Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Percorrendo e sorvendo as delícias do “Vale” das paixões

Vale das ameixas, de Hugo Almeida. Impressionante como o Autor consegue criar uma perturbação (saudável!) em nossas sensações. Justamente quando o inevitável (e doloroso?) toma conta de nós 

Destaco, inicialmente, a originalidade na estrutura do novo romance de Hugo Almeida, Vale das ameixas (Editora Sinete, 2004), composto de 300 capítulos ou fragmentos numerados, alguns mais longos, outros em que figura apenas uma frase. São flashes de um olhar que gira de modo caleidoscópico para flagrar momentos, espaços e situações diversas que não obedecem rigorosamente a uma cronologia, permitindo nosso trânsito livre para acompanhar o jogo móvel entre passado e presente.

Hugo Almeida nos oferece um romance e, de modo algum, se autodefine como um “aprendiz de empinador de prosa”, conforme suas palavras generosas colocadas no autógrafo concedido a mim (em tempo, sou autora de um livro intitulado O empinador de poemas). “Empinador” sim, porque nos eleva, assim como sua escrita, a uma esfera acima do previsível, que nos possibilita rever nossas condições reais em relação ao mundo, a nós mesmos e à escrita ficcional. Mas, aprendiz jamais!! Sua escrita revela, ao contrário, uma maturidade que se manifesta em muitos procedimentos estéticos. 

O grande trunfo dessa escrita é a coexistência da seriedade intelectual com uma leveza de espírito para manifestar o bom humor e reflexões que desarmam a previsibilidade.  Impressionante como o Autor consegue criar uma perturbação (saudável!) em nossas sensações. Justamente quando o inevitável (e doloroso?) toma conta de nós, como o envelhecimento, por exemplo, no fragmento 45. A consciência da passagem do tempo e a percepção do próprio corpo como resistente aos danos físicos acionam afirmações do narrador-protagonista Harley Tymozwski (Timo), polonês naturalizado brasileiro, como: “O corpo que me abriga hoje não é mais o mesmo de poucos – uns sete ou dez – anos atrás. [...] Vejo calhas e ruas envelhecidas pela chuva e pelo tráfego. Não sei como o corpo suporta quase cem anos de tanto movimento, de tantos líquidos. [...] Sei lá quantas piscinas de sangue o coração já bombeou. Quantos quilômetros cúbicos de ar e fumaça circularam pelos pulmões. Noite e dia, anos e anos sem nenhum descanso.” (p. 57)

Na verdade, o que sustenta esse corpo são suas ações generosas voltadas ao meio em que o narrador sobrevive, assim como a prática de uma consciência intelectual que não descansa, ao contrário, coloca em movimento na escrita uma diversidade de referências relacionadas à filosofia, à literatura, à religião, à história política, social, econômica. Isso sem contar o emprego de um vocabulário erudito, em português e línguas estrangeiras, numa saudável convivência com termos e expressões coloquiais, familiares que dão vida aos diálogos cotidianos. A propósito, a moderna estratégia para mostrar os discursos diretos despidos dos sinais convencionais confere vivacidade à narrativa, enfim, exibindo uma performance dinâmica que nos permite visualizar as cenas.

O romance se inicia de maneira original, com o fragmento ou capítulo Zero aberto com a palavra Disgreta, colocando em cena a personagem Benedita, cuidadora da casa e do narrador-protagonista, revelando aos leitores o desejo do ancião, doente e nas últimas, de que após sua morte ela cuidasse dos papéis que lhe entrega, “a senhora não vai ter muito trabalho. Está tudo pronto e pago”, conforme diz.  Interessante essa estratégia narrativa, porque pode nos dá conta não somente da origem do texto que nos oferece a seguir, como também dos laços afetivos entre o narrador e a criada (a ela estaria legando a casa em que viveram durante décadas ou teria deixado os trâmites do funeral resolvidos e pagos), com quem trocou aprendizagens em muitos momentos sobre objetos e atitudes simples, porém profundas em seu sentido humano.

Um dos eixos isotópicos da montagem ficcional de Hugo Almeida é, sem dúvida, a memória, como agenciadora de elementos múltiplos e enriquecedores da percepção perspicaz desse sujeito às voltas e a prestar contas com o passado... autobiográfico? Sim e não, porque a veracidade e intensidade na maneira como o narrador nos leva a penetrar em sua interioridade subjetiva e nos acolhe fazem com que nos tornemos cúmplices de suas experiências pessoais, mas, ao mesmo tempo, sabemos tratar-se de um pacto tramado pelos fios da ficcionalidade, pela qual as relações entre Eu e Outro são sempre mediadas, filtradas pela linguagem. O que lemos é (são) o (s) relato (s) de quem exatamente? Um “eu” em diálogo com outros “eus” que vão mostrando suas identidades de maneira fluida e incompleta, cabendo ao leitor complementar os diálogos por meio de seu imaginário, ou não, deixando que os vazios e cortes no tempo permaneçam assim, sem serem preenchidos. Em alguns momentos, a evocação do outro pelo sujeito narrador fica suspensa, através de perguntas que não são respondidas: “É forte o meu cada dia menor organismo. Sei, bem sei, poucos, muito poucos têm a minha saúde. A quem devo isso, minha mãe?” (p. 57). O fragmento se fecha com a interrogação no ar, como que se dissipando na narrativa, porque não precisa ser respondida, e o fragmento seguinte (46) inicia-se de modo a romper totalmente com alguma expectativa nesse sentido: “O que aconteceu com esse cachorro, que ficou assim careca, perguntou dona Benedita, quando Bóris chegou.” (p.58). 

Ah, as mulheres! São muitas, Laura, Biela, Laís, Léa, Alzira, Amanda, Núbia... o ser feminino é a inesgotável fonte de prazer para o corpo, para a alma e para a própria escrita do personagem narrador. A sensualidade, mais do que a sexualidade, aflora na narrativa como “a encenação de um aparecimento-desaparecimento”, lembro-me de Roland Barthes ao falar sobre o texto de fruição: é a intermitência que se torna erótica, pois o que seduz o leitor é a cintilação e não a exposição total (O prazer do texto, 1987, p. 16).

Não é demais dizer que Vale das ameixas parece resgatar uma fonte literária, o romance de aprendizagem (bildungsroman), gênero ficcional de origem alemã, cuja narrativa focaliza o processo de formação ou trajetória de amadurecimento de um personagem.(1)  No entanto, distante dois séculos do modelo original, o romance de Hugo Almeida alimenta-se de novas configurações, deslocando-o para a contemporaneidade, o que confere um trato singular à escrita ficcional do Autor. O percurso existencial do protagonista vai nos revelando situações que mesclam seriedade ou gravidade com a leveza de um espírito lúdico, ou seja, amargura e gracejo convivem ao longo da focalização das numerosas aprendizagens vividas por Timo. Nesse caso, o jogo intertextual por meio de alusões a escritores é uma arma eficaz para retratar episódios corriqueiros. Por exemplo, o aparecimento da neta de Benedita desorienta o narrador e o leva a evocar versos de Fernando Pessoa, “Se eu me casasse com a Kelly Dayse talvez fosse feliz [...] Não há tabacaria na minha rua. Nem Esteves ou metafísica. Sou gente? Pessoa? Sou um ninguenzinho, um ramo de capim que gosta de sombra e às vezes tem sede. O que há de ser de mim?” (p. 63).

Também nesse contexto destaco as recordações ligadas à sua atuação como professor (fragmentos/capítulos 66, 68 e 69), em que conceitos poéticos e trechos de poesias vão despontando em meio a cenas didáticas nos diálogos entre professor e alunos. Comentários curiosos e descobertas literárias amenizam o caráter sério ou maçante do universo teórico. Entre mestre e discípulos a aprendizagem se traça como uma troca sensível de apelos.

Como elemento essencial ao processo de formação recuperado pelo narrador em suas memórias, a religiosidade merece destaque. Mas claro que sua presença no romance não se dá como forma dogmática ou sistema doutrinário, nem seria possível numa escrita que estilhaça a lógica e imposição de sistemas opressores, instituídos. Por isso, o que figura ao longo da narrativa são reflexões iluminadas por um espírito cristão, revelando sentidos voltados (e votados?) à humanidade, à escuta do Outro, à consideração das diferenças sociais, à humildade, ao respeito para com os desejos individuais, ao Amor. Maiúsculo, porque ele parece adquirir estatuto de personagem, atuando de maneira múltipla nesse romance. 

Primordialmente, o sentimento que envolve as relações amorosas entre o narrador e as mulheres inesquecíveis de sua vida, mas também o amor pelas origens familiares, pela superação de tragédias históricas, pela cultura, pelos lugares estrangeiros visitados, pelas cidades em que residiu e reside, pela paisagem da natureza, pelos animais. Irrompem pelo romance, como verdadeiras epifanias da linguagem, frases extraídas da Bíblia, literais ou modificadas, em meio a comentários do narrador. Contudo, o respeito às fontes, seja teórica ou religiosa, coexiste com o propósito de diluir o peso sagrado ou absoluto da tradição, através do deslocamento do elevado para um plano mais plausível, compreensível e atual. 

Ao se referir à intertextualidade, por exemplo – “Imagino que já tenham ouvido falar em J. K., Julia Kristeva. Muito antes dela, antes de Cristo, já era assim: um texto é sopro ou seiva de outro. O verbo não se fez carne?” (p.131). A seguir exemplifica com o romance machadiano Memórias póstumas de Brás Cubas, cujo final remete a outro texto, de uma carta de Flaubert a Louise Colet, semelhante ao texto de Machado. Acontece que não há desmitificação da fonte e sim o intuito de movê-la para outra temporalidade – aquela em as leituras posteriores vão recriando o saber já consagrado. Como? Por meio de reflexões conceituais, como as que o narrador apresenta, nas perspectivas de João Alexandre Barbosa, Kristeva e Umberto Eco. Ou seja, a ficção se tinge pelas tintas do ensaio crítico.

Entretanto, pode-se dizer que a maturidade da percepção do narrador em sua trajetória (de vida e de escrita) atinge seu ápice em momentos nos quais aflora a consciência de suas imperfeições como ser humano. O tom confessional de certas fraquezas ou travessuras, sobretudo na esfera sexual, aparece sem subterfúgios. Uma delas, logo no início do romance, revela a atração por uma garota moradora na Rua do Cisne, numa casinha à beira de um barranco. Uma mistura de visão real e fantástica toma conta do narrador, mas não o afasta da atração pela menina, “Lulu, ela disse – mais sopro que palavra, Une âme simple”, da qual se arrepende e se questiona, “hoje estou aqui, neste cubículo, tentando recordar se houve o que não houve, o que me trouxe para este quarto escuro, silencioso e frio” (p. 11). Bem mais adiante no romance (fragmento 104) outra revelação: a atração física pela empregada da casa na infância, Valeriana, com quem se deleitava em abraços e afagos em seus seios macios: “Taradinho gostoso, dizia baixinho, e me afogava em seu corpo” (p. 105). No mesmo fragmento outro relato, mas relativo à escola, em uma briga feia com um colega – “Sangrei o nariz do garoto (era judeu? eu o xinguei? não sei, não me recordo)”. Foi tomado de extremo pavor pelas consequências de seu ato, pesadelos o assombravam – o castigo, a vingança dos amigos do garoto, a expulsão do colégio? –, mas nada lhe aconteceu. E mais um momento que confessa para o leitor: “Outra travessura, outro pecado, sussurra no meu ouvido, quer sair, ganhar tintas no caderno.”: o roubo de dinheiro de sua mãe para comprar balas, deixando pelo chão marcas de bosta de cachorro e o mau cheiro a se espalhar pela casa toda: “Rastros do crime. As balas mais amargas que engoli” (p. 105).

Como podemos ver, as paixões, que funcionam como sinônimo de ameixas, o termo presente no título do romance, movem não somente o narrador como também o leitor, ambos tomados pela volúpia com que os fatos se inscrevem na linguagem. Penetramos nesse “vale” (também figura no título), talvez uma metáfora da escavação profunda que fazemos em nós mesmos, à procura... de quê? ou de quem? Não importa, o que conta é a entrega apaixonada com que damos vida a nossas interrogações, ajudados pelas mãos do escritor Hugo Almeida.

Termino com uma passagem primorosa (fragmento 268), em que uma espécie de monólogo interior exemplifica a postura indagadora do narrador: 

Ouço minha mãe, eu osso ouço osso, do osso fazer um colosso, onde estou agora ao seu lado?, ela mais jovem que eu, como saída de uma foto colegial, sabe quem a cada lápide, eles nos ouvem, eu a ouço com meu peito órfão, andamos juntos, leves, dilúvio a ferro e fogo, quem está longe volta, o relógio sou eu [...] (p. 213). Heloísa Dias – Brasil

(1)  Lembremos o famoso romance de Johann Wolfgang von Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1795), protótipo desse gênero romanesco.

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Vale das ameixas, de Hugo Almeida. São Paulo: Editora Sinete, 248 páginas, R$ 65,00, 2024. Site: www.editorasinete.com.br E-mail: editorasinete@gmal.com Site do autor: https//hugoalmeidaescritor.com.br

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Maria Heloísa Martins Dias é doutora em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), professora aposentada pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), autora de O empinador de poemas, As distintas margens da escrita literária, O pacto primordial entre mulher e escrita (sobre a obra ficcional de Teolinda Gersão), Fernando Pessoa: um interlúdio intertextual, (Des)focagens da Literatura e outros livros.


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