Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

domingo, 3 de novembro de 2013

Libertação espiritual

Paulina Chiziane
A escritora moçambicana Paulina Chiziane, natural de Manjacaze, Gaza, onde nasceu a 04 de Junho de 1955, tem quase trinta anos dedicados à escrita e no passado dia 30 de Outubro de 2013, apresentou no Centro Recreativo da Universidade Politécnica (CREISPU) na capital de Moçambique, Maputo, a sua última obra literária, em co-autoria com Rasta Samuel Pita, intitulada “Por quem vibram os tambores do além?”, sob a chancela da Índico Editores.

Rasta Samuel Pita
“Se Deus é o único que criou a todos de maneira igual, deu a Moisés o poder da magia, também deu aos curandeiros, o mesmo poder. Por que é que hoje, os curandeiros são condenados e Moisés é louvado? As pessoas que criticam os curandeiros não conhecem as suas normas e nem os seus princípios. O conceito de ‘Deus único’ saiu de um africano, chamado Moisés, para o mundo. Como é que de repente aparecem religiões do ocidente a afirmar que África está nas trevas e os curandeiros são os diabos”. Palavras de Paulina Chiziane abordando que a opinião generalizada sobre o curandeiro africano e particularmente o moçambicano é negativa.
O Prefácio do livro coube ao Prof. Nataniel Ngomane que fez a apresentação. Aqui ficam as suas “Poucas palavras”:
Poucas palavras
Depois da publicação de Na mão de Deus (2012), em co-autoria com Maria do Carmo da Silva, livro em que Paulina Chiziane, a pretexto de discorrer - e com reconhecida e meritória ousadia - sobre uma dramática experiência de vida, levanta o véu a toda uma série de questões fortemente marcadas pela discriminação, exclusão e consequente marginalização dos doentes mentais, quer pelas famílias quanto pelos hospitais e pelo Estado - assunto, aliás, que mereceu a minudente atenção de Michel Foucault, levando-o a dissecá-lo na sua Histoire de la Folie à l’ Âge Classique (1972) e em Maladie Mentale et Psychologie (1975) -, a longínqua autora de Balada de Amor ao Vento (1990), Ventos do Apocalipse (1995), O Sétimo Juramento (2000), Niketche (2002), As Andorinhas (2008) e O Alegre Canto da Perdiz (2008) parece estar, de facto, a optar por um novo paradigma de escrita não propriamente ficcional mas contemplativo e reflexivo, ao nos presentear, desta vez, com este Por quem vibram os tambores do além?
Tal como Na Mão de Deus, livro posterior a este, mas que razões circunstanciais levaram a que fosse publicado primeiro, e cujas narrativas inquietam visceralmente o leitor - quer seja pela sua autenticidade, pinçada da experiência vivencial da autora, quer mesmo pelo facto de remeterem, amiúde, a uma crescente realidade que, para a nossa infelicidade, se vem assistindo no quotidiano moçambicano -, este “Por quem vibram os tambores do além?” apela também a uma reflexão que provoca profundamente o leitor, particularmente aquele leitor enraizado na tradição do pensamento e visão sociocultural de base ocidental, instigando-o a revisitar e questionar conceitos, crenças e caminhos de vida julgados firmes e consolidados. Este livro coloca esse leitor, em particular, em confronto com outros e sólidos sistemas culturais e de pensamento.
A assistência na apresentação do livro
Aqui, em co-autoria com Rasta Samuel Pita - e através de diversas frestas -, Paulina Chiziane põe o leitor em contacto com diversas tradições do pensamento africano, em especial as dos povos bantu, alicerçando-as com o crivo da sua visão crítica, tudo com base numa lógica impressionante, em meio a um destemido exercício comparativo assente no cruzamento de perspectivas filosóficas diferentes e de sistemas de pensamento igualmente diferentes.
Tomando como referência espaços geopolíticos do actual território de Moçambique e suas milenares figuras mitológicas – até agora desconhecidas de muitos de nós -, Pita e Chiziane conduzem o leitor pelas sinuosas e múltiplas veredas das cavernas africanas, derramando sobre elas incontáveis feixes de luz de um saber sobre o qual urge questionar se oculto, escamoteado ou, pura e simplesmente, reprimido e votado à margem ou ao esquecimento.
Iniciando com uma invocação aos espíritos, feita por Rasta Pita, a porta de entrada deste livro sugere, à partida, e em perfeita sintonia com os modelos estruturais da narrativa, a provável presença dessas entidades no texto, que, efectivamente, acabam sendo encontradas, embora não realizem aquela série de proezas habituais ao mundo da ficção. Todavia, ao mesmo tempo em que assim procede, essa invocação passa a constituir o principal mote, uma espécie de janela ampla que se abre e por meio da qual se tem acesso ao mundo estruturado do conhecimento e dos espíritos africanos sobre os quais a obra se tece.
Os espíritos africanos, neste livro, devem ser entendidos no sentido antropológico da ancestrolatria conceptualizada por Ribeiro (1998, p.25)1, como a religião dos bantu, o culto aos antepassados que “informa toda a vida familiar e social. Religião sem profetismo, fundada na tradição dos antigos, [em que] as suas manifestações principais são concretizadas em sacrifícios cruentos de animais, oferendas e orações, junto de um altar rudimentar, [e nela] só se temem e imploram os próprios antepassados”.
Não deve causar espanto, por conseguinte, que ao mesmo tempo em que essa janela ampla se abre, se abra outra similar, por via da mesma invocação, apontando para a existência de um “ser supremo” apresentado como autor espiritual do trabalho de Rasta Samuel Pita e Paulina Chiziane, e não só. Esse ser vai se desdobrando em múltiplas teias, consubstanciado nesse culto aos antepassados, assim conferindo estrutura e consistência a todo um modo de ver, pensar e viver o mundo totalmente diferente do que nos foi habituado pela filosofia e pensamento ocidentais. Em última instância, esse outro paradigma é apresentado como a força que informa as sociedades tradicionais dos bantu, num percurso em que o canto, o rufar do tambor e a força da natureza constituem elementos centrais. Nataniel Ngomane – Moçambique
  
1  Ribeiro, Pe. Armando. Antropologia. Aspectos culturais do Povo Changana e Problemática Missionária. Maputo: Paulinas
Quem deseje perceber as tradições africanas e os seus próprios conceitos, crenças, sistemas de pensamentos e visões do mundo, deverá ler o livro de Paulina Chiziane e Samuel Pita “Por quem vibram os tambores do além?”  Baía da Lusofonia

Paulina Chiziane – Escritora, “Balada de Amor ao Vento” (1990), “Ventos do Apocalipse” (1993), “O Sétimo Juramento” (2000), “Niketche: Uma História de Poligamia” (2002), “O Alegre Canto da Perdiz” (2008), “Na Mão de Deus” (2012), “Por Quem Vibram os Tambores do Além?” (2013). Prémio José Craveirinha 2003.
Nataniel Ngomane - Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), onde defendeu a tese A escita de Mia Couto e Ungulani Ba Ka Khosa e a estética do realismo maravilhoso (2004), Nataniel Ngomane é Licenciado em Linguística pela Faculdade de Letras da Universidade Eduardo Mondlane (UEM), com a defesa da dissertação Alguns aspectos da coesão e coerência textuais no romance Terra Sonâmbula de Mia Couto (1994).
Professor de Literatura Comparada e de Metodologia de Investigação na Faculdade de Letras e Ciências Sociais da UEM, tem textos dispersos em capítulos de livros, revistas e jornais, além de participação diversa em eventos científicos nacionais e internacionais.
Membro do Conselho Consultivo da revista Portuguese Literary & Cultural Studies (do Center for Portuguese Culture and Studies da University of Massachusetts-Dartmouth) e do Conselho Editorial Científico da revista Recorte (da Universidade Vale do Rio Verde, de Minas Gerais, Brasil), os seus interesses em pesquisa integram a Literatura Moçambicana e Latino-Americana, o Cinema e a Música moçambicanos. Director da Escola de Comunicação e Artes da Universidade Eduardo Mondlane




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