I
De onde veio a elite
senhorial brasileira? De Portugal, claro. Mas não de Lisboa. Veio, isso sim, em
grande parte, do Norte de Portugal e das ilhas açorianas. Na maioria, os
fundadores das famílias que constituíram a aristocracia rural, da qual
resultaram alguns influentes políticos que ainda hoje se destacam no cenário
nacional, chegaram aqui com uma mão na frente e outra atrás, em busca da
chamada “árvore das patacas”. À custa de muito esforço, obtiveram sesmarias,
escravizaram indígenas e tornaram-se latifundiários, escravocratas e
capitalistas, ou seja, “homens bons” no século XVIII. Quase todos seriam
pessoas de escassas letras.
Quem duvida que procure ler o
Dicionário Histórico do Vale do Paraíba
Fluminense, publicado pelo Instituto Histórico e Geográfico de Vassouras
(IHGV) e pela Prefeitura Municipal de Vassouras, com o apoio da Nova Imprensa
Oficial do Estado do Rio de Janeiro, organizado pelas historiadoras Irenilda
R.B.R.M. Cavalcanti, Neusa Fernandes e Roselene de Cássia Coelho Martins com a
colaboração de mais 21 pesquisadores, entre os quais se destacam Antonio
Henrique Cunha Bueno e Carlos Eduardo Barata, autores do Dicionário das famílias brasileiras (São Paulo, Editora
Ibero-Americana, 1999).
Quem tiver a sorte de colocar
as mãos neste livro vai conhecer um trabalho pioneiro sobre seis municípios
fluminenses – Vassouras, Barra do Piraí, Campos dos Goitacazes, Barra Mansa,
Resende e Volta Redonda –, que recupera a história de 45 famílias tradicionais,
além de reunir informações sobre instituições culturais, políticas,
educacionais e religiosas. Constitui ainda importante conjunto patrimonial e
histórico da época áurea do café que, no século XIX, marcou os destinos do Vale
do Paraíba Fluminense.
Uma importante família foi a
Andrade, que teve início na região com a chegada em 1751 de Cristóvão Rodrigues
de Andrade, natural do lugar de Nogueira da Costa na freguesia de São Pedro,
bispado do Viseu, que fica no encaixe entre o Centro e o Norte de Portugal.
Outra foi a Antunes Moreira, cujo patriarca no Brasil foi Manuel Antunes
Aldeia, natural da Aldeia da Ponte, termo da Vila dos Alfaiates, na Guarda.
II
Uma família que não se
destacou por sua riqueza, mas que ficou bastante conhecida no Brasil foi aquela
iniciada por João Augusto Soares Brandão (1844-1921), nascido no povoado de
Lomba da Maia, na ilha de São Miguel, nos Açores, aliás, a mesma terra do avô
materno deste resenhista, cujo pai era natural do lugar de Peias, freguesia
(hoje vila) de Carvalhosa, no concelho de Paços de Ferreira, Norte de Portugal.
Brandão adquiriu as primeiras
letras no Brasil, tendo trabalhado como caixeiro em uma padaria e charuteiro no
centro do Rio de Janeiro, antes de seguir a carreira artística, o que se deu
depois de assistir a várias peças do grande ator João Caetano (1808-1863).
Atuou em companhias mambembes que percorriam as cidades do interior do Rio de
Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Em 1883, passou a morar em Vassouras,
apresentando-se no teatro local. Um de seus rebentos foi o célebre ator e
comediante Brandão Filho (1910-1998).
Uma família que se destacou
em Vassouras foi a de Benjamin Benatar (1809-1859), que nada tinha de
português. Era natural do Gibraltar, Marrocos. Chegou ao Brasil em 1829,
instalando-se em Vassouras, em 1838, como dono de botequim, com jogo de bilhar,
e venda de secos e molhados. Casou-se em 1841 no Rio de Janeiro com a paulista
Brites Maria da Costa Gavião. Foi um dos comerciantes mais prósperos da cidade,
mas o episódio que o marcou para sempre foi a opção no leito de morte de morrer
como judeu. Por isso, embora fosse participante da Irmandade de Nossa Senhora
da Conceição de Vassouras, foi-lhe negada sepultura no único cemitério da
cidade.
Curiosamente, a família de
Vassouras mais conhecida também não era totalmente de origem portuguesa:
Lacerda Werneck, da aristocracia rural cafeeira, do qual descendia Carlos
Frederico Werneck Lacerda (1914-1977), jornalista, fundador do jornal Tribuna da Imprensa e da Editora Nova
Fronteira, do Rio de Janeiro, deputado federal e governador do Estado da
Guanabara (1960-1965), que teve importante papel na articulação do golpe
civil-militar de 1964, até que, mais tarde, decidiu romper com a ditadura
(1964-1985). Teve início esta família com Johan Werneck (c.1670-1722), que se
declarava de nação alemã, embora haja uma corrente de historiadores que indica
esta linhagem como de origem irlandesa.
Ao contrário do seu filho
Carlos, expoente do pensamento conservador, o tribuno e escritor Maurício de
Lacerda (1888–1959) destacou-se como advogado defensor de operários anarquistas
e comunistas. Era o ex-governador também neto paterno do magistrado Sebastião Gonçalves
de Lacerda (1864-1925), ministro do Supremo Tribunal Federal (1912) e ministro
da Viação e Obras Públicas no governo de Prudente de Morais (1894-1898). Sua
mãe foi Olga Caminhoá Werneck (1892–1979). Embora nascido no Rio de Janeiro,
Carlos Lacerda foi registrado em cartório de Vassouras e sempre esteve muito
ligado à cidade. Como o pai e os tios Paulo Lacerda e Fernando Paiva de
Lacerda, foi comunista até 1939, período em que combateu a ditadura de Getúlio
Vargas. Naquele ano, rompeu com o movimento, depois de concluir que aquela
doutrina levaria “a uma ditadura pior que as outras, porque muito mais
organizada”.
III
Uma vassourense ilustre foi
Eufrásia Teixeira Leite (1850-1930), mulher avançada para o seu tempo, que
viveu sua infância e adolescência numa bela residência senhorial conhecida como
a Casa da Hera. Recebeu educação esmerada, apreciava literatura, lia Johann
Wolfgang von Goethe (1749-1832) e contos de Edgar Allan Poe (1809-1849).
Viveu um romance de 14 anos
com Joaquim Nabuco (1849-1910), advogado, herdeiro de latifundiário
pernambucano e defensor da liberdade para os escravos, grande tribuno e
jornalista combativo, que despertava a ira dos conservadores que o consideravam
um “arrogante mulato nordestino e perigoso abolicionista”, segundo a
historiadora Neusa Fernandes. Aliás, quem quiser conhecer a fundo a história
desse romance deve procurar ler o livro Eufrásia
e Nabuco (Rio de Janeiro, Mauad, 2012), da historiadora Neusa Fernandes,
que teve acesso à longa correspondência trocada entre os amantes.
O Dicionário também inclui verbetes dedicados ao chefe quilombola
Manoel Congo, que teve seu memorial inaugurado em 1996. Manoel Congo, com sua
companheira Mariana Crioula, liderou uma rebelião que envolveu mais de 300
escravos em novembro de 1838. Sufocada a rebelião, Manuel Congo foi enforcado
em 1839. O memorial, um modesto monumento, hoje pode ser visto no antigo Largo
da Forca, localizado no bairro da Pedreira, a 100 metros do centro histórico de
Vassouras. Sobre o quilombo de Manoel Congo, Carlos Lacerda publicou em 1935 um
livreto assinado sob o pseudônimo Marcos.
Epifânio Moçambique, outro
líder da revolta de escravos ocorrida em 1838, é também recordado em verbete.
Coube ao coronel-chefe da Legião da Guarda Nacional, Francisco Peixoto de
Lacerda Werneck, também senhor de escravos e proprietário de fazenda de café,
organizar a grande força policial que sufocou a revolta.
IV
Neusa Fernandes é
historiadora, museóloga e pós-doutora em História e Literatura. Professora da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da UniRio, é sócia efetiva do
IHGV e pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq), além de autora de dez livros de História e de Museologia,
entre os quais A Inquisição em Minas
Gerais no século XVIII (Rio de Janeiro, Mauad, 3ª ed., 2014), outra obra
imperdível para historiadores e estudantes de História.
Irenilda Cavalcanti é doutora
em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professora
adjunta e coordenadora dos cursos de mestrado e graduação em História da
Universidade Severino Sombra (USS), de Vassouras. Sócia do IHGV, é autora de
capítulo do livro História Urbana:
memória, cultura e sociedade, publicado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Roselene de Cássia Coelho
Martins é graduada em História e pós-graduada em História do Brasil pela USS,
com mestrado em História Social pela mesma instituição. Sócia-fundadora do
IHGV, é consultora e pesquisadora em História na área de Arqueologia (em sítios
urbanos e rurais) e Arquitetura de patrimônios tombados. Adelto Gonçalves – Brasil
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Dicionário Histórico do
Vale do Paraíba Fluminense, de Irenilda R.B.R.M. Cavalcanti, Neusa
Fernandes e Roselene de Cássia Coelho Martins, com apresentação de Carlos
Wehrs, membro emérito do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB).
Vassouras-RJ: Instituto Histórico e Geográfico de Vassouras/Prefeitura
Municipal de Vassouras/Nova Imprensa Oficial do Estado do Rio de Janeiro, 344
págs., 2016.
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Adelto Gonçalves é doutor
em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de
Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona
brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil,
2002), Bocage – o perfil perdido
(Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio
Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2012), e Direito e Justiça em
Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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