Resumo:
Este
trabalho procura resgatar os nove anos da administração de D. Bernardo José
Maria de Lorena e Silveira à frente da capitania de São Paulo (1788-1797),
período em que o governador procurou consolidar a economia, incrementando a
agricultura, além de abrir caminhos para a circulação da produção de gêneros,
especialmente do açúcar, de que a chamada Calçada do Lorena, ao pé da Serra do
Mar, em Cubatão, hoje em ruínas, é ainda o melhor exemplo. O governo Lorena,
além de atuar em defesa e manutenção dos territórios meridionais e das
fronteiras estabelecidas pelo Tratado de El Pardo, de 1761, apesar das poucas
forças de que dispunha, destacou-se pela maneira harmoniosa com que procurou
desempenhar sua administração, ganhando por isso o apoio das elites da
capitania.
Palavras-chave:
Brasil –
século XVIII – capitania de São Paulo
1. Introdução
Este
trabalho pretende analisar os nove anos do governo Lorena (1788-1797),
mostrando a atuação do governador para conciliar os interesses da Metrópole com
as reivindicações das lideranças locais que, não raro, viam com reservas os
representantes da Coroa. É de lembrar que Lorena recebeu uma capitania mais
organizada do que os seus antecessores e soube, sobretudo, aproveitar-se disso
para colocá-la numa situação mais favorável em relação às demais da América
portuguesa. Em pouco tempo, a capitania paulista ganhou maior importância
política e econômica, como prova o papel de destaque que teve na gestação do
processo que resultou na separação da colônia do Reino.
É de
ressaltar que o período anterior sempre foi apontado por contemporâneos e
historiadores mais antigos como de extrema miséria e de obscurantismo na
história da América portuguesa, que coincide com a perda de sua autonomia em
1748, depois de ter alcançado uma situação destaque, à época da capitania
vicentina, como centro propulsor da penetração para o interior de América, o
que se deu a partir da descoberta das minas de ouro. Este trabalho contesta e
relativiza essa visão, mostrando que essa ideia, provavelmente, fazia parte de
uma estratégia política das elites contemporâneas para reivindicar melhorias,
pois esse quadro não se justifica totalmente.
2. São Paulo, um entroncamento de
vias
Ao
contrário do que a historiografia tradicional sempre defendeu, a capitania de
São Paulo não vivia isolada nem tampouco estava despovoada, sobrevivendo de uma
economia de subsistência, à época da chegada do governador D. Luís Antônio de
Sousa Botelho, o morgado de Mateus, em 1765, quando deixou de ficar adjudicada
à capitania do Rio de Janeiro. Esse período que se iniciara em 1748 sempre foi
visto por historiadores mais antigos, como Roberto Simonsen (1889-1948) e Caio
Prado Júnior (1907-1990), como de completa decadência e isolamento em relação
às demais regiões da América portuguesa, em comparação com as capitanias do
Nordeste e da zona de mineração, que apresentavam padrões de crescimento
superiores.
Hoje,
esse conceito tem sido revisto ou relativizado, ao reconhecer-se que, se São
Paulo não dispunha de uma economia pautada na grande lavoura monocultura e
escravista nem na extração mineral, teve participação decisiva no avanço em
direção ao Oeste e à descoberta das minas de ouro ao final do século XVII (MENDES,
2004, p. 2), além de, geograficamente, localizar-se no entroncamento de
importantes circuitos regionais, terrestres e fluviais (MOURA, 2006, p. 42). E
que esse fator continuou a pesar decisivamente no rumo do desenvolvimento da
capitania.
Também
não se pode admitir que a capitania, entre os anos de 1765 e 1822, tenha
passado por enfraquecimento político ou decadência econômica, já que, no
período, além de aumento demográfico, a capital continuou a atuar como
peça-chave das principais vias, fluviais e terrestres, mercantis e de
comunicação, o que sempre tendeu a fortalecer o circuito vicinal de comércio,
ou seja, a economia de abastecimento local (MOURA, 2006, p. 43).
A
economia da capitania de São Paulo sempre esteve baseada na comercialização dos
produtos, servindo como entreposto de cargas. Até porque a lavoura praticada na
região era feita em pequenas propriedades, sem larga escala, voltada mais para
o abastecimento local e não para a exportação. A mão de obra escrava majoritária
tampouco vinha da África, mas do elemento local, ou seja, o indígena capturado
nos sertões. Enquanto as demais capitanias localizadas à beira do Oceano
Atlântico concentravam seu interesse no tráfico marítimo com Portugal, especialmente
para a venda da produção canavieira, os moradores do Planalto de Piratininga
estavam preocupados com o sertão inexplorado e as riquezas que poderiam
encontrar.
Por
isso, quando o governador Lorena chegou para exercer o seu primeiro triênio,
não encontrou uma capitania depauperada ou isolada, mas em desenvolvimento. E
tratou de dar continuidade a uma política de fortalecimento de sua economia,
procurando, na medida do possível, encetar uma série de obras de melhoramento
dos caminhos do interior em direção à capital e, principalmente, ao litoral,
pois os produtores agrícolas só se sentiriam estimulados a produzir mais se
pudessem escoar a sua produção para outras capitanias e para o Reino.
3. Duas medidas fundamentais
Foi o
que o levou a tomar duas medidas que são fundamentais e aparecem como a marca
de seu governo. Uma delas foi a proibição de que embarcações saíssem dos demais
portos da capitania (São Sebastião, Ubatuba, Cananeia e Paranaguá) em direitura
ao Rio de Janeiro, sem fazer escala em Santos, onde deveriam pagar dízimas à
Alfândega. Se assim não o fizessem, continuariam a pagar dízimas na Alfândega
do Rio de Janeiro, com sensíveis prejuízos à arrecadação da capitania de São
Paulo.
Embora
tenha causado muitos protestos por parte dos produtores e comerciantes de
outros portos, a medida foi fundamental para canalizar a produção de açúcar e
outros gêneros para o porto de Santos, que, a partir de seu governo, passou a
comercializar diretamente com a Europa, ou seja, com Portugal. Ao partir do
princípio de que governar é estabelecer prioridades, Lorena tomou uma decisão
que seria fundamental para abrir literalmente o caminho para o desenvolvimento
da capitania, determinando que toda carga produzida na capitania teria de
passar primeiro pelo porto de Santos. A medida permitiu que o porto de Santos
passasse a receber mais navios e a fazer o comércio diretamente com Portugal.
Mais: a partir daí, as embarcações passaram a vir a Santos porque seus
armadores entendiam que não retornariam mais vazias ou com meia carga.
Obviamente,
isso causou descontentamento entre os grupos prejudicados: intermediários do
Rio de Janeiro que atravessavam os negócios dos paulistas, produtores que
costumavam escoar a produção por outros portos da capitania e até o vice-rei,
que viu a arrecadação da Alfândega fluminense cair. Em compensação, as rendas
da Alfândega santista aumentaram sobremaneira porque antes os produtos tinham
de passar pelo Rio de Janeiro e lá é que pagavam as taxas.
Ao
priorizar o caminho para o porto de Santos, em detrimento dos demais povoados
de marinha, Lorena levou basicamente em conta a proximidade daquela vila à
capital, ainda que a Serra do Mar se afigurasse como uma região praticamente
impenetrável, tantos eram os obstáculos que se apresentavam. Mas, da mesma
forma, esses obstáculos se colocariam, se tivesse optado por São Sebastião,
Ubatuba, Cananeia ou Paranaguá, vilas mais distantes da cidade de São Paulo.
Por
outro lado, na capital e mesmo na vila de Santos, com certeza, Lorena sabia que
contaria com maior apoio financeiro e político para os seus planos de expansão,
em função dos interesses econômicos de produtores e comerciantes. Ao mesmo
tempo, atenderia aos interesses dos donos de engenho do interior da capitania,
que defendiam o escoamento da produção pelo porto santista. Mas encontrou
também oposição na Câmara de São Paulo, já que alguns comerciantes da capital
não tinham interesse em que a vila de Santos viesse a assumir uma posição de
liderança na capitania.
4. Uma briga de interesses
Essa
briga de interesses vinha de longe. É de lembrar que a família Andrada, à
frente de outros negociantes da vila de Santos, tentou em 1768, à época do
governo do morgado de Mateus, autorização para instalar uma casa que
controlasse o comércio atacadista da capitania com o Reino e outros portos da
América portuguesa (MOURA, 2006, p. 48). Essa teria sido a primeira iniciativa
de um grupo de comerciantes no sentido de estabelecer uma casa que funcionasse
como intermediária, comprando os gêneros produzidos na capitania para
revendê-los aos negociantes do Reino, que, por sua vez, distribuíam-nos para os
demais portos da Europa e até da Ásia.
A
ideia, porém, não foi adiante porque muitos produtores estavam acostumados a
passar as suas mercadorias diretamente para o Rio de Janeiro e outros
funcionavam como “caixeiros” desses negociantes fluminenses. Houve, portanto,
também reação por parte de forças que controlavam a Câmara de São Paulo, pois
não queriam perder o controle que exerciam sobre os circuitos regionais. E
assim a sugestão foi bombardeada sob a alegação de que não havia gêneros no
porto de Santos suficientes para satisfazer a necessidade de consumo dos
moradores da cidade de São Paulo e revenda ao mercado externo (Atas da Câmara,
v. XV, 1768, p. 339-340).
Esse receio
de que o controle do mercado inter-regional caísse nas mãos de comerciantes
santistas reflete-se na morosidade e má vontade com que a Câmara de São Paulo
trataria nos anos seguintes as obras de construção e manutenção dos caminhos em
direção ao mar. Só quando esse equilíbrio de forças foi rompido com a presença
de um representante do Reino a favor da melhoria desses caminhos é que isso se
tornou possível.
Para
tanto, foi fundamental a maneira como o governador capitalizou o apoio de
vários grandes comerciantes para a execução dos planos que trazia da Corte,
especialmente José Arouche de Toledo Rendon, José Vaz de Carvalho, Francisco
José de Sampaio Peixoto, Salvador Nardi de Vasconcelos Noronha e Antônio José
Vaz, camaristas e importantes negociantes e produtores locais que, a 17 de
dezembro de 1791, participaram de uma academia na Câmara de São Paulo em
homenagem ao governador, que então já levava quase três anos e meio à frente da
capitania.
Lorena
chegou do Reino com a mesma ideia do grupo liderado pela família Andrada em
1768. Só que, em vez de uma casa comercial estabelecida por comerciantes
santistas, quem funcionaria como atravessador dos negócios e fomentador de
crédito aos produtores e comerciantes de menor expressão seria um preposto
indicado diretamente por Jacinto Fernandes Bandeira, o grande negociante de
Lisboa. Obviamente, as forças que dominavam a Câmara não se opuseram de maneira
tenaz como antes: uma coisa seria solapar a iniciativa de concorrentes locais,
outra seria contrariar os interesses do representante régio na capitania.
Assim,
contando com o apoio da elite dirigente da capital, o governador tratou de
melhorar os caminhos da Serra de Cubatão em direção a Santos, determinando a
construção da primeira via pavimentada da América, a hoje chamada Calçada do
Lorena, além de mandar fazer um aterrado que permitiu a passagem com mais
desenvoltura das cargas que vinham em lombo de muares e até em carroças.
Naturalmente,
alguns grupos enriqueceram com a medida imposta a ferro e fogo por Lorena, em
prejuízo de outros, que passaram a considerar a proibição um monopólio – o que,
de fato, era –, mas, afinal de contas, a produção paulista, especialmente a de
açúcar, que vinha de Itu, Porto Feliz, Mogi Mirim, Sorocaba, Guaratinguetá,
Lorena, Jundiaí e São Carlos, começou a crescer de maneira vertiginosa. Esse
crescimento da lavoura de cana de açúcar, especialmente naquelas vilas, pode
ser constatado em números, com a multiplicação de engenhos: de um total de 78
que havia em 1793, chegou-se a 359 em 1798 (AHU, CU, São Paulo, caixa 14, doc.
698, post.1798).
5. O apoio das elites
escravocratas
Se não
bastasse isso para valorizar a administração de Lorena à frente da capitania de
São Paulo, da consulta à documentação de arquivo ressalta que nenhum outro capitão-general
e governador deixou o governo tão elogiado quanto D. Bernardo, ao menos pelas
elites escravocratas da cidade de São Paulo e da vila de Santos, representadas
pelas câmaras, que, obviamente, reuniam muitos produtores e comerciantes que
haviam obtido altos lucros com a chamada “lei do porto único”.
Em
muitos documentos escritos após a sua saída para o governo de Minas Gerais, é
possível encontrar vários elogios a sua forma de governar. Em julho de 1797,
por exemplo, a Câmara de São Paulo fez questão de louvaminhar Lorena por ter
escolhido para ajudante de ordens José Joaquim da Costa Gavião, em substituição
ao conhecido José Romão Jeunot. Gavião viera do Regimento de Moura, no
Alentejo, em Portugal, e àquele tempo ocupava o posto de capitão de cavalaria
dos Voluntários Reais, além de já estar estabelecido e casado em São Paulo:
“A
experiência mostra que um bom ajudante de ordens influi muito na felicidade de
um bom governo: agora o acabamos de ver em o feliz governo do general Bernardo
José de Lorena, que Vossa Majestade foi servida de promover para Minas Gerais”
(DI, v. 89, 1967, p. 104, 29/7/1797).
Contra
Lorena, como se observou, levantaram-se as demais câmaras das vilas à beira-mar
que se sentiram prejudicadas pela determinação que obrigava os produtores
locais a enviar seus gêneros para o porto de Santos. Pouco mais de seis meses
depois da saída de D. Bernardo, a Câmara de São Sebastião encaminhou
representação à rainha queixando-se da “opressão e vexame em que os moradores
daquela vila se achavam desde 1791, quando foram intimados por ordem do
governador mandando suprimir a liberdade de levarem os seus efeitos a qualquer
porto do Estado do Brasil, onde melhor pudessem reputar; e isto com pena de
prisão” (DI, v. 89, 1967, p. 105, 3/2/1798).
Da
correspondência, percebe-se que, de início, por recomendação da Corte, o
substituto de Lorena, Antônio Manuel de Melo Castro e Mendonça, manteve a
proibição, que, segundo a Câmara de São Sebastião, favorecia os monopolistas de
Santos “que pagam menos que os do Rio de Janeiro”. Para os camaristas, Mendonça teria acreditado
nas “antigas e novas falarias dos mesmos (monopolistas)”.
Os
pró-homens de São Sebastião ainda acusaram o juiz de fora da vila de Santos,
Sebastião Luís Tinoco da Silva, a essa altura já transferido para a cidade de
São Paulo, de ter sido “bem instruído nos dolosos subterfúgios dos ditos
monopolistas com quem vive”. E justificaram o silêncio em que se haviam mantido
durante o governo de Lorena porque temiam represálias. “Por isso, fomos
tolerando a opressão na esperança de que o futuro sucessor talvez quebrasse o
pesado grilhão”, justificaram-se (DI, v. 89, 1967, p. 107, 3/2/1798).
À
época em que escreveram essa representação à rainha, porém, o governador
Mendonça já havia mudado de opinião. Tanto que, em correspondência datada de
quatro dias depois daquela representação, Mendonça já avisava ao capitão-mor de
São Sebastião, Cândido Xavier de Almeida e Souza, que havia derrubado a
determinação que privilegiava o porto de Santos, concedendo licença para aquele
porto e para o de Ubatuba “de enviarem dos seus efeitos para qualquer porto da
nossa América a terça parte dos açúcares e aguardentes que haviam feito entrar
na vila de Santos” (DI, v. 87, 1963, p. 68, 7/2/1798).
A
partir de então, Mendonça seria um contumaz crítico das medidas tomadas por seu
antecessor: ao final de seu governo, ao escrever uma “memória” dirigida ao seu
sucessor, Antônio José da Franca e Horta, acusou Lorena de ter tomado a medida
de definir a vila de Santos como porto único “por seu próprio interesse”. Uma
acusação que, embora as evidências possam induzir que tivesse razão, partia de
um governador que se tornara conhecido como notório atravessador dos negócios
coloniais, tantas foram as queixas de comerciantes que chegaram à Corte.
Na
“memória”, porém, ao mesmo tempo, Mendonça deixou implícito um elogio à medida
tomada por seu sucessor, ao admitir que a sua revogação “reduzira o comércio à
fraqueza em que V. Exa. (o governador Franca e Horta) vem o achar”, ainda que, a
partir dali, cada um voltasse a ser “livre para transportar os gêneros que têm
para onde mais conta lhe faz”. Para justificar a derrubada daquele sistema que
obrigava “os povos de São Sebastião e Ubatuba a conduzirem a Santos os seus
efeitos para ali serem comprados pelos preços que queriam as pessoas
encarregadas de sua compra”, Mendonça argumentou que aquele monopólio trazia
“insanável prejuízo aos agricultores que, desanimados com semelhantes
procedimentos, abandonaram aquela ocupação, donde resultou a decadência das
mencionadas vilas” (DI, v. 44, 1915, p.
129, 28/12/1802).
Num
excesso de autocrítica, o governador reconheceu que a revogação da medida
tomada por Lorena não aumentara o comércio direto com a metrópole, observando
que “os gêneros que haviam de formar a carga dos poucos navios que em direitura
se dirigiam à Corte formaram a dos muitos vasos pequenos que anualmente navegam
desta capitania para todas as da América, além de dois ou três que
constantemente têm ido em direitura ao referido porto de Lisboa” (DI, v. 44,
1915, p. 131, 28/12/1802). Depois, ressaltou que, com a saída dos gêneros da
capitania, animou-se a agricultura, observando que “os compradores enviaram (os
gêneros) para onde os convidou a boa venda que tiveram em referidos portos”.
Ao
contrariar ordem do Reino para seguir os ditames de seu antecessor, Mendonça
justificou-se alegando que só fizera a mudança depois de muito estudo e
“fundado em sólidas razões” (DI, v. 29, 1899, p. 130-134). Mas, na verdade, a
sua decisão iria ao encontro da orientação de D. Maria I que, em razão das
tensões vividas na Europa entre França e Inglaterra, ordenara que os “vasos
pequenos” das demais vilas de marinha da América portuguesa não se dirigissem
em direitura a Lisboa, mas antes passassem por portos mais importantes, como o
Rio de Janeiro, no Atlântico Sul, seguindo até a Bahia, fazendo o transbordo
para embarcações mais seguras, o que, de certa forma, também reforçava a antiga
medida adotada por Lorena (DI, v. 39, 1902, p. 145). Como se sabe, dali as
embarcações seguiriam para o Reino protegidas por naus de guerra.
A
decisão de derrubar a prática exclusiva atribuída ao porto de Santos talvez
resultasse de cooptação do governador e capitão-general por produtores das
vilas litorâneas da capitania – São Sebastião, Ubatuba, Cananeia e Paranaguá –
e de negociantes cariocas, que, de fato, haviam sido prejudicados pelas
restrições impostas ao tempo de Lorena (MATTOS, 2009, p. 135-136).
Mas
para Mendonça, a navegação do porto de Santos para o de Lisboa haveria de ser
sempre diminuta, enquanto as culturas de café e de algodão não chegassem ao seu
auge, “pois que estes gêneros são os que oferecem mais carga que, por ser
especificamente mais cara, é mais apropriada para os altos das embarcações”
(DI, v. 44, 1915, p. 131-132, 28/12/1802).
6. Lei do porto único
Ao se
referir à “curtíssima” instrução que seu antecessor lhe deixara, Mendonça
contestou a informação de que, a partir da “lei do porto único”, a capitania
passara a fornecer carga suficiente para abastecer doze navios por ano rumo a
Lisboa. “Ele mesmo (Lorena) se convenceria do pouco fundamento desta assertiva,
se ali declarasse o total dos gêneros que podiam ser transportados para aquela
capital”, argumentou.
Depois
de se referir novamente à decadência em que se encontravam as vilas de São
Sebastião e Ubatuba ao tempo de sua chegada a São Paulo – “com a maior parte de
seus engenhos demolida” –, Mendonça lembrou que, àquela época, as vilas de
Serra-acima, “situadas na estrada que conduz desta capital para o Rio de
Janeiro”, haviam produzido apenas 83.435 arrobas de açúcar. “Foram as (arrobas)
que desceram no primeiro ano de meu governo, que foi o de 1797, e passaram pelo
Cubatão”, disse (DI, V. 44, 1915, p. 137, 28/12/1802).
Ao
final de 1802, segundo Mendonça, a capitania já estava produzindo 200 mil
arrobas de açúcar por ano, que, ainda assim, não seriam suficientes para suprir
dez embarcações com 500 caixas de 40 arrobas. “Ainda que suprido todo este
açúcar em Santos, sempre vem a faltar carga para os altos (das embarcações)”,
disse, observando que nunca a capitania tivera produção suficiente para suprir
sequer dez embarcações por ano. “Nem a pode ter senão daqui a meia dúzia de
anos”, previu (DI, v. 44, 1915, p. 138, 28/12/1802).
Apesar
de todas as dificuldades que enumerava, Mendonça, em sua exposição, fez questão
de manifestar a Franca e Horta que ele viria para governar uma capitania que
era, “sem dúvida, a melhor da América, pela sua situação local e pelo concurso
de circunstâncias que foram a sua total independência das outras”. Segundo o
governador que estava de saída, a capitania produzia tudo quanto era necessário
para a sustentação de seus habitantes e para o comércio, além de ter a vantagem
de oferecer gêneros de que têm absolutamente necessidade as capitanias
adjacentes, “como são os animais que daqui saem e por aqui transitam, tanto vacum para o Rio de Janeiro como muares
para a mesma capitania e para as de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso” (DI, v.
44, 1915, p. 138, 28/12/1802).
Como
se sabe, esse comércio intercapitanias de tropas de muares impulsionado pela
expansão da lavoura açucareira em São Paulo e no Rio de Janeiro, favorecida
pela conjuntura internacional, havia também contribuído sobremaneira para
dinamizar a economia paulista, tendo a feira de Sorocaba funcionado como mola
propulsora a partir da década de 1770. “Deste modo, os comerciantes de Minas
Gerais, Rio de Janeiro e vilas paulistas já não tinham necessidade de se
deslocar até o continente de São Pedro para adquirir os animais. Bastava, desde
então, deslocar-se para a feira” (BACELAR, 2001, p. 32).
7. A importância da Calçada do
Lorena
Ainda
incomodado com a boa fama que cercava o seu antecessor, ao final de sua
exposição a Franca e Horta, Mendonça, ao reconhecer implicitamente a importância
da construção da estrada pavimentada que Lorena mandara fazer ao tempo de seu
governo, procuraria minimizar a obra, dizendo que “para nada serviria” se ele
não tivesse consertado o resto do caminho. Graças aos serviços que mandara
executar – comandados pelo sargento-mor engenheiro João da Costa Ferreira (DI,
v. 87, 1963, p. 6, 13/7/1797) –, garantiu Mendonça, a estrada por terra de
Cubatão a Santos, “além de oferecer um meio de tornar legal o direito de passagem”,
abria a possibilidade de se transportar a cavalo os gêneros de Serra-acima até
o porto, “evitando-se por este modo a ruína que sofre o açúcar no transporte
por água” (DI, v. 44, 1915, p. 145, 28/12/1802).
A par
das divergências entre as exposições dos governadores, ditadas quase sempre pela
vaidade de cada um, a verdade é que a segunda metade do século XVIII foi
decisiva para o crescimento que a capitania de São Paulo apresentaria já no
século seguinte, o que a levaria a cumprir papel fundamental nas circunstâncias
que conduziram à separação do Brasil de Portugal, em razão de sua importância
geopolítica e econômica.
Uma
representação encaminhada pelo comerciante Diogo de Toledo Lara Ordonhes, de
Lisboa, ao final da década de 1790, ao ministro dos Negócios da Marinha e dos
Domínios Ultramarinos, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, traça um panorama isento
desse período, até porque o seu autor não teria nenhum vínculo político ou
comercial com governadores e capitães-generais.
Segundo Lara Ordonhes, na década de 1750, das capitanias do Rio de Janeiro,
Bahia, Pernambuco e Maranhão só se exportavam para Portugal os dois mais
“consideráveis efeitos” do Brasil, o açúcar e o tabaco de rolo, “ainda que este
último veio a se limitar ao Recôncavo da Bahia”. Naquele tempo, segundo o
comerciante, a capitania de São Paulo não dava para o comércio com a Europa
(isto é, com Portugal) “uma só arroba de açúcar nem outro efeito algum” (DI, v.
89, 1967, p. 142-143).
De
acordo com Lara Ordonhes, a vila de Santos, principal porto da capitania,
“tendo sido antigamente muito comerciante”, achava-se então na última
decadência, mas começou a se revitalizar depois com a fabricação de anil e de
maior quantidade de açúcar, que eram conduzidos para o porto do Rio de Janeiro
por conta de comerciantes cariocas que se encarregavam de reenviar os produtos
para Portugal. “No tempo de Francisco da Cunha Meneses (1782-1786), promoveu-se
a agricultura e principiaram a carregar no dito porto de Santos alguns navios
que saíam em direitura para Lisboa”, disse, observando que, apesar disso,
sempre existiu a liberdade de se transportar os gêneros para o Rio de Janeiro,
“no que não houve alteração no governo de Chichorro (1786-1788)”. Depois,
acrescentou:
Lorena
(1788-1797) não só promoveu altamente a agricultura e animou a indústria dos
paulistas, mas também proibiu a exportação de todos os gêneros de embarque para
outra qualquer parte da capitania, para deste modo facilitar-se o comércio
direto com Portugal, o que conseguiu com grande benefício dos povos que regia,
pois presentemente podem carregar em cada ano no porto de Santos para Portugal
12 navios de açúcar da melhor qualidade e de outros gêneros (DI, v. 89, 1967,
p. 143).
Segundo
Lara Ordonhes, como antes desta proibição o açúcar fabricado na capitania de
São Paulo se confundia com o do Rio de Janeiro, passava todo ele debaixo deste
nome, conservando na praça de Lisboa a mesma reputação, que tinha adquirido o
do Rio de Janeiro pela autoridade da Mesa de Inspeção. “Depois que entrou a ser
conhecido nesta praça de Lisboa o açúcar paulistano pelo nome de açúcar de
Santos, decaiu muito a (sua) reputação e por consequência o preço”, disse,
explicando que, embora muitas caixas viessem com o título de branco fino ou de
branco redondo, havia nelas açúcar misturado e baixo, além dos chamados
mascavos.
Para o
comerciante, essa alteração se devia atribuir em parte à ignorância e aos
descuidos dos fabricantes e em parte à malícia e má-fé dos mesmos produtores,
sem deixar de levar em conta que “algumas causas físicas do terreno em que eram
plantadas as canas influíam muito na mesma bondade do açúcar comprado de outras
capitanias que ficam ao Norte”.
Como
essa representação lhe foi encaminhada pelo ministro D. Rodrigo de Sousa
Coutinho anexa à carta de 27 de março de 1799, Mendonça, com certeza, só tomou
conhecimento de seu teor depois que já havia derrubado a proibição de Lorena,
não lhe restando alternativa que não fosse a de justificar sua decisão. Embora
tenha reconhecido que o açúcar produzido na capitania gozava de “má fama por
causa das alterações que sofria”, só, ao final de 1802, ao deixar o governo, é
que iria defender a instalação de uma Mesa de Inspeção em São Paulo para
certificar a sua boa qualidade, tarefa que deixava para o seu sucessor (DI, v.
44, 1915, p. 139, 28/12/1802). Ao que parece, os elogios feitos pelo
comerciante lisboeta a Lorena influenciaram o ânimo de Mendonça, pois, a partir
de então, ele tratou de menosprezar sempre que pôde os méritos e feitos de seu
antecessor.
Que
havia na decisão de Mendonça de derrubar o monopólio da vila de Santos mais
despeito do que análise fria dos fatos conclui-se ao se constatar que, em 1804,
o governador Franca e Horta haveria de propor ao ministro D. Rodrigo de Sousa
Coutinho a retomada da exclusividade de comércio direto entre o porto santista
e o de Lisboa, ainda que a decisão voltasse a desagradar aos produtores e
comerciantes ligados ao comércio com o Rio de Janeiro (DI, v. 94, 1990, p.
17-19).
De
fato, proposta aceita, Franca e Horta seria alvo das mesmas acusações que
haviam sido feitas a Lorena, como se vê em queixa encaminhada em fevereiro de
1805 ao príncipe regente pelo pároco João Rodrigues Coelho, de São Sebastião,
para quem o governador abusava do despotismo, praticando violências e opressão,
ao proibir que as vilas de marinha comercializassem com outras capitanias e até
mesmo entre si.
Segundo
o pároco, os habitantes das vilas litorâneas eram obrigados a enviar seus
gêneros a Santos, onde três monopolistas controlavam o comércio, pagando preços
diminutos. De acordo com Coelho, o governador e capitão-general perseguia e
mandava prender quem ousasse desafiar suas ordens, mas favoreceria
contrabandistas que enviavam para “as Américas espanholas” escravos, açúcar,
aguardente e outros produtos sem pagar os direitos reais. Esses contrabandistas
seriam o capitão-mor Manoel Lopes da Ressurreição e os capitães João José da Silva
e Julião de Moura Negrão, com os quais o governador teria “contraído amizade”
(AHU, CU, caixa 57, doc. 4.300, 7/2/1805).
A
decisão de Franca e Horta, no entanto, não iria durar muito, pois a 6 de
outubro de 1806 o príncipe regente mandou que tudo voltasse ao estado anterior
(AHU, CU, caixa 58, doc. 4371). O governador ainda insistiu em manter a
concentração das cargas num só porto como única medida possível para fomentar a
circulação de mercadorias entre a capitania e o Reino (AHU, CU, caixa 30, doc.
1322, 8/6/1807), mas em julho de 1807 viu-se obrigado a liberar o comércio em
todos os portos.
8. Considerações finais
Independente
dos interesses particulares em jogo, é de reconhecer que, sob o governo de
Lorena, a exclusividade dada ao porto de Santos redundou no fortalecimento do
mercado do açúcar, o que foi fundamental para o crescimento econômico da
capitania. Com a revolta dos escravos na ilha de São Domingos, no Caribe, as
cotações internacionais do produto elevaram-se rapidamente, obrigando o governador
a buscar uma saída para o escoamento da produção, como queriam os donos de
engenho e os comerciantes. Em consequência, os engenhos começaram a se
multiplicar em ritmo inédito, acelerando a aquisição de escravos para o
trabalho no campo, além de atrair mão de obra de outras capitanias, o que
explica um crescimento da população no período acima do que era usual (SILVA,
2009, p.159).
Basta
ver que levantamento feito à época do governo Chichorro (1786-1788) apontou uma
relação de habitantes de 126.145 pessoas (AHU, CU, caixa 38, doc. 3192, 2/3/1788),
que chegou a 139.287 em 1789 (AHU, CU, caixa 40, doc. 3288, 31/12/1789), enquanto
um mapa de 1796 registrou 155.703 habitantes, entre homens livres e escravos
(AHU, CU, caixa 43, doc. 3470, c. 1796), ou seja, um crescimento de 23% em
oito anos, o que indica que a evolução econômica também atraiu gente de outras
capitanias e do Reino. Essa conjuntura favorável, por certo, iria estimular a
procura por novas terras rumo à região Oeste da capitania, fosse pela concessão
de sesmarias, fosse pela posse arbitrária, favorecendo a proliferação de
arraiais e a fundação de novas vilas.
Por
aqui se vê que, de fato, os nove anos de Lorena à frente da capitania de São
Paulo foram decisivos para o desenvolvimento da capitania, ainda que não se
possa imaginar que tivesse partido do ponto zero, pois os governos anteriores
criaram as bases desse processo de crescimento e, bem ou mal, tanto Mendonça
(1797-1802) quanto Franca e Horta (1802-1811) e os governos que se seguiram
deram igualmente sua contribuição. Adelto
Gonçalves - Brasil
Referências
Arquivo Histórico Ultramarino
(AHU), de Lisboa. Documentação referente à capitania de São Paulo em
microfilmes/Projeto Resgate que consta do Arquivo do Estado de São Paulo (AESP):
rolos 06.05.001/052; 06.06.053/070 (Conselho Ultramarino); 06.06.029/033
(Documentos avulsos da Capitania de São Paulo).
ATAS DA CÂMARA MUNICIPAL DE
SÃO PAULO, 1768, v. XV. Publicação oficial do Arquivo Municipal de São Paulo,
1921.
BACELLAR, Carlos de Almeida
Prado. Viver e sobreviver em uma vila colonial. Sorocaba, séculos XVIII e
XIX. São Paulo: Fapesp-Annablume, 2001.
Documentos interessantes para
a história e costumes de São Paulo. São Paulo: Departamento do Arquivo do Estado de São
Paulo, v. 29, 1899; v. 38, 1902; v. 44, 1915; v. 87, 1963; v. 89, 1967; e v.
94, 1990.
MATTOS, Renato de. Política,
Administração e Negócios: A capitania de São Paulo e sua inserção nas relações
mercantis do Império Português (1788-1808). São Paulo: São Paulo: dissertação
de mestrado em História Social apresentada ao Departamento de História da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo,
2009.
MENDES, Denise. A Calçada do Lorena: o caminho de tropeiros
para o comércio do açúcar paulista, mimeo. Dissertação de mestrado
apresentada ao Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), 1994.
______________. Calçada do Lorena: um novo caminho para a
capitania de São Paulo no século XVIII, 2004. <Disponível em: http://
www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=606>
Acesso em: 10/5/2014.
MOURA, Denise A. Soares.
“Região, relações de poder e circuitos mercantis em São Paulo (1765-1822). In: Saeculum Revista de História, João
Pessoa-PB, nº 14, jan-jun. 2006, p. 39-56.
SILVA, Maria Beatriz Nizza da.
(org.); BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. GOLDSCHMIDT, Eliana Rea; NEVES,
Lúcia M. Bastos P. História de São Paulo
colonial. São Paulo: Editora Unesp, 2009.
The Kingdom, the Cologne and the Power: Lorena government in the captaincy of Sao Paulo (1788-1797)
Abstract: This work seeks
to rescue the nine years of the administration of D. Bernardo José Maria de
Lorena e Silveira in the captaincy of Sao Paulo (1788-1797), during which the
governor sought to consolidate the economy, boosting agriculture, and open
pathways for the movement of production genres , especially sugar, that the
call Lorena's Causeway, at the foot of the Serra do Mar, in Cubatao, now in
ruins , is still the best example .Government Lorena, besides acting in defense
and maintenance of the southern territories and the borders established by the
Treaty of El Pardo (1761), despite the few forces available to it, also stood
out for the way they sought to play harmoniously with its administration,
earning so the support of the elites of the captaincy .
Keywords: Brazil –
Eighteenth century – Captaincy of Sao Paulo
_________________________________
Adelto
Gonçalves, jornalista, é doutor em Literatura Portuguesa
pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora,
1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), Gonzaga,
um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova
Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Academia
Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), e Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São
Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), entre
outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
[1] Este texto é uma versão do capítulo final do projeto de pesquisa O Reino, a Colônia e o Poder: o governo
Lorena na capitania de São Paulo (1788-1797), desenvolvido com bolsa da
Universidade Paulista (UNIP), dentro de seu Programa Individual de Pesquisa
para Docentes. Publicado na Revista
Saberes Interdisciplinares, do Instituto de Ensino Superior Presidente
Tancredo de Almeida Neves, de São João del-Rei, Minas Gerais, ano VIII, nº 15,
jan.-jul./2015, pp. 17-25.
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