Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

sábado, 30 de abril de 2016

Angola – Os factos da quinzena III

Os Factos da Quinzena

Outra quinzena que finda, com vários factos notáveis. Comento alguns, segundo a interpretação que deles faço. Mas tenho para mim que o mais destacado foi a celebração do 14º aniversário do fim da guerra civil, em Angola, sua forma e significado sub-reptício induzido por quem nos governa.

1º Facto

José Eduardo dos Santos felicitou, calorosamente, o seu homólogo Sassou Nguesso, pela retumbante vitória que comentamos na quinzena passada, onde grassa o desrespeito por consensos anteriormente estabelecidos; nesta nossa África que volta a assistir à formação de um sindicado de Chefes de Estado que não olham para os golpes jurídico-constitucionais desestabilizadores que eles próprios desencadeiam, para se dedicarem, em seguida, a vigiar, de forma cerrada, qualquer ideia de outros tipos de apenas imaginados golpes. Ainda assim, exigem absoluto respeito a si e ao Continente que consideram seu, a partir do dia em que, de algum modo “tomam o poder”.

2º Facto

O escândalo do Processo dos 17 continuou a fazer eco a nível nacional e internacional, e desta vez (que não seja só pela desvalorização do chamado ouro negro), com impacto tão forte que se abafaram vozes de embaixadores itinerantes. Queira Deus que assim continue. Males que vêm por bem, e depois do alerta dos bispos, talvez, humanos, comecemos minimamente a ocupar o nosso lugar em Angola, no lugar de simples cinzas da natureza inanimada.

3º Facto

Aconteceu a condenação de Calupeteca (28 anos de prisão vs 24 anos de pena máxima, prevista na lei) e acompanhantes, nas lides de uma estranha fé, como, pelo menos, se propala. Como cidadão observador do que se tem passado neste país, não é difícil deixar-me tentar pela conclusão de que estaremos perante mais um caso atípico, no interesse de quem quer reforçar a mensagem de que “quem manda, manda; quem não manda cumpre”. Como jurista que, ocupado em outras lides, não se debruçou profundamente sobre o processo, numa área que não é da minha especialidade (não é o caso do Processo dos 17), fico-me, por enquanto, pela surpresa da existência de um cúmulo criminal que extravasa de tal forma a moldura penal máxima. Mas, não se diga que o problema reside nos nossos códigos de normas substantivas e adjectivas que nos vêm de recuados tempos coloniais, sem terem sido substituídos até hoje, 40 anos depois da independência. O problema não deveria residir aí, nesta mera questão de forma, pois, quem chega a juiz, conhecendo bem o espírito e a ratio de um estado proclamado democrático e de direito, deveria saber com que linhas se coser, especialmente, no âmbito de uma filosofia e uma metodologia jurídicas que lhe correspondem. Aqui sim, posso aceitar a paciência de esperar pelo douto acórdão do Tribunal Supremo, para o qual ainda reservo alguma réstia da minha consideração, pelo menos para matérias de natureza semelhante.

4º Facto

Que problema é este que se restabelece em Moçambique, após um processo de “pacificação” que parecia bem mais exemplar que o angolano; onde não fora necessária a eliminação física de quaisquer dos principais protagonistas da menos prolongada guerra civil, principal mérito do ex-presidente Joaquim Chissano, na altura em funções e que hoje, fora da cadeira presidencial, nos surpreende com um apelo por uma solução menos “mandelista”, provavelmente, mais “angolana”? Narcisismo intelectual à parte, invoco, novamente, a minha última obra, “Angola: estado-nação ou estado etnia política?”, em que Angola aparece como caso de estudo, em torno da desadequação do modelo do estado-nação euro-ocidental à realidade, particularmente, da África sub-saariana, o que não justifica a superveniência de soluções “chico-espertas” como regimes do tipo “eduardista (pós-paz)” ou outras precipitações.

5º Facto ou o imbróglio do presidente Jacob Zuma, na África do Sul

Na minha reflexão, na obra acima referida, afinal muito próximo daquilo que Lopo do Nascimento refere no breve discurso de despedida da vida política, na Assembleia Nacional, apresento (como disse na quinzena anterior, a propósito do relativa serenidade em sucessivas eleições cabo-verdianas) o modelo sul-africano como mais perto do que seria ideal, nos estados continentais de África: relativo reconhecimento das especificidades étnico-regionais e a inclusão político-institucional da “componente branca”, reconhecida como indispensável no completamento da construção do estado moderno em África, desencadeado pela ocupação política efectiva do Continente pela Europa, não obstante os traumas provocados à generalidade dos autóctones africanos, durante a colonização. Embora, perante o exemplo do Zimbabwe, com uma arquitectura inicialmente semelhante, e perante, quiçá, a lentidão da efectivação de alguns actos de discriminação positiva que se impõe em certos casos, para obviar as discrepâncias do passado colonial, a garantia de prevalência do modelo não seja absoluta. A atestar a relativa eficácia do modelo sul-africano é ver como um chefe de estado, como Zuma, foi obrigado, ao menos, a pedir desculpas pelos seus excessos, ouvindo críticas abertas de alguns correligionários do seu próprio poderoso ANC, sem falar da permissão do “barulho” da oposição” e de um pronunciamento desfavorável do Tribunal Constitucional. Imagine-se uma comparação com a situação de Angola, onde perante os comportamentos mais anómalos do Executivo, em tempo de paz, quem deve tremer é quem reclame, com as vozes de deputados da oposição engavetadas, e, cá fora, os mais ousados assustados dentro dos seus lares e locais de trabalho, quando não enjaulados por juízes, sem dó nem piedade. E o poderoso MPLA tornado muralha, em defesa do “chefe” e dos seus. O mesmo se passa por muitas das nossas áfricas, em estados que, incapazes de absorverem as diferenças, autênticas máquinas de exclusão do que seja estranho a “quem manda”, se tornaram permanentes plataformas de explosão de conflitos. Daí o atraso endémico, em que nos encontramos, estou convencido. Caso para a UA, quiçá a ONU se debruçarem sobre esta situação em moldes mais estratégicos, em vez de viverem em constante e dispendiosa situação de bombeiros.

6º Facto

No quadro que acaba de ser descrito, celebrou-se o 4 de Abril, dia da Paz que marcou o fim de uma prolongada guerra civil, em Angola, cuja natureza verdadeira é ainda tabu aprofundar. Nem vou eu tentar fazê-lo aqui, espaço tão curto para me meter em aventura tamanha.

Depois do 4 de Abril, o poder em Angola, aparentemente, o mesmo que já justificou a sua essência para defender a “superior” causa da construção do “socialismo real” e, depois das eleições de 1992, para evitar a vulgarização do desprezo pela vontade popular através do voto, não precisa agora de se justificar para nada. Faz, desfaz e encobre (ou nem precisa de fazê-lo). Bem se vê porque se evitou falar sequer de uma espécie de “justiça de transição” (que desde então, pessoalmente, sempre defendi) para que a reconciliação nacional permaneça o que hoje temos: uma suposta oferta de vencedores (que celebram todos os anos as glórias das batalhas de Kifagondo e Cuito Canavale), contra vencidos que para sobreviverem têm de alinhar com um discurso retrospectivo, que tende constantemente a torcer e contorcer os nossos pescoços, para que nossos olhos se voltem permanentemente para as supostas glórias de um passado, enquanto os problemas do presente nos dilaceram. Assim é que, se bem o ouvi, um antigo cabo de guerra, perante o colapso da saúde, o acumular de lixos nas principais cidades de Angola e com uma alta assustadora de preços de produtos básicos a penalizar a maioria, tudo devido à usurpadora ganância e à irresponsabilidade gestora em “tempo de vacas gordas” (e não propiamente por guerras antigas ou mais directamente pela súbita baixa do preço do petróleo, como bem o frisaram os bispos de Angola), surpreende-nos com este despropositado apaga-fogo: o de que a pior crise vivida em Angola foi a guerra, como quem diz: não questionem as causas da crise actual que, como se dizia antigamente, “1961 foi pior”. Deve ter sido esse o mote para se celebrar este 4 de Abril. No Huambo, onde me encontrei durante a semana da heroica celebração, perante o avolumar dos lixos e o desaparecimento de belos jardins, estradas esburacadas e o grito de mães aflitas, sem saber o que fazer com os filhos e consigo próprios, ante o esvaziamento das reservas de subsistência, os programas radiofónicos locais só teciam louvores, até de representantes de partidos da oposição, ao “Arquitecto da Paz”. 

Estou convencido que com este tipo de paz, a paz não tem futuro sustentável. A bajular constantemente os detentores do poder, como se o seu exercício discricionário fosse propriedade sua, colocamo-nos novamente perante o perigo do retorno de conflitos inesperados, que não serão travados à custa do sacrifício dos direitos, liberdades e garantias de pessoas mais intransigentes contra este estado de coisas, como os chamados “revus”. Se nem todos podemos ir às ruas para apanhar cacetadas, como esses jovens valorosos e combativos, que como costumo dizer, são os únicos que entenderam onde está o problema fundamental, encontremos, “mais velhos”, nos partidos políticos, na sociedade civil e cada um no seu posto, especialmente, como intelectuais, uma forma de dizer “não!” a este tipo de paz cheia de tensões, mortes e castigos imerecidos. Marcolino Moco – Angola in “Moco Produções”


_____________________________

Marcolino José Carlos Moco – Nasceu em Chitue, Município de Ekunha, Huambo a 19 de Julho de 1953Licenciado em Direito e mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade Agostinho Neto, e doutorando em Ciências Jurídico-Políticas na Universidade Clássica de Lisboa. Advogado, Consultor, Docente Universitário, Conferencista. Primeiro-ministro de Angola, de 2 de Dezembro de 1992 a 3 de Junho de 1996 e Secretário-Executivo da CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – de 1996 a 2000. Governador de duas províncias: Bié e Huambo, no centro do país, entre 1986 e 1989, Ministro da Juventude e Desportos, 1989/91.  



Marcolino Moco & Advogados - Ao serviço da Justiça e do Direito

Marcolino Moco International Consulting 

www.marcolinomoco.com

Avenida de Portugal, Torre Zimbo. Nº 704, 7º andar
Tel: 930181351/ 921428951/ 923666196
Luanda - Angola

Sem comentários:

Enviar um comentário