Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Herzog e o romance dos deserdados

                                                            I

Cubatão, antes de virar o “vale da morte” que, além de crianças sem cérebro, aleijões anencefálicos ou aposentados com seus pulmões corroídos pelo câncer de tanto cheirar ares poluídos, já havia dado escritores do quilate de Afonso Schmidt (1890-1964). Mais recentemente, produziu poetas como Marcelo Ariel e agora tem o seu mais representativo romancista: o professor Manuel Herzog (1964), que profissionalmente atuou em seu parque industrial.

O primeiro romance de Herzog, Os Bichos (Santos, Editora Realejo, 2012), título que evoca Bichos (1940), de Miguel Torga (1907-1995), clássico da literatura portuguesa, já fazia uma alegoria do cenário político de Cubatão, enfocando a atuação de politiqueiros profissionais que carregam atrás de si uma legião de deserdados da sorte dispostos a defender o seu candidato em troca de alguns caraminguás ou de uma “boquinha” no serviço público. Nesse romance, o escritor compara os homens a animais, com uma visão bem mais favorável aos desta espécie.

Agora, com CBA – Companhia Brasileira de Alquimia (São Paulo, Editora Patuá, 2013), que obteve o Prêmio Facult de 2012 da Secretaria de Cultura da Prefeitura Municipal de Santos e foi semifinalista do Prêmio Portugal Telecom 2014, Cubatão se assume outra vez como cenário literário, mas, desta feita, como sede de uma indústria de química pesada que, nascida na emblemática data de 31 de março de 1964, está focada na produção da pedra filosofal, que seria um insumo básico destinado à exportação. Obviamente, tudo isto deve ser lido com os olhos da ironia.

Mas difícil é deixar de associar que a inspiração do autor não tenha vindo de uma empresa siderúrgica que fez nome à época do regime militar (1964-1985) ou de uma indústria multinacional que sempre fez no Brasil o que não lhe era possível no Primeiro Mundo, como descartar lixo químico em terrenos baldios que, mais tarde, seriam ocupados por novas legiões de deserdados.

Aliás, deserdados nunca faltaram em Cubatão e seus arredores. Primeiro, foram os trabalhadores que, nas décadas de 1940 e 1950, participaram da construção da Via Anchieta. Depois, os ex-operários que construíram a Rodovia nos Imigrantes, na década de 1970, e ocuparam os chamados bairros-cotas nas encostas da Serra do Mar ou as margens da nova estrada. Talvez os escravos que levantaram as pirâmides do Egito tenham tido um futuro de mais bem-aventuranças por tanto suor derramado...

É verdade que tudo foi feito em nome de um desenvolvimento a qualquer preço, como apregoava a propaganda fascista da época a respeito do Brasil Grande, em que se dizia que era preciso primeiro fazer o bolo crescer para, então, distribuí-lo, quando todos teriam um futuro promissor, como observa o poeta e escritor Ademir Demarchi no prefácio que escreveu para este livro. É certo que o bolo propagandeado pela utopia militarista cresceu, mas até hoje não foi dividido entre a população, que continua a morar em favelas nascidas à beira de rodovias, como o Rodoanel, ainda em construção, e que jocosamente são mais conhecidas como “o Brasil que vai pra frente”.

                                               II
Não imagine, porém, o afoito leitor que irá encontrar um romance com tinturas revolucionárias, à la Jorge Amado (1912-2001), em que os miseráveis são idealizados à espera de um cavaleiro da esperança que os venha redimir. Aqui, os pobres são também humanos, retratados por um pseudo-autor chamado de Poeta, que sabe bem que nada de grandioso se pode esperar da espécie humana, como já dizia o russo Fiodor Dostoievski (1821-1881).

Resignado com sua própria condição de proletário, o Poeta trabalha em “uma fábrica onde ninguém é companheiro de ninguém e um quer mais é fuder o outro”. Lá todos sabem que o mais esperto deles pôde chegar ao principal posto do governo da Nação, “comandando uma legião de Ph.Ds que sabiam menos que ele, governante maior, provando que escola boa é a da vida”.

Operário com veleidades de escritor, o personagem principal, espécie de alter ego do autor, procura reproduzir o idioma português arrevesado e vulgar que se fala nas fábricas da região Sul do País, mas não deixa de mostrar que é versado não só em clássicos nacionais, como Machado de Assis (1839-1908), como ainda em autores icônicos das últimas gerações, como o português Fernando Pessoa (1888-1935) e o alemão-norte-americano Charles Bukowski (1920-1994). 

Cínico com sua própria condição de proletário (“que ganha sete pau”), o personagem-narrador não disfarça que se aproveita do horário de trabalho para bate-papos intermináveis pela Internet ou para ouvir música brega ou, até mesmo, escrever este romance pós-moderno que surpreende por sua linguagem desabrida e desbocada, ainda que seja pretensamente a de um operário intelectualizado. 

Eis um exemplo: “Eu nunca fui nenhum ráquer. Pra falar a verdade, era bem limitado com essa coisa de informática. Mas o motor do mundo leva o homem a descobrir novas fronteiras. Nas madrugadas da fábrica, quando no turno de zero hora e a salvo de qualquer problema técnico que impeça as máquinas de fazerem o trabalho do homem, a solidão torna inevitáveis alguns artifícios: jogo de palitinho, livro, telefone, computador, punheta. A existência é insuportável, há que se matar o tempo. É o que me dizia o velho Chôpen, meu camarada. Schopenhauer, como os não-íntimos o conhecem. Matando o imortal tempo, no computador, aprendi a me virar nas salas de bate-papo. Adicionei amigas, fiquei amigo de mulheres que nunca vi, fiquei amigo de mulheres que só fui ver depois de ficar amigo. Admirável mundo novo, já dizia o Aldinho, meu bro. O Huxley, você deve conhecer. Não? Talvez no próximo ciclo da tua pós eles falem dele”.
  
Outro exemplo do texto dinâmico e descompromissado de Herzog: “Não vejo a hora de me aposentar. Quem trabalha de noite é buceta.” – esse era o velho Agenor, 59 anos, aos sessenta ia se aposentar compulsoriamente, política da fábrica. Um velho escroto, se deixassem ficava até morrer lá dentro, agarrado numa válvula, de onde teria que ser desgrudado a alicate, os dedos crispados do volante”.

Ou ainda: “(...) Chegou pegando pesado. Era o estilo dele. Marcos Carrascoza, diretor-presidente da companhia. O famoso pica-grossa. No bolso, uma caneta momblam tinteiro de grosso calibre, objeto que fazia jus ao título do dono. Na cabeça da caneta, uma estrela branca ratificava seu caráter fálico, dava a impressão de um início de gozo, uma babinha de porra saindo. Nem sempre ele estava aqui embaixo, passava mais tempo em São Paulo, onde se reportava aos caras com a pica mais grossa que a dele: os acionistas. Devia levar suas enrabadas também, razão pela qual eu contemporizava a sua maneira escrota de ser – as picas que o cu dele suportava eram mais rombudas que as que fustigavam nosso cu de peão. Mas, foi o que ele escolheu – quem não tem cu não contrata pica”.
  
                                               III
Nascido em Santos, mas criado em Cubatão, Manuel Herzog, formado em Direito pela Universidade Católica de Santos (UniSantos), estreou com o livro de poemas Brincadeira Surrealista (1987). É autor também de Dec(ad)ência (romance, Patuá, 2016), Sonetos d’amor em branco e preto (poesia, 2016, Prêmio ProAC 2015), O evangelista (romance, Patuá, 2015) e A comédia de Alissia Bloom (poesia, Patuá, 2014), que ganhou o terceiro lugar do Prêmio Jabuti de Poesia. 

Foi finalista do Prêmio Sesc 2000 com o romance Amazônia. Coordena oficinas literárias em Santos, na Estação da Cidadania, pelo projeto Ponto de Cultura da Prefeitura local. Escreve semanalmente uma crônica literária na coluna Cais das Letras no site Cinezen: http://cinezencultural.com.br/site/. Adelto Gonçalves - Brasil


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CBA – Companhia Brasileira de Alquimia, de Manoel Herzog, com prefácio de Ademir Demarchi. São Paulo: Editora Patuá/Secretaria de Cultura da Prefeitura Municipal de Santos/Programa de Apoio Cultural 2012, 424 págs., 2013. E-mail: manoelherzog@gmail.com
www.editorapatua.com.br


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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), e Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br

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