I
A História, geralmente, só
preserva os nomes dos “grandes”, desde a Antiguidade até os nossos dias, embora
essa postura tenha passado por certo revisionismo, desde que Lucien Febvre (1878-1956),
co-fundador com Marc Bloch (1886-1944) da École
des Annales, ao final dos anos 1920, defendeu a leitura microcóspica e a
particularização dos assuntos históricos. Resgatar a história dos derrotados
sempre foi difícil porque, raramente, eles deixaram relatos de suas vivências.
Esse é o grande problema com
que se depara o pesquisador quando, por exemplo, procura escrever sobre o
regime da escravidão no Brasil. Nos arquivos oficiais, por exemplo, só
encontramos relatos dos escravocratas, geralmente fazendeiros que tinham tido
acesso à educação formal. Dos “humilhados e ofendidos”, nenhum relato, até
porque não sabiam ler nem escrever.
Assim também se dá na
reconstituição da história política contemporânea. É, de certo modo, fácil
reconstituir a história de um sindicalista que tenha ascendido na vida e
chegado a ocupar cargos importantes num partido ou até mesmo no governo. Nunca
faltam testemunhos daqueles que conviveram com ele na intimidade, a favor ou
contra. Já o “revolucionário” que prestou serviços a um partido clandestino e à
causa operária, mas que nunca deixou os subterrâneos da História, desse
dificilmente podemos conseguir relatos sobre a sua militância. Décadas depois,
não só serão raros os testemunhos desse período – quase sempre marcado por
assassinatos e “desaparecimentos” – como a memória dos sobreviventes acabará
por vacilar e trair os fatos.
Nesse caso, a única saída é
recorrer à ficção, que pode adquirir foro de grandeza se quem a desenvolver for
um escritor da estirpe de Claudio Magris, não só o maior romancista italiano da
atualidade como um ensaísta incomparável. É o que se pode constatar em Às cegas (Alla cieca), romance de 2005 publicado no Brasil em 2009 pela
Companhia das Letras em tradução de Maurício Santana Dias.
II
Trata-se de um relato da vida
de Salvatore Cippico, ou Cipiko, nascido em 1910, antigo militante do Partido
Comunista italiano que, aos 80 anos de idade, encontra-se internado em fase agônica
numa grande clínica psiquiátrica de Trieste, cidade na fronteira com a Croácia,
que, no início do século XX, abrigou aquele que é considerado o maior
romancista de todos os tempos, o irlandês James Joyce (1882-1941), e onde
nasceu e viveu o judeu Ettore Schmitz (1861-1928), mais conhecido como Italo
Svevo.
O relato de Cippico é feito
ao médico que o acompanha, doutor Ulcigrai, que o incentiva a colocar no papel
as suas aventuras. Provavelmente em função do mal de Alzheimer que o acomete,
Cippico já confunde realidade com ficção, ao se assumir como Jorgen Jorgensen,
aventureiro dinamarquês que viveu no século XIX e combateu durante as guerras
napoleônicas, foi rei da Islândia por três semanas, fundou a capital da
Tasmânia, Hobart Town, prisioneiro em Newgate e em Port Arthur e escreveu
sermões e uma autobiografia, obviamente controversa, tal a aura fantástica que
o cercava.
Sem saber bem quem é,
confundindo o mundo vivido com o imaginado a partir de aventuras lidas ou
ouvidas, Cippico é, na realidade, outro tipo de aventureiro, daqueles que
embarcaram e naufragaram ao aderir a uma das utopias que empolgaram o século XX
– o comunismo. A outra utopia – que não chegou ao poder – foi a anarquista e não
a liberal, ao contrário do que se lê no texto de apresentação na “orelha” do
livro. Até porque o liberalismo não surgiu como ideia de um ou mais pensadores,
mas como resultado da própria experiência humana, ainda que não faltem teóricos
liberais.
Obviamente, o capitalismo
defendido pela ideia liberal não é só virtude nem tampouco tem como objetivo o
bem-estar da sociedade, mas está comprometido apenas com o lucro daqueles que
detêm o capital. Mesmo assim, é ainda o melhor regime econômico – talvez o
único – já criado, ou ao menos aquele que apresenta mais virtudes que defeitos.
E oferece oportunidades àqueles que sabem aproveitá-las. Cortar ou minorar os
seus defeitos seria tarefa que caberia ao Estado, não fosse todo governo quase
sempre um ajuntamento de corruptos.
III
O relato de Cippico é a de um
homem que viveu os mais conturbados episódios do século XX, combatendo na
Guerra Civil espanhola (1936-1939), ao lado dos republicanos, que, como se
sabe, eram influenciados pelo anarquismo catalão, e, depois, haveria de se
engajar na resistência italiana ao fascismo de Benito Mussolini (1883-1945).
Preso e torturado, seria deportado para o campo de concentração de Dachau, na
Alemanha nazista, onde contraiu tuberculose óssea. Ao sobreviver, iria lutar
pela construção do socialismo na Iugoslávia, do marechal Josip Broz Tito
(1892-1980).
Em 1947, Cippico migrou para
a Iugoslávia com mais dois mil monfalconeses – ou seja, trabalhadores dos
estaleiros navais de Monfalcone, na Itália –, a pretexto de ajudar a construir
o socialismo e trabalhar nas construções de Fiume, atual Rijeka, na Croácia.
Mas, depois do rompimento de Tito com Josef Stalin (1878-1953), Cippico é preso
e acusado pelos iugoslavos de membro do Cominform (birô comunista de
informações que pretendia resgatar as ligações institucionais dos partidos
comunistas do mundo inteiro). Seria deportado em 1949 para o gulag de Goli Otok, a ilha Nua ou Calva,
no mar Adriático, onde acabaria submetido, como os demais, a trabalhos
desumanos, sevícias e torturas.
Em outras palavras: depois de
torturado pelos asseclas do nazismo, aquele que daria os melhores anos de sua
vida pela causa socialista seria torturado exatamente por aqueles que diziam
construir o socialismo na Terra. Ao lado dos companheiros, “que tinham decidido
deixar tudo, casa, trabalho, pátria, para ir à Iugoslávia construir o
socialismo”, Cippico seria acusado de espião de Stalin, de traidor da
Iugoslávia, de inimigo do povo e, em seguida, torturado e deportado para uma
ilha, perdendo por isso todas as esperanças que poderia ter na espécie humana.
Tateando no escuro, às cegas,
num mundo que parece ter perdido o seu rumo, Cippico confunde-se com Jorgen
Jorgensen, ao rememorar sem parar: “(...) envelhecer, adoecer, ver morrer os
amigos, acertar as contas com a infâmia, a vergonha e a traição que você traz
dentro de si. E como se esse acúmulo não bastasse, ainda o amor? É uma guerra
muito dura, entende-se perfeitamente que às vezes não resta nada senão
desertar”.
IV
Para este
resenhista, igualmente a caminho do ocaso de sua vida, estas imagens do
Adriático e de Trieste são evocativas porque lembram uma tarde de agosto de
1982, ao pé do Castelo de San Giusto, a ler a edição do dia de Il Piccolo della Sera e a ouvir as
transmissões da Rádio Tirana, da Albânia, em sua edição em português. E de como
chegou à conclusão de que teria de recusar o convite de um emissário do Partido
Comunista do Brasil para ir à terra de Enver Hoxa (1908-1985) recolher material
para escrever um livro sobre aquele “paraíso” comunista que, em poucos anos,
ruiria como um castelo de cartas. Olhando para a vida imaginada de Cippico,
ainda bem que este resenhista não desperdiçou os melhores anos de sua vida com
uma utopia desastrada nem virou coveiro de um mundo morto.
V
Nascido em Trieste em 1939, Claudio
Magris foi professor catedrático de Língua e Literatura Alemã na universidade local,
até se aposentar em 2006. É filólogo e tradutor para o italiano de Ibsen
(1828-1906), Kleist (1777-1811) e Schnitzler (1862-1931), além de articulista
do Corriere della Sera. Foi senador
de 1994 a 1996. É autor de vários livros de ensaios e ficção, como O mito habsbúrgico na literatura austríaca
moderna (1963), Atrás das palavras (1978),
Danúbio (1996), Microcosmos (1997) e O senhor
vai entender (2006), entre outros. No Brasil, a Companhia das Letras
publicou também Danúbio, Microcosmos e O senhor vai entender.
Nome frequentemente indicado
nas listas para o Prêmio Nobel de Literatura, Magris, em 2013, foi contemplado
em Portugal com o primeiro Prêmio Europeu Helena Vaz da Silva para a divulgação
do Patrimônio Cultural, instituído pela Europa Nostra, em parceria com o Centro
Nacional de Cultura e o Clube Português de Imprensa. Com Microcosmos, ganhou o Prêmio Strega de 1997, na Itália. Em 2009, na
Feira do Livro de Frankfurt, recebeu o Prêmio da Paz dos editores alemães. Adelto Gonçalves – Brasil
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Às cegas (Alla
cieca), de Claudio Magris, tradução de Maurício Santana Dias. São Paulo:
Companhia das Letras, 376 págs., R$ 59,90, 2009. Site: www.companhiadasletras.com.br
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Adelto Gonçalves é doutor
em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de
Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona
brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil,
2002), Bocage – o perfil perdido
(Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio
Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2012), e Direito e Justiça em
Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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