Os Factos da
Quinzena
Outra
quinzena que finda, com vários factos notáveis. Comento alguns, segundo a
interpretação que deles faço. Mas tenho para mim que o mais destacado foi a
celebração do 14º aniversário do fim da guerra civil, em Angola, sua forma e
significado sub-reptício induzido por quem nos governa.
1º Facto
José Eduardo dos Santos
felicitou, calorosamente, o seu homólogo Sassou Nguesso, pela retumbante
vitória que comentamos na quinzena passada, onde grassa o desrespeito por
consensos anteriormente estabelecidos; nesta nossa África que volta a assistir
à formação de um sindicado de Chefes de Estado que não olham para os golpes
jurídico-constitucionais desestabilizadores que eles próprios desencadeiam,
para se dedicarem, em seguida, a vigiar, de forma cerrada, qualquer ideia de
outros tipos de apenas imaginados golpes. Ainda assim, exigem absoluto respeito
a si e ao Continente que consideram seu, a partir do dia em que, de algum modo
“tomam o poder”.
2º Facto
O escândalo do Processo dos 17
continuou a fazer eco a nível nacional e internacional, e desta vez (que não
seja só pela desvalorização do chamado ouro negro), com impacto tão forte que
se abafaram vozes de embaixadores itinerantes. Queira Deus que assim continue.
Males que vêm por bem, e depois do alerta dos bispos, talvez, humanos,
comecemos minimamente a ocupar o nosso lugar em Angola, no lugar de simples
cinzas da natureza inanimada.
3º Facto
Aconteceu a condenação de
Calupeteca (28 anos de prisão vs 24 anos de pena máxima, prevista na lei) e
acompanhantes, nas lides de uma estranha fé, como, pelo menos, se propala. Como
cidadão observador do que se tem passado neste país, não é difícil deixar-me
tentar pela conclusão de que estaremos perante mais um caso atípico, no
interesse de quem quer reforçar a mensagem de que “quem manda, manda; quem não
manda cumpre”. Como jurista que, ocupado em outras lides, não se debruçou
profundamente sobre o processo, numa área que não é da minha especialidade (não
é o caso do Processo dos 17), fico-me, por enquanto, pela surpresa da
existência de um cúmulo criminal que extravasa de tal forma a moldura penal
máxima. Mas, não se diga que o problema reside nos nossos códigos de normas
substantivas e adjectivas que nos vêm de recuados tempos coloniais, sem terem
sido substituídos até hoje, 40 anos depois da independência. O problema não
deveria residir aí, nesta mera questão de forma, pois, quem chega a juiz,
conhecendo bem o espírito e a ratio de um estado proclamado democrático e de
direito, deveria saber com que linhas se coser, especialmente, no âmbito de uma
filosofia e uma metodologia jurídicas que lhe correspondem. Aqui sim, posso
aceitar a paciência de esperar pelo douto acórdão do Tribunal Supremo, para o
qual ainda reservo alguma réstia da minha consideração, pelo menos para
matérias de natureza semelhante.
4º Facto
Que problema é este que se
restabelece em Moçambique, após um processo de “pacificação” que parecia bem
mais exemplar que o angolano; onde não fora necessária a eliminação física de
quaisquer dos principais protagonistas da menos prolongada guerra civil,
principal mérito do ex-presidente Joaquim Chissano, na altura em funções e que
hoje, fora da cadeira presidencial, nos surpreende com um apelo por uma solução
menos “mandelista”, provavelmente, mais “angolana”? Narcisismo intelectual à
parte, invoco, novamente, a minha última obra, “Angola: estado-nação ou estado
etnia política?”, em que Angola aparece como caso de estudo, em torno da desadequação
do modelo do estado-nação euro-ocidental à realidade, particularmente, da
África sub-saariana, o que não justifica a superveniência de soluções
“chico-espertas” como regimes do tipo “eduardista (pós-paz)” ou outras
precipitações.
5º Facto ou o imbróglio do
presidente Jacob Zuma, na África do Sul
Na minha reflexão, na obra
acima referida, afinal muito próximo daquilo que Lopo do Nascimento refere no
breve discurso de despedida da vida política, na Assembleia Nacional, apresento
(como disse na quinzena anterior, a propósito do relativa serenidade em
sucessivas eleições cabo-verdianas) o modelo sul-africano como mais perto do
que seria ideal, nos estados continentais de África: relativo reconhecimento
das especificidades étnico-regionais e a inclusão político-institucional da
“componente branca”, reconhecida como indispensável no completamento da
construção do estado moderno em África, desencadeado pela ocupação política
efectiva do Continente pela Europa, não obstante os traumas provocados à
generalidade dos autóctones africanos, durante a colonização. Embora, perante o
exemplo do Zimbabwe, com uma arquitectura inicialmente semelhante, e perante,
quiçá, a lentidão da efectivação de alguns actos de discriminação positiva que
se impõe em certos casos, para obviar as discrepâncias do passado colonial, a
garantia de prevalência do modelo não seja absoluta. A atestar a relativa
eficácia do modelo sul-africano é ver como um chefe de estado, como Zuma, foi
obrigado, ao menos, a pedir desculpas pelos seus excessos, ouvindo críticas
abertas de alguns correligionários do seu próprio poderoso ANC, sem falar da
permissão do “barulho” da oposição” e de um pronunciamento desfavorável do
Tribunal Constitucional. Imagine-se uma comparação com a situação de Angola,
onde perante os comportamentos mais anómalos do Executivo, em tempo de paz,
quem deve tremer é quem reclame, com as vozes de deputados da oposição
engavetadas, e, cá fora, os mais ousados assustados dentro dos seus lares e
locais de trabalho, quando não enjaulados por juízes, sem dó nem piedade. E o
poderoso MPLA tornado muralha, em defesa do “chefe” e dos seus. O mesmo se
passa por muitas das nossas áfricas, em estados que, incapazes de absorverem as
diferenças, autênticas máquinas de exclusão do que seja estranho a “quem
manda”, se tornaram permanentes plataformas de explosão de conflitos. Daí o
atraso endémico, em que nos encontramos, estou convencido. Caso para a UA,
quiçá a ONU se debruçarem sobre esta situação em moldes mais estratégicos, em
vez de viverem em constante e dispendiosa situação de bombeiros.
6º Facto
No quadro que acaba de ser
descrito, celebrou-se o 4 de Abril, dia da Paz que marcou o fim de uma
prolongada guerra civil, em Angola, cuja natureza verdadeira é ainda tabu
aprofundar. Nem vou eu tentar fazê-lo aqui, espaço tão curto para me meter em
aventura tamanha.
Depois do 4 de Abril, o poder
em Angola, aparentemente, o mesmo que já justificou a sua essência para
defender a “superior” causa da construção do “socialismo real” e, depois das
eleições de 1992, para evitar a vulgarização do desprezo pela vontade popular
através do voto, não precisa agora de se justificar para nada. Faz, desfaz e
encobre (ou nem precisa de fazê-lo). Bem se vê porque se evitou falar sequer de
uma espécie de “justiça de transição” (que desde então, pessoalmente, sempre
defendi) para que a reconciliação nacional permaneça o que hoje temos: uma
suposta oferta de vencedores (que celebram todos os anos as glórias das
batalhas de Kifagondo e Cuito Canavale), contra vencidos que para sobreviverem
têm de alinhar com um discurso retrospectivo, que tende constantemente a torcer
e contorcer os nossos pescoços, para que nossos olhos se voltem permanentemente
para as supostas glórias de um passado, enquanto os problemas do presente nos
dilaceram. Assim é que, se bem o ouvi, um antigo cabo de guerra, perante o
colapso da saúde, o acumular de lixos nas principais cidades de Angola e com
uma alta assustadora de preços de produtos básicos a penalizar a maioria, tudo
devido à usurpadora ganância e à irresponsabilidade gestora em “tempo de vacas
gordas” (e não propiamente por guerras antigas ou mais directamente pela súbita
baixa do preço do petróleo, como bem o frisaram os bispos de Angola),
surpreende-nos com este despropositado apaga-fogo: o de que a pior crise vivida
em Angola foi a guerra, como quem diz: não questionem as causas da crise actual
que, como se dizia antigamente, “1961 foi pior”. Deve ter sido esse o mote para
se celebrar este 4 de Abril. No Huambo, onde me encontrei durante a semana da
heroica celebração, perante o avolumar dos lixos e o desaparecimento de belos
jardins, estradas esburacadas e o grito de mães aflitas, sem saber o que fazer
com os filhos e consigo próprios, ante o esvaziamento das reservas de
subsistência, os programas radiofónicos locais só teciam louvores, até de
representantes de partidos da oposição, ao “Arquitecto da Paz”.
Estou convencido que com este
tipo de paz, a paz não tem futuro sustentável. A bajular constantemente os
detentores do poder, como se o seu exercício discricionário fosse propriedade
sua, colocamo-nos novamente perante o perigo do retorno de conflitos
inesperados, que não serão travados à custa do sacrifício dos direitos, liberdades
e garantias de pessoas mais intransigentes contra este estado de coisas, como
os chamados “revus”. Se nem todos podemos ir às ruas para apanhar cacetadas,
como esses jovens valorosos e combativos, que como costumo dizer, são os únicos
que entenderam onde está o problema fundamental, encontremos, “mais velhos”,
nos partidos políticos, na sociedade civil e cada um no seu posto,
especialmente, como intelectuais, uma forma de dizer “não!” a este tipo de paz
cheia de tensões, mortes e castigos imerecidos. Marcolino Moco – Angola in “Moco Produções”
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Marcolino
José Carlos Moco – Nasceu em Chitue, Município de Ekunha, Huambo a
19 de Julho de 1953. Licenciado em Direito e mestre em Ciências
Jurídico-Políticas pela Universidade Agostinho Neto, e doutorando em Ciências
Jurídico-Políticas na Universidade Clássica de Lisboa. Advogado, Consultor, Docente
Universitário, Conferencista. Primeiro-ministro
de Angola, de 2 de Dezembro de 1992 a 3 de Junho de 1996 e Secretário-Executivo
da CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – de 1996 a 2000.
Governador de duas províncias: Bié e Huambo, no centro do país, entre 1986 e
1989, Ministro da Juventude e Desportos, 1989/91.
Marcolino
Moco & Advogados - Ao serviço da Justiça e do Direito
Marcolino
Moco International Consulting
www.marcolinomoco.com
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Portugal, Torre Zimbo. Nº 704, 7º andar
Tel:
930181351/ 921428951/ 923666196
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