Um projecto inédito para Hong Kong realça pela primeira vez a importância das diferentes comunidades imigrantes, que teceram a malha multicultural que define o porto seguro da ex-colónia. Uma colecção que remonta ao passado menos apreciado do domínio europeu na Ásia, a exposição “Estórias Lusas”, no Museu de História de Hong Kong, é, mais que tudo, um tributo aos frutos positivos desse ponto de encontro entre impérios. Uma comunidade mista que trouxe todas as influências das deambulações portuguesas pelo mundo e que hoje contribuem para a projecção de um pequeno território, numa das mais influentes regiões do globo. Sem data para encerrar, a exposição permanente é um dos destinos de destaque na actual agenda cultural de Hong Kong
A história da comunidade portuguesa em Hong Kong, agora apresentada numa exposição abrangente no Museu de História de Hong Kong (HKHM), constitui um valioso estudo de caso sobre a resiliência, a capacidade de adaptação e a importância das relações interculturais no desenvolvimento de uma sociedade cosmopolita. Inaugurada a 27 de Novembro de 2024 e sem previsão de encerramento, até ao próximo projecto de grande escala, a exposição “Estórias Lusas – Stories of the Hong Kong Portuguese” faz parte da primeira fase de uma nova série de instalações dentro da já existente exposição permanente do museu, intitulada “Multifaceted Hong Kong Exhibition Series”, ou “Série de Exposições Multifacetadas sobre Hong Kong”.
Por entre objectos doados ou oferecidos pela comunidade lusa em Hong Kong, instalações de grande escala e utilização de novas tecnologias, como “projection mapping” e mapas interactivos, a exposição ocupa um total de 10 salas no segundo andar do museu e é o resultado de uma colaboração entre o Departamento de Serviços de Lazer e Cultura e o HKHM.
A iniciativa museológica de grande envergadura reúne um vasto conjunto de artefactos, incluindo documentos históricos, objectos pessoais, fotografias, obras de arte e depoimentos de descendentes, oferecendo um olhar aprofundado sobre os mais de 150 anos de presença portuguesa na antiga colónia britânica.
Desde a chegada dos primeiros portugueses vindos de Macau em meados do século XIX, até à actualidade, a presença portuguesa em Hong Kong tem sido marcada por uma contribuição multifacetada, que abrangeu a esfera económica, social, cultural e desportiva. A análise dos documentos e testemunhos existentes revela um percurso de desafios e conquistas, que merece ser reconhecido e preservado como parte integrante da história de Hong Kong.
A exposição é estruturada de forma a guiar o visitante através da jornada da comunidade portuguesa, destacando a sua capacidade de adaptação às realidades locais. A narrativa começa com a chegada dos primeiros portugueses, oriundos principalmente da então colónia portuguesa de Macau, porto de entrada para trocas comerciais com Cantão, e detalha a sua integração gradual na sociedade de Hong Kong.
Um mapa de 1872, que ilustra a área em torno da Graham Street, onde se encontra um dos mercados de rua mais antigos da cidade actualmente, identifica que 18 das cerca de 100 habitações eram marcadas como portuguesas.
Figuras actuais como Francisco Da Roza, ex-presidente do Club Lusitano, o clube social português mais antigo da cidade, em entrevista à Zolima CityMag em 2016, observou que actualmente ainda existem muitos vestígios vivos da presença portuguesa, mas destacou que, após uma integração profunda, a maioria das pessoas não o identificaria como português.
“Podemos rastrear os nossos ancestrais até uma pequena aldeia perto de Lisboa, mas eu estive em Hong Kong por mais de 50 anos, e a minha família tem estado em Macau ao longo de mais de 300 anos”. Da Roza é um dos mais ávidos protagonistas desta nova mostra, que tem estado em gestação desde meados de 2019, em busca de, pela primeira vez, destacar uma comunidade que em tempos chegou a ser o maior grupo estrangeiro da cidade, até mais populoso que as personagens no comando da coroa britânica.
A exposição explora os desafios enfrentados, como as barreiras linguísticas e culturais, as dificuldades de adaptação às condições de vida e as oportunidades profissionais, ilustrando como a comunidade superou estes obstáculos e construiu uma nova vida em terreno novo.
O espírito de união e apoio mútuo é um tema recorrente na mostra, tão único de uma cultura latina que se mesclou com a indiana, africana e asiática, nas diversas passagens antes da chegada ao Delta do Rio das Pérolas, reflectindo a importância da coesão social para a sobrevivência e o sucesso de uma pequena comunidade, já definida como macaense, um grupo étnico por si só. A exposição detalha a vida quotidiana, as profissões, os clubes sociais e os momentos de celebração da comunidade, oferecendo um retrato vívido da sua evolução ao longo dos anos.
Um dos aspectos mais significativos da exposição é a demonstração do papel crucial que os portugueses desempenharam no desenvolvimento económico de Hong Kong. A experiência em lidar com diferentes culturas e línguas, bem como a capacidade de estabelecer relações de confiança, foram factores decisivos para o sucesso da comunidade lusa no território.
Muitos dos documentos históricos presentes, autênticas relíquias, ilustram a ascensão de figuras proeminentes na comunidade portuguesa, destacando o seu impacto em sectores como o comércio, as finanças e a indústria, tais como Da Roza e a sua carreira como banqueiro proeminente.
Raízes e Desenvolvimento: Intermediação, Empreendedorismo e Lealdade
Os portugueses destacaram-se inicialmente como intermediários entre os britânicos e a população chinesa, preenchendo um vazio crucial na comunicação e na tradução. Dominando o inglês, o cantonês e, na sua grande maioria, o português, actuaram como tradutores, contabilistas e funcionários públicos, facilitando o comércio e a administração da então colónia inglesa. Esta função de intermediário, que exigia um elevado grau de competência linguística e cultural, contribuiu para o desenvolvimento económico de Hong Kong.
Ao mesmo tempo, os portugueses não hesitaram em investir nos seus próprios negócios, criando empresas que desempenharam um papel importante no desenvolvimento da colónia. A indústria da impressão, por exemplo, foi dominada por famílias portuguesas, como os Noronha e os Xavier, que construíram negócios duradouros e de renome. O empreendedorismo português estendeu-se a outros sectores, como a construção naval, o comércio e a banca, bem como o início do inovador mercado de brinquedos infantis de plástico, tão conhecido na actualidade. Esforços que consolidaram a presença dos empreendedores de ascendência portuguesa na economia da região.
A comunidade lusa demonstrou também um forte sentido de lealdade e patriotismo, que se manifestou na sua participação na defesa da colónia. Durante a Segunda Guerra Mundial, muitos portugueses serviram no Corpo de Defesa Voluntário de Hong Kong e, após a guerra, continuaram a apoiar a defesa civil através de organizações voluntárias. Este compromisso com a segurança e a estabilidade de Hong Kong demonstra a sua integração na sociedade local e o seu desejo de contribuir para o bem comum.
Cultura, Desporto e Legado: Preservação e Continuidade
A cultura portuguesa, com as suas tradições, língua e valores, desempenhou um papel importante na identidade da pequena região de Hong Kong. A criação de clubes sociais, como o Club Lusitano e o Club de Recreio, proporcionou um espaço de convívio, de lazer e de preservação da cultura portuguesa. Estes clubes foram importantes para a população no geral, pois ofereciam oportunidades de convívio social, de prática desportiva e de celebração das tradições portuguesas, demarcando um espaço de contacto essencial para tecer uma malha identitária de uma região tão única.
O desporto foi outro factor importante na coesão da comunidade portuguesa, que manteve um papel crucial até à actualidade. O Victoria Recreation Club, fundado em 1849, tornou-se um ponto de encontro popular para os nadadores portugueses, enquanto o Club de Recreio, fundado em Kowloon, desempenhou um papel importante no desenvolvimento de atletas locais. Figuras como Arnaldo de Oliveira Sales e Tony Cruz, lendário jockey, destacaram-se no panorama desportivo, contribuindo para o reconhecimento da comunidade portuguesa por entre uma elite maioritariamente inglesa.
Apesar das transformações sociais e políticas que ocorreram em Hong Kong ao longo dos anos, a comunidade portuguesa manteve-se activa e presente na cidade. A emigração de muitos portugueses, especialmente após os tumultos de 1967, reduziu o número de membros da comunidade, mas não diminuiu a sua importância. Actualmente, os descendentes de portugueses continuam a desempenhar um papel relevante em diversos sectores da sociedade de Hong Kong, desde a economia e a cultura até ao desporto e à política. Figuras como Ray Cordeiro, o lendário DJ conhecido como Uncle Ray, que manteve o mais longo contínuo programa de rádio da história, de 1970 a 2021, quando decidiu fechar a “loja” aos 96 anos de idade. Joe Junior é outra personagem de descendência lusa que encantou a população com a sua “Voice of Love”, voz do amor, através de românticas canções populares, que ainda soam até o dia de hoje.
Continuando pelo labirinto de salas desta corrente mostra, o visitante encontra-se rodeado de documentos “voadores” instalados no espaço, enquanto vozes em Patuá explicam receitas da cozinha macaense que tem como pano de fundo a imensa projecção de um mapa-múndi evidenciando o percurso de caravelas pelos oceanos. É nesse cenário que a história da comunidade portuguesa em Hong Kong se desdobra com uma história da busca pela integração, através de uma resiliência própria que reflecte a comunidade internacional lusa e faz reflectir sobre a importância da diversidade cultural e da adaptação. Ao olharmos para o passado, podemos ver como a comunidade portuguesa, já com várias influências das diversas colónias espalhadas pelo caminho até a Ásia, soube construir uma vida nova numa terra distante, literalmente do outro lado do mundo, adaptando-se às realidades locais e contribuindo para o desenvolvimento da colónia, que, entretanto, tornou-se numa das mais influentes cidades da história.
O que se leva, por entre inúmeras interpretações, é a realidade de que a presença lusitana em Hong Kong é um exemplo de como a diversidade cultural pode enriquecer uma sociedade e promover o entendimento entre os povos. A herança portuguesa no território foi, com esta colecção bem elaborada, enriquecida e preservada, não apenas como um testemunho do passado, mas como uma reflexão para o futuro, iluminando o caminho para uma sociedade mais inclusiva e mais rica em experiências e tradições. Deveras importante na actualidade, onde cada vez mais o distanciamento entre povos e culturas parece ser a norma, na nuvem de conflitos de pouca diplomacia internacional, que se encontra no panorama político actual.
Ao se preservarem as heranças, será possível garantir que as futuras gerações possam aprender com a história das múltiplas comunidades que montam uma sociedade e se inspirar nos seus valores de resiliência, adaptação e integração. É um legado pertinente, não apenas para os descendentes portugueses, mas para a humanidade como um grupo, capaz de construir pontes entre culturas e de criar uma comunidade mais forte e unida.
A iniciativa do Museu de História de Hong Kong em criar uma exposição sobre a comunidade portuguesa pretende ser um reconhecimento da sua importância e do seu contributo para a identidade da cidade. A preservação da memória, fruto de um trabalho longo, em desenvolvimento há cerca de 3 anos, é fundamental para promover um contínuo diálogo intercultural.
A “Série de Exposições Multifacetadas sobre Hong Kong” também inclui as mostras “Yau Tsim Mong – The Urban Transition and Community Bonds” e “Sojourning in Gold Mountain – Hong Kong and the Lives of Overseas Chinese in California”, que fomentam um papel semelhante, de aprendizagem sobre as múltiplas faces de uma urbanização dispersa por entre as ilhas de um canto no continente asiático, que um dia decidiu chamar-se de “Porto Perfumado”.
A série de exposições fica localizada na Galeria de Exposições, 2º andar, do Museu de História de Hong Kong, localizado em 100 Chatham Road South em Tsim Sha Tsui. O horário de funcionamento é segunda, quarta a sexta-feira, das 10h00 às 18h00; Sábados, domingos e feriados das 10h00 às 19h00. O museu está encerrado às terças-feiras (excepto feriados). Elói Carvalho – Macau in “Ponto Final”
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