I
Um passeio por ruas, praças,
largos, caminhos, rocios e becos do centro histórico do Rio de Janeiro é o que
oferece o mais recente livro do arquiteto e historiador Nireu Oliveira
Cavalcanti: Rio de Janeiro: Centro
Histórico Colonial 1567-2015 (Rio de Janeiro, Andrea Jackobsson Estúdio
Editorial/Fundação Carlos Chagas Filho de Apoio à Pesquisa no Estado do Rio de Janeiro
(Faperj), 2016), segunda edição revista e ampliada de Rio de Janeiro: Centro Histórico – 1808-1998 (Anima/Dresdner Bank
Brasil, 1998), fartamente ilustrado com fotos, aquarelas de Thomas Ender,
imagens da Coleção Maria Cecília e Paulo Geyer do Museu Imperial e desenhos do
próprio autor.
Refundindo o livro anterior,
desta vez, Cavalcanti procurou reconstituir as grandes transformações pelas
quais o centro histórico do Rio de Janeiro passou ao longo de 450 anos, desde a
fundação do povoado, passando pela chegada em 1808 da família real, que marcou
a elevação da cidade à sede da monarquia portuguesa, até estes últimos anos
marcados pela realização da Copa do Mundo de Futebol, em 2014, e da Olimpíada,
em 2016.
É de se observar que
Cavalcanti, pesquisador minucioso e persistente de arquivos brasileiros e
portugueses, foi quem contestou a invencionice – repetida indefinidamente por
historiadores alérgicos ao pó dos arquivos e limitados à leitura de livros
impressos, ainda que antigos – de que com a família real teriam chegado ao Rio
de Janeiro de 10 mil a 15 mil pessoas, garantindo, depois de compulsar
detidamente os registros manuscritos da época, que, na verdade, o príncipe
regente viera acompanhado de um seleto grupo que não chegava a 450 pessoas.
De fato, não é preciso ser
muito atilado para se concluir que, se o Rio de Janeiro em 1808 reunia 7.600
edificações em sua área urbana e uma população ao redor de 60 mil habitantes,
com certeza, a instalação abrupta na cidade de 15 mil pessoas haveria de ter
causado um alvoroço sem precedentes que, por certo, teria sido relatado em
documentos da época. E onde estão esses papeis de que não se tem notícias?
Como observa Cavalcanti na
introdução, o Rio de Janeiro dessa época refletia influências arquitetônicas e
urbanísticas da metrópole, mas, graças à exuberância de sua paisagem natural e
ao isolamento de sua população e ao desenvolvimento de uma linguagem com traços
locais, “foi surgindo uma cidade peculiar, dotada de extrema beleza a encantar
a todos que nela chegavam”.
II
Cavalcanti acrescenta que
muitos nomes dos logradouros cariocas tiveram origem em caminho, estrada,
azinhaga, campo, paragens, sertão ou rocio antes de serem denominados por rua,
beco, travessia, largo, praça ou praia, à época da passagem do espaço rural ou
semi-rural para o urbano. Assim, o leitor terá a oportunidade de saber a origem
de muitos logradouros conhecidos – e de outros nem tanto –, cujos nomes
chegaram até os nossos dias, e de muitos que ganharam novas denominações ao
longo dos tempos.
De início, a primeira
denominação de muitos logradouros partia da descrição do local em que se
situavam. Assim, uma via perpendicular à orla marítima chamou-se Desvio do Mar.
Havia ainda o Caminho dos Arcos (aqueduto da Carioca), da Forca ou da Polé, do
Boqueirão e as Ladeiras do Seminário ou do Poço do Porteiro ou ainda o Beco do
Cotovelo. Depois, quando o logradouro ganhava uma edificação mais
representativa, passava-se a chamá-lo por essa referência urbana, como a Rua da
Cadeia, do Aljube, da Ópera, do Guindaste, do Cemitério, do Rosário, da
Alfândega, da Candelária, da Boa Morte, do Açougue, do Quartel ou Detrás do
Hospício.
As praias também recebiam, às
vezes, denominação de acordo com a atividade que nelas seria desenvolvida. Um
exemplo é a Praia dos Mineiros, hoje parte da Rua Visconde de Itaboraí, onde
havia um cais, entre o Cais do Braz de Pina e o Arsenal da Marinha, no qual
ancoravam, principalmente, embarcações originárias dos portos do interior da
Baía da Guanabara. Lembra Cavalcanti, à pág. 61, que, como algumas dessas
embarcações saíam do Porto da Estrela carregadas de produtos e passageiros
oriundos de Minas Gerais, esse trecho ficou conhecido como Cais dos Mineiros e
também como Praia da Farinha.
Se se pode acrescentar algum
dado, é de se lembrar que foi na Praia dos Mineiros que o alferes Joaquim José
da Silva Xavier (1746-1792), o Tiradentes, à época em que ficou ausente de seu regimento
em Minas Gerais quase um ano e meio, tentou encetar algumas iniciativas
empresariais no Rio de Janeiro. Uma delas foi procurar arrendar oito braças de terrenos
na Praia dos Mineiros e seis braças na Praia de Dom Manoel para construir um
guindaste de madeira que serviria para o "embarque de animais quadrúpedes
e manufaturas" (Arquivo Histórico
Ultramarino (AHU), Lisboa, seção Rio de Janeiro, Avulsos, caixa 142, doc. 8,
18/8/1788).
No verbete referente à Praia
de Dom Manoel (pág. 44), hoje Rua Dom Manoel, lê-se que, no começo do século
XVII, formou-se um corredor de prédios que foi denominado Porto dos Padres da
Companhia (dos jesuítas), posteriormente mudado para Praia Dom Manoel (Lobo),
em homenagem ao governador da capitania do Rio de Janeiro que morreu
prisioneiro dos argentinos na defesa da Colônia do Sacramento em 7/1/1683.
III
Se muitos desses logradouros
históricos já não são assim tão visíveis na paisagem carioca, outros há que são
conhecidos por todo o Brasil, como a Rua da Alfândega, onde no prédio de número
70 situou-se por décadas até 2014 a sede da Confederação Brasileira de Futebol
(CBF). De início, esse logradouro chamou-se Caminho do Capueruçu e, mais tarde,
Rua Diogo de Brito Lacerda, em homenagem a um de seus ilustres moradores, mas depois
passou a se denominar Rua da Quitanda dos Mariscos. Com a construção do prédio
da Alfândega, na atual Rua Primeiro de Março, cujo portão ficava em frente ao
antigo Caminho do Capueruçu, ganhou o nome de Travessa da Alfândega.
Como observa Cavalcanti no
verbete referente à Rua da Alfândega (pag. 23), era no número 50 da travessa
que vivia dona Inácia Gertrudes de Almeida, amiga de Tiradentes, a quem o
alferes recorreu em busca de auxílio para encontrar refúgio, afinal oferecido por
um amigo seu, na Rua dos Latoeiros (atual Rua Gonçalves Dias), onde morava num
sobradinho o paulista Domingos Fernandes da Cruz. Foi nessa casa que a tropa do
vice-rei o prendeu.
Outro logradouro amplamente
conhecido por todo o País é o Largo da Carioca, cuja denominação mantém-se até
os dias de hoje. No início, diz o autor
(pág.33), esse logradouro era quase todo ocupado por uma lagoa que motivou
Antônio Felipe Fernandes, em 1610, a arrendá-la à Câmara de Vereadores para
servir-lhe de tanque de lavagem dos couros de seu curtume. Ali perto os
franciscanos construíram seu convento dedicado a Santo Antônio, que acabou por
dar nome ao sopé do morro em que estava situado. Foi a construção de um
chafariz para aproveitar a água do Rio Carioca, em 1723, que motivou a mudança
do nome do sítio para Largo da Carioca.
Além de logradouros que até
hoje podem ser localizados na paisagem carioca, há outros que se perderam com
as obras de modernização e revitalização do espaço urbano já no século XX,
especialmente com a derrubada do Morro do Castelo, onde praticamente começou a
cidade, e do Morro de Santo Antônio, e a construção da Avenida Rio Branco, que
inaugurada em 1906 foi em menos de um século praticamente destruída, pouco
restando de sua arquitetura original. Sem contar a abertura da Avenida
Presidente Vargas, inaugurada em 1942, que fez desaparecer da paisagem quase
mil prédios, entre eles várias igrejas setecentistas. Um vandalismo que só se
pode atribuir à incúria e à falta de cultura que caracteriza até hoje boa parte
dos homens públicos brasileiros.
IV
Nireu Cavalcanti (1944),
arquiteto formado em 1969 pela Faculdade Nacional de Arquitetura da
Universidade do Brasil, é doutor em História Social, com ênfase em História
Urbana, pelo Programa de Pós-Graduação do Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais do Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) desde 1997. Tem especialização em Planejamento Urbano e Regional e em
Metodologia do Ensino Superior pela Universidade Santa Úrsula (1979-1982). É
professor de pós-graduação da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade
Federal Fluminense (UFF), da qual foi seu diretor de 2003 a 2007.
É autor, com Hélio Brasil, de
Tesouro: o Palácio da Fazenda, da Era
Vargas aos 450 anos do Rio de Janeiro (Pébola-Casa Editorial, 2015); e de O Rio de Janeiro setecentista: a vida e a
construção da cidade da invasão francesa até a chegada da Corte (Zahar,
2003), seu trabalho de doutorado, com o qual obteve o primeiro lugar da 42ª
Premiação Anual do Instituto de Arquitetos do Brasil-RJ em 2004; Histórias e conflitos no Rio de Janeiro
colonial: da Carta de Caminha ao contrabando de camisinha – 1500-1807
(Civilização Brasileira, 2013); Arquitetos
e Engenheiros: sonho de entidade desde 1978 (Crea-RJ, 2007); Crônicas históricas do Rio colonial
(Civilização Brasileira/Faperj, 2004); Santa
Cruz – uma paixão (Relume-Dumará, 2004); e Construindo a violência urbana (Madana, 1986). Participou com
capítulos em vários livros. Adelto
Gonçalves - Brasil
_____________________________________
Rio de Janeiro: Centro
Histórico Colonial 1567-2015, de Nireu Oliveira
Cavalcanti. Rio de Janeiro: Andrea Jackobsson Estúdio Editorial, 148 págs.,
2016. Site: www.jakobssonestudio.com.br^
__________________________________________
Adelto Gonçalves é doutor
em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de
Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona
brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil,
2002), Bocage – o perfil perdido
(Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio
Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2012), e Direito e Justiça em
Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
Sem comentários:
Enviar um comentário