Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

domingo, 22 de março de 2015

Angola - Esta raiz partilhada ainda não foi arrancada do chão

O Semba Carioca

Vi esta cena mil e uma vezes. O encontro entre músicos angolanos e brasileiros sempre dá muita conversa, como a velha história do ovo e da galinha, mas sempre dentro da mesma família. Semba, samba, a clave, o ritmo. A eterna pergunta é esta: onde está o primeiro dos quatro tempos? Qual é o tempo forte, aquele indispensável, o que segura o balanço? “Vocês estão tocando invertido!” “Não, é assim mesmo.”

O ritmo não se explica, sente-se. Não se conta, dança-se. A matemática do semba bate dentro do peito, nas congas, na dikanza, no grave do baixo do Ti Moreira, nas passadas da Tia Mizé, a riscar a poeira do chão da meia-noite.

Presenciei este momento mil e uma vezes. Desta vez, era o Toty a explicar, naipe por naipe, o ritmo do semba a um grupo de seis músicos cariocas, três deles percussionistas, profundos entendidos dos ritmos afro-brasileiros. O Toty desconstruiu pacientemente cada peça do conjunto. Os ponteiros do relógio deram muitas voltas, enquanto as caretas nas suas faces se multiplicavam, no esforço de tocar “ao contrário”, buscando a dança sem desistir. Até que deu.

E quando dá, é aquela euforia, catarse. Quando o semba acontece, o corpo reconhece. Sabe bem. Para nos, angolanos, é uma coisa da vida inteira. Mesmo aqui, no Rio de Janeiro, na margem oeste do mesmo Atlântico Sul, quando soa um semba sentimos no ar o cheiro de casa. Activa-se automaticamente um saudosismo que quase dói, numa vivência estetica e sentimental da tal de bandeira. Chega a ser perigoso. Eu e o Toty olhamo-nos em sinal de cumplicidade: o semba aconteceu. Como disse o Luiz Augusto, um dos nossos percussionistas, “o semba encontrou os seus filhos do samba”.

Curiosamente, a música seguinte foi um samba composto pelo Toty. Essa parte do ensaio voou, como se estivéssemos todos a falar a mesma língua. Qualquer músico angolano contemporâneo está familiarizado com o samba brasileiro. Já com o semba trata-se do movimento inverso. Quando os brasileiros tocam um semba, devem sentir um misto de familiaridade e estranheza. Mas quando ele se instala nas suas mãos, podemos observar nos seus olhos o prazer e a gratidão de mais uma lição aprendida. Afinal, esta raiz partilhada ainda não foi arrancada do chão e, se o vento ajudar, em breve poderemos estar todos sentados à sombra da mesma mulemba.

Um brinde, pois, ao semba carioca e ao samba kaluanda. Aline Frazão – Angola in “RedeAngola”

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