Cheguei
a Toronto numa quarta-feira do mês de outubro de 1998. Dois dias depois, o
ritual iniciático da minha entrada no coração da comunidade portuguesa – bica
numa pastelaria portuguesa. Presente está ainda o cheiro da tinta dos jornais
comunitários que folheei naquela manhã de outono. A pessoa que me acompanhava
na peregrinação pelas romarias da saudade preveniu-me:
- Não
valem nada, estão cheios de erros!
Não
dei importância ao comentário. Sempre gostei de ser eu a desbravar caminho para
tirar as minhas conclusões. Por isso, peguei num exemplar de cada título e
levei-os para casa. Um até me foi extremamente útil, já que acabei por lá
descobrir o anúncio da casa para onde fui viver: muito bem localizada, e com
cujos senhorios mantenho estreitos laços de amizade.
Voltando
à imprensa comunitária. Ao folheá-la, tenho de reconhecer que, numa primeira
fase, fui obrigada a valer-me da ajuda de uma amiga para poder descodificar
anúncios que eu, virgem na linguagem das diásporas, não conseguia perceber. Algumas
profissões, como a de “briqueleiro” - só para dar um exemplo – eram-me
totalmente desconhecidas. A forma como se descreviam as casas também me escapava
ao entendimento que eu tinha da matéria. Retenho algum desse léxico que me
recorda a candura com que tantos vivem a aventura da integração. A título de exemplo,
um “basement desenterrado” que um dia vi para alugar numa transversal à
Bathurst, o que só abona a favor da imaginação com que cada um se adapta à plasticidade
de uma língua reinventada ao sabor das necessidades e do improviso.
Quanto
aos erros, é verdade que encontrei alguns, semeados aqui e ali por entre linhas
de prosa nem sempre bem alinhavadas. É também verdade que cheguei mesmo a
brincar com os autores de alguns, numa saudável convivência de companheiros das
mesmas estradas. Mas, à medida que fui ficando, e eu própria me deixei
contaminar por algumas interferências. Comecei a mudar de opinião e aprendi a
fazer leituras muito mais tolerantes do problema. Acabei mesmo por ter um
enorme apreço e uma profunda admiração por todos aqueles que, longe da sua terra,
teimam em continuar a usar a língua materna como veículo de comunicação, e a
mantê-la viva nos periódicos que gratuita e semanalmente são distribuídos.
Sou
agora parte desta família há vinte anos, tantos quantos os que se passaram
sobre a morte de Amália Rodrigues. Convidada por Frank Alvarez para ser
colaboradora de um jornal, que pretendia assinalar a passagem do milénio,
precisava apenas de um clique que me fizesse tomar a decisão, sem nunca
imaginar que fosse a diva a acioná-lo.
Toda
a baixa portuguesa de Toronto calava o silêncio do luto carregado: nas
fotografias exibidas nas montras da Dundas e College, nos jornais expostos nas
bancas das papelarias, nos livros repescados das prateleiras, nas músicas que
ecoavam do interior das casas especializadas em discos, CD e cassettes pirata.
Repentinamente, até o S. José de azulejos se rendia à dor dos dois braços
abertos àquela morte inesperada.
Nessa
hora longe da Pátria, observei a comunidade rendida a uma mulher que, povo como
nós, a todos representava na melopeia dos fados que chorosamente a celebravam.
O país galgou as fronteiras da geografia e veio quedar-se ali para que, juntos,
nos entregássemos à dor daquela partida. Fui para casa ouvir Amália, e dei por
mim a escrever um texto para lhe prestar a minha homenagem. Nasceu assim a
minha primeira crónica, aquela com que, desde então, passei a prestar a minha colaboração
semanal no Milénio.
Se
o caminho se faz caminhando, o da escrita não foge à regra. Dei por mim a
passar do gatinhar para a passada segura, determinada a seguir em frente. Já
não me imagino sem este pequeno exercício de reflexão sobre os pequenos nada do
quotidiano. É a minha higiene mental, o pedaço de intimidade que reservo entre
mim e o papel branco, na sua nudez natural, onde dou corpo e alma a mais um
instantâneo da vida. Aida Batista – Canadá In “Milénio
Stadium”
Sem comentários:
Enviar um comentário