
imperador."
Também se insere no período de sua coroa a fundação do
Colégio Pedro II, em 1837 — na época, sob regência.
O mesmo se aplica ao Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB), mais antiga e tradicional entidade de fomento de pesquisa do
país, criado em 1838. Pedro II era um entusiasta do organismo.
Se quando foi criado o instituto, o imperador ainda era
menor de idade, durante seu reinado ele investiu no desenvolvimento do mesmo.
"Foi um dos maiores financiadores [da
instituição]", diz Souza.
"Tinha uma relação íntima, participando de eventos,
fazendo palestras."
Esta imagem do monarca curioso e apaixonado pelo saber
não foi uma construção tardia, póstuma, erguida a partir do mito do rei morto.
Era algo já presente em seus tempos contemporâneos.
"Muitos cientistas e intelectuais deixaram suas
observações sobre a admiração que sentiam a respeito do interesse dele pelas
ciências", frisa Rezzutti.
Pai da teoria da evolução, o naturalista britânico
Charles Darwin (1809-1882) declarou que "o imperador faz tanto pela
ciência que todo sábio é obrigado a demonstrar a ele o mais completo
respeito".
Já o escritor francês Victor Hugo (1802-1885) comparou o
monarca brasileiro ao romano Marco Aurélio — ícone do "rei filósofo".
Claro que também havia críticos notáveis — o
abolicionista Luiz Gama (1830-1882), por exemplo.
"Ele dizia que Dom Pedro praticava um liberalismo
bastante curto, tacanho", pontua o historiador Souza.
Isto porque o imperador não descuidava dos interesses da
elite de sua época — uma elite basicamente constituída por latifundiários e
escravocratas, a quem qualquer mudança intempestiva de rumos significava um
desfavorecimento.
A historiadora Reis interpreta essa postura de Pedro II
como parte do "processo de amadurecimento nacional para receber o regime
republicano".
Para isso, ele entendia ser preciso preparar e
"educar" os cidadãos.
"Para além dos esforços empregados no
desenvolvimento tecnológico, como a implantação do telégrafo, das linhas de
ferro, e na invenção de uma nação civilizada, a partir da criação do IHGB,
ainda que para um pequeno grupo de brasileiros, Pedro II portava-se como um
líder capaz de guiar o Brasil a esse destino, com seu verniz iluminista e
moderno", contextualiza a professora.
Contudo, ela ressalva que o próprio imperador não deu um
passo decisivo para a República.
"Na prática, o imperador optou por aguardar para ver
aquilo que o Brasil poderia se tornar", afirma. "Se a nação não
estava pronta o suficiente para se tornar República, não seria por meio de suas
ações que isso seria alterado."
Nação do futuro
Mas Rezzutti volta ao documento Fé de Ofício para
pensar sobre o Brasil que Pedro vislumbrava como uma nação do futuro.
"Por meio desse texto, é possível compreender qual
era o país que Dom Pedro imaginava e que lutou para implantar", diz.
"Entre as diretrizes pelas quais ele afirma ter se
interessado enquanto governou, estão o desenvolvimento da indústria nacional; a
instrução livre, tendo considerado no estabelecimento de universidades fora dos
grandes centros do sudeste; a exploração das riquezas naturais; o melhoramento
das Forças Armadas para fins exclusivamente defensivos; a higiene pública, para
livrar o Brasil das epidemias; a abolição da pena de morte; a liberdade
política; e o melhoramento das comunicações e transportes", enumera o pesquisador.
Há diretrizes interessantes, se observadas de forma
anacrônica. Por exemplo: a vocação pacífica das armas brasileiras. Sobretudo ao
longo do século XX, o país foi gradualmente ganhando destaque global com um
papel contrário ao da guerra.
O Brasil virou a nação da diplomacia, do soft power.
E isto transcende ao mundo em episódios que vão desde a participação brasileira
na fundação da Organização das Nações Unidas (ONU) até esforços recentes com
envio de tropas para missões de paz.
Outro ponto do testamento político de Pedro II que ecoa
hoje é quando ele menciona a higiene pública.
Com todos os problemas inerentes principalmente ao fato
de ser um instituto público que depende dos cofres de um país em
desenvolvimento, o Sistema Único de Saúde (SUS), criado a partir da
Constituição de 1988, é visto como modelo mundial de acesso universal e
gratuito aos serviços de saúde.
"Além disso, uma herança da visão que Dom Pedro
tinha de como o Brasil deveria ser está na democracia, com eleições regulares e
liberdade de pensamento e de imprensa. Por mais que tenha sido atacada ao longo
dos anos, essa ideia sobrevive e ainda está na base do sistema político
brasileiro", acredita Rezzutti.
"Da época de Dom Pedro II, sobreviveram muitas
instituições que ainda são importantes para a vida econômica e cultural
brasileira", complementa o pesquisador. "Entre elas, estão a própria
Escola de Minas, o Colégio Pedro II, criado originalmente para a formação de
uma elite política e intelectual, e o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro."
Quando ele defendia uma abertura maior aos imigrantes
europeus, contudo, aos olhos de hoje é inevitável que a ideia soe com contornos
racistas.
Seu ideal civilizatório era alinhado ao pensamento
elitista e eurocêntrico de então. Pedro II não só se inspirava nos pensamentos
que vinham do velho continente, mas também patrocinou políticas imigratórias
que, sob a motivação de substituir a mão de obra do escravizado de origem
negra, também tinha o viés de "embranquecer" o brasileiro.
"Ele entendia que trazer pessoas da Europa podia
ajudar no progresso do país", explica Souza. "Isso acabou
configurando a sociedade brasileira atual, com tantos grupos étnicos
distintos."
Outros legados do período imperial sobreviveram ao tempo
e implicaram na consolidação do Brasil contemporâneo.
É o caso da própria unidade territorial.
O Brasil poderia, assim como a América Espanhola, ter se
esfacelado em diversas pequenas repúblicas. Isso não ocorreu principalmente
porque havia um projeto de nação, conduzido por ambos os imperadores, que
privilegiava um território robusto, grande, imenso.
Nesse sentido, o historiador Missiato lembra que houve um
papel importante do governo imperial ao sufocar revoltas separatistas que
pipocavam no território.
Disso também ficou a centralização do poder.
"Com certeza ele foi o líder mais importante da
história do Brasil", acredita Missiato.
"Alguns aspectos da sociedade brasileira se formaram
ou se fortaleceram no Segundo Reinado e não desapareceram até hoje", diz a
historiadora Reis.
"Como a unidade territorial, as
bases do Estado nacional, a busca pela liderança na América Latina e o
afastamento cultural dos outros países latino-americanos." In “Correio
Braziliense” – Brasil com “BBC
News Brasil”
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