Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

quarta-feira, 4 de março de 2015

Brasil - A elite de Coimbra que manteve o Brasil unido

"Brasileiro" durante muito tempo, explica o historiador Murilo de Carvalho, era uma palavra feia. Foram os “brasilienses” ou “brasílicos” que começaram a desenvolver em Coimbra um esboço de uma elite política nacional antes que houvesse uma nação brasileira.



José Murilo de Carvalho é um dos mais consagrados historiadores brasileiros. Foi distinguido com o grau de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Coimbra. A justificação para o título encontra-se numa obra sua de 1996, A Construção da Ordem — Teatro de Sombras

Ao primeiro contacto, José Murilo de Carvalho transmite timidez e insegurança. Mas, quando começa a falar do século XIX do Brasil, o historiador mineiro nascido em 1939 transfigura-se, entusiasma-se, o seu tom de voz ganha assertividade e os olhos, brilho. Ser consagrado em Coimbra foi para ele um privilégio e um regresso ao seu passado profissional. Na sua juventude, passou dias a fio a vasculhar o espólio bibliográfico da universidade à procura do rasto dos brasileiros que lá estudaram e teceram redes de cumplicidade fundamentais para manter unido o gigante da América do Sul.

Num dos seus trabalhos académicos, considera que a Universidade de Coimbra teve um papel importante na preservação da unidade do Brasil quando a colónia se tornou independente. O que é que aconteceu?

A unidade do Brasil não era um dado adquirido. Havia uma grande probabilidade de que a colónia portuguesa da América se esfacelasse, como se esfacelou a colónia espanhola. Um factor importante para a unidade foi o deslocamento da corte de D. João para o Brasil. Eu creio que, sem isso, nós teríamos talvez quatro ou cinco países em vez de um país só. No momento da invasão napoleónica da Península Ibérica, os reis da Espanha foram obrigados a renunciar, enquanto o rei D, João VI foi para a colónia e isso deu um centro de atracção, uma força centrípeta baseada na legitimidade da monarquia…

Essa legitimidade mantém-se com o filho, D. Pedro, quando D. João VI regressa a Portugal?

Sim, mantém-se. Agora, qual é a importância dos portugueses e dos brasileiros formados em Coimbra para a manutenção da unidade? Isso deu-se já no período do primeiro reinado, de D. Pedro. Entre os que cercavam D. Pedro, muitos eram portugueses que tinham ficado no Brasil. Mas havia vários brasileiros formados em Coimbra, sobretudo na área de Direito, que também cercavam D. Pedro, e a Constituição brasileira de 1824, que depois foi adoptada em Portugal [Carta Constitucional de 1826], foi obra desta gente que estudou em Coimbra.

Mas o momento crucial é quando D. Pedro renuncia, em 1831. O filho, D. Pedro II, tinha cinco anos de idade e o país ficou entregue a si mesmo. Neste momento, começou a haver revoltas em todo o país, inclusive com vários movimentos separatistas. Qual foi o impacte de Coimbra? Os brasileiros que vinham das partes mais distantes tinham-se conhecido nas margens do Mondego, tinham feito os seus cursos aqui. Cursaram as mesmas disciplinas, tinham feito amizades e começaram a desenvolver em Coimbra um esboço de uma elite política nacional antes que houvesse uma nação brasileira. Este grupo tinha desenvolvido a ideia de uma unidade política para o Brasil. Isso teve um papel muito importante na valorização da unidade da colónia. A corte tinha uma atracção por essas pessoas. Elas iam compor os ministérios, o Senado.

Veja bem, não havia ideia de Brasil. Havia essa figura chamada “Brasil”, que era uma colónia, mas a sensação de brasilidade não existia. Inclusivamente, a palavra “brasileiro” não era muito usada. Usava-se “brasiliense” ou “brasílico”. “Brasileiro”, durante muito tempo, era uma palavra feia — designava os comerciantes de pau-brasil e quem era comerciante já era uma pessoa… Eu li uma vez numa história dos jesuítas um conflito que houve num convento em São Paulo, no século XVII, porque um jesuíta chamou outro de “brasileiro”…

As elites brasileiras continuaram a mandar os seus filhos para Coimbra até, pelo menos, meados do século XX, na maioria dos casos para estudar leis.

Sim, sim… Estudavam cânones e leis. E foi também muito importante a Faculdade de Filosofia, que nasceu com a reforma pombalina. Isso na época significou a introdução de estudos dos naturalistas, isto é, Física, Química, Biologia, História Natural… Essa gente foi pioneira na construção da geografia brasileira. José Bonifácio [uma das personalidades centrais do processo de independência] era um naturalista. Esse é um lado pouco conhecido.

Por que é que nas cortes vintistas, que levaram à aprovação da Constituição de 1822, os deputados de Portugal e do Brasil não se entenderam em torno da manutenção do Reino Unido de Portugal e do Brasil, que estava aliás entre os seus propósitos?

Eu e uns colegas acabámos de publicar quatro volumes de 800 páginas cada um com os panfletos do vintismo. São folhetos de natureza política com menos de 50 páginas. Colhemos alguns na Biblioteca Nacional de Lisboa, outros na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e alguns até na antiga Cisplatina, que hoje é o Uruguai. Estes escritos, onde havia muita disputa, que eram publicados nos jornais ou vendidos separadamente como folhetos mesmo, mostram com muita clareza que há uma adesão muito forte à revolução vintista e à regeneração de Portugal, sobretudo na Bahia, onde a presença portuguesa era muito grande.

Há no geral a aceitação da ideia de constitucionalizar a monarquia, isto é, de acabar com a monarquia absoluta. Quando as cortes começaram a funcionar, houve uma adesão enorme — com poesias, sonetos, odes em louvor às cortes. Houve uma explosão de civismo que não se imaginaria. No entanto, começou a haver uma rejeição dos brasileiros em relação a certas medidas tomadas pelas cortes — e isso aparece nos panfletos com a palavra “recolonização”. As cortes exigiram que D. João voltasse, depois exigiram que D. Pedro também saísse do Brasil e todas essas medidas começaram a ser vistas no Brasil como um regresso ao período anterior ao Reino Unido. Houve um atrito grande dos deputados brasileiros com as cortes e uma boa parte deles fugiu para o Brasil. Achavam que a perspectiva da manutenção da União estava cada vez mais difícil, mas, na realidade, mesmo que não tivessem ido embora, as coisas lá estavam a caminhar muito mais rapidamente. E aí, sim, o papel de D. Pedro foi crucial. Ele estava pronto para obedecer às cortes, mas aí houve grandes representações…

Foto: Nelson Garrido

Que o levam ao famoso “fico”…

Sim.

A ruptura era portanto irreversível.

É curioso que, quando começou o vintismo, muitas pessoas, entre as quais o próprio José Bonifácio, que era brasileiro mas morou dezenas de anos em Portugal e era um membro da burocracia lusa, não eram favoráveis à separação. Havia a ideia da manutenção do Reino Unido. Era aceite pelos brasileiros. Mas, quando se começou a percepcionar que essas medidas tenderiam a uma recolonização, o que significaria que o pacto de manutenção do Reino Unido se rompia, isso mudou.

Se houvesse, por exemplo, a ideia de uma monarquia federativa como a que havia em Inglaterra, eu creio que poderia pelo menos haver a possibilidade de se prolongar por mais algum tempo esta união. Haveria revoltas locais, por exemplo em Pernambuco e no Sul, mas a união poderia permanecer.

Como é que se resolveria a questão da sede do reino? Uma das questões fundamentais da Revolução de 1820 passava pelo regresso do rei à metrópole. O Brasil que se havia habituado a ter o rei no seu território aceitaria facilmente essa mudança?

Houve várias propostas a esse respeito, houve vários panfletos. Porquê se deve manter o Brasil unido a Portugal? Quais são as vantagens e as desvantagens da união? Discutia-se uma série de argumentos e para resolver esse problema havia a proposta de, quando o rei estivesse aqui [em Portugal], o sucessor ficava lá ou vice-versa. Esse tipo de proposta foi feito…

Aliás, era esse o desejo de D. João VI que, quando regressou, deixou D. Pedro no Brasil.

Sim, mas ele não controlava mais as cortes. A correspondência do rei com D. Pedro mostra com clareza que eles não gostavam das cortes. Nem as cortes deles — chamavam a D. Pedro “rapazinho”. Quando as cortes exigiram que D. Pedro saísse do Brasil, aí foi um sinal vermelho. Era um sinal para que a divergência entre as províncias se facilitasse.

Foi o radicalismo vintista que acelerou o fim da ligação?

Sem dúvida nenhuma. Eu não li tudo sobre o debate das cortes, mas eu creio que essas pessoas não perceberam o que tinha mudado no Brasil. A saída de D. João de Portugal [chegou ao Brasil em Janeiro de 1808] e a abertura dos portos do Brasil foram um baque tremendo para a economia portuguesa e Portugal estava numa situação difícil. Vivia sem o rei, numa situação de orfandade — a palavra era usada —, mas também vivia uma situação económica muito séria. E aí faltou entre os liberais mais radicais a percepção política do que estava em causa.

Os deputados da representação brasileira nas cortes de 1820/22 eram os mesmos que dominavam a burocracia do Estado na época da regência ou já era outra geração?

Não, eram os mesmos.

Podemos dizer que eram uma elite conservadora? Algumas questões, como a escravatura, demoraram anos a encontrar um discurso mais progressista no debate político do Brasil.

Sim, esse é tema complexo. A formação que eles tinham em Coimbra dava-lhes muita capacidade como construtores de Estado, digamos assim, como defensores das leis, da nação. Mas socialmente eram conservadores. Há interpretações que consideram que a independência do Brasil aconteceu por causa do medo das revoltas escravas. Não há evidências para apoiar esta hipótese.

Temia-se um novo Haiti?

Sim, a palavra “haitianismo” circulava. Mas, curiosamente, era em geral escrita por observadores estrangeiros. Nestes panfletos que nós pegámos, há quase nada sobre escravidão. Eu não estou dizendo que isso não teve importância: a manutenção da ordem política facilitava a manutenção da ordem social e para muitas dessas pessoas isso era claro. Muitos eram filhos de proprietários rurais. Mas vários deles, o próprio José Bonifácio, foi o primeiro a mandar uma moção à constituinte brasileira pedindo o fim lento do tráfico de escravos e o fim lento da escravidão. Outros coimbrões também escreveram nessa direcção. O processo de independência brasileira não foi pacífico — na Bahia houve guerra civil —, mas comparado com o da América espanhola foi muito menos violento. O que se deveu à manutenção da ordem social.

Anos depois, ainda houve a Revolução Farroupilha [no Rio Grande do Sul] e a Confederação do Estado do Equador, que, nos anos de 1830, foram tentativas de secessão. O Rio Grande do Sul teve desde sempre um papel de resistência à unificação política do Brasil?

A localização do poder económico é sempre importante na criação de um novo estado. Onde estava o poder económico? Os grandes focos do poder económico naquela época eram Pernambuco, mas sobretudo Bahia e Rio de Janeiro, por causa da mineração. No Rio Grande do Sul, aí havia elementos de aproximação com o Uruguai. O Rio Grande do Sul e o Uruguai eram quase a mesma coisa. Os criadores de gado passavam de um lado para o outro como se estivessem no mesmo país. Era a Cisplatina, ou a Banda Oriental, que D. João VI invadiu. Na independência, eles discutiam sobre se se mantinham fiéis a Portugal, se se juntavam ao Brasil ou se tinham a sua própria independência. Ficaram nisso durante dez anos, até que em 1828 fizeram uma revolta e separaram-se.

Há historiadores que dizem que o Uruguai é uma criação britânica. Um Estado-tampão para evitar os permanentes conflitos entre o Brasil e a Argentina.

Não, não. Eu digo sempre que as guerras do [rio da] Prata eram sempre guerras erradas. A disputa era entre o Brasil e as Províncias Unidas do Rio da Prata — ainda não havia a Argentina, que só passa a existir na segunda metade do século. Mas com Buenos Aires havia muita rivalidade e havia uma disputa pelo Uruguai. Depois eles decidiram tornar-se independentes e quer o Brasil quer as províncias unidas concordaram. Era como se fosse colocado um pouco de algodão entre elas.

Num artigo seu de 2008, considerava que o facto de o Brasil nunca ter tido revoluções era uma sorte e um infortúnio. Porquê?

Essa tradição de negociação é muito elogiada no Brasil, embora não seja completamente verdadeira — as revoltas de 1830, a Farroupilha, no Pará ou na Bahia, foram muito violentas. Mas eram localizadas, nunca houve uma disputa nacional pelo poder. Na comparação entre a proclamação da República brasileira e a portuguesa há um grande contraste. A portuguesa foi feita com muita violência, com muita luta. Na criação do Estado Novo nos anos de 1930 ou o próprio golpe militar de 1964 não morreu ninguém. Isto poupou muito sangue, mas teve também como consequência esta (silêncio) característica de mudar sem mudar muito? — aquela velha coisa do Leopardo. Em 1930, um político [António Carlos, presidente do Governo de Minas Gerais] usou uma expressão que ficou clássica: "Vamos fazer a revolução antes que o povo a faça." Esta capacidade de negociação ainda permanece. É uma tradição que tem a ver com a muito baixa taxa de participação popular no sistema político brasileiro. Até 1945, só 5% dos brasileiros votavam.

Mas quem assistiu às últimas eleições nota uma crispação e uma violência implícita no discurso que não parece bater certo com essa sua visão da negociação.

Aí vai ter que retirar a retórica. Os marqueteiros é que comandam. Creio que, na prática, há uma tradição muito governista. No Brasil, há uma atracção muito grande para o Estado. Todos querem tomar conta do Estado. É uma herança portuguesa, que faz com que até um partido revolucionário chegue ao poder e tenham todas essas denúncias de corrupção.

Do ponto de vista social, os três mandatos de Lula não foram uma revolução?

Foram pelo lado da incorporação social, que também dá margens a um enorme clientelismo político. É buscar a protecção do Estado, o guarda-chuva do Estado. No início da República, alguém escreveu para um ministro pedindo-lhe: “Proteja-me com a bandeira da República, ela é muito grande.” O Estado está a tornar-se no grande coronel, no sentido do coronelismo. Os votantes estão presos a benefícios que o Estado lhes deu. Nesse sentido, não são propriamente cidadãos activos, são cidadãos movidos pela atracção dos direitos sociais e não tanto pela defesa do direito civil e do direito político. Manuel Carvalho – Portugal in “Jornal Público

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