“Os
muros do mundo são feitos para os pobres. Quem tem meios não tem muros”
A
esperança em um mundo renovado e mais igual após a queda do Muro de Berlim se
transformou em desilusão, diz intelectual moçambicano
Entre a África e a Europa, o
filósofo Severino Elias Ngoenha tem história para contar: nasceu em Maputo, a
capital de Moçambique, em 1962, quando o país estava perto de explodir em
guerra pela libertação. Sua formação intelectual se deu, entretanto, em Roma,
para onde foi como seminarista. Curiosamente, foi lá que pôde conhecer seu
próprio continente. “Quando cheguei a Roma, entrei num colégio feito
especialmente para quem viesse da África. Tinha um mexicano, um sírio e
alguns vietnamitas que acabavam de chegar. O restante eram africanos. Então,
comecei a conhecer um ruandês, um burundês, um nigeriano, um queniano, um
congolês, um malgaxe.”
Depois de concluir seu
doutorado em Filosofia, voltou ao país de origem e ajudou a formatar o então
embrionário sistema educacional moçambicano. Professor associado do
departamento de Antropologia e Sociologia da Universidade de Lausanne, Suíça,
ele integrou-se ao Departamento de Filosofia da Universidade Pedagógica de
Moçambique, em 2010. Suas pesquisas situam-se na área de antropologia,
pensamento africano, filosofia da educação e interculturalidade.
Em entrevista ao Jornal Opção
durante passagem por Goiânia — ele falou a alunos da Universidade Federal de
Goiás (UFG) durante o 4º Simpósio Internacional de Ciências Sociais e 3ª
Jornada de Museologia —, Severino Ngoenha mostrou-se especialmente preocupado
com a questão dos refugiados e dos muros que se erguem para os menos
favorecidos economicamente. Não necessariamente muros físicos. “Para quem tem
um cartão de crédito ilimitado não há muros. Esses muros são feitos para os
pobres e esses pobres não se encontram apenas no hemisfério sul, mas também no
hemisfério norte. Sofrem com muros, independentemente de onde sejam.”
O
sr. é uma referência da educação em Moçambique e veio ao Brasil para trocar
experiências e fazer parcerias. Como é a trajetória de sua história de vida?
Talvez uma das coisas mais
difíceis para um homem seja falar de si mesmo. Você pode oscilar de muita
humildade, o que muitos podem julgar algo falso. Mas um tom muito pomposo
também não cai bem (risos). Eu nasci em Maputo, ainda no tempo colonial, mas
minha adolescência ocorreu essencialmente no período de transição do
colonialismo para a independência, quando abrimos os olhos para uma nova
realidade, para sermos construtores de nosso próprio futuro, sem depender
necessariamente de alguém, seja dos portugueses do tempo colonial ou da África
do Sul, potência vizinha. Tampouco que fosse o Ocidente, também. Crescemos,
então, nessa dinâmica de orgulho na autoconstrução, pensando que, com o estudo
em primeiro lugar e com o trabalho, em seguida, poderíamos ser senhores de
nossas vidas, um futuro diferente da história como então era conhecida por nós,
com escravatura, colonialismo, opressão e outras coisas.
A
religião teve um papel importante em sua vida e em seu engajamento. Como foi
essa experiência?
Fui sempre cristão e, na
década de 70, resolvi ir para o seminário. Decidi que era o melhor lugar em que
podia estar a serviço de uma causa. A Teologia da Libertação fazia uma ponte
entre o que era, de um lado, as vontades libertárias próprias de nosso povo — e
do regime que estávamos trilhando — e, de outro, a dimensão teológica de Igreja
a que eu pertencia e a que eu fazia questão de pertencer.
Então, fui para Roma. Lá, fiz
licenciatura em Teologia e mestrado em Filosofia. Segui para a Alemanha, onde
fiz meu doutoramento e outros estudos. Fui para a Suíça, onde fui professor
associado em Lausanne. A vida fez com que eu começasse a colaborar, nessa
altura, com Moçambique. Fiz programas para reintrodução de Filosofia no país;
então, fizemos a formação dos professores em licenciaturas, posteriormente, construímos
os mestrados e hoje estamos na formação doutoral. Tenho hoje alunos que são
meus colegas e passaram a ter atividades e responsabilidades no país e mesmo
fora de lá. Também colaborei com a Universidade Eduardo Mondlane [instituição
de ensino superior pública moçambicana] na formação de Ciências Sociais e
Ciência Política. Hoje também tenho antigos alunos que são doutores, formados
em países como Brasil, França, Grã-Bretanha, entre outros, e que hoje são
personalidades importantes para nossa sociedade. Isso mostra também o quanto
sou velho, não? (risos)
Ou
pode mostrar também como sua trajetória foi produtiva, não?
(risos) Pode ser. Hoje,
continuo a colaborar com a Eduardo Mondlane na formação em Filosofia e sou
responsável pela escola de doutorado em Filosofia. Também fiquei como reitor da
Universidade Técnica de Moçambique (UDM), pela qual tento uma cooperação com
a Universidade Federal de Goiás, para estabelecer parcerias e colaborações.
O
sr. é um dos responsáveis, então, pelo que ocorreu na educação de Moçambique
desde sua independência. Pergunto: o sr. se sente mesmo um protagonista da
história de seu país?
Existe quem decide
politicamente o que deve acontecer nos âmbitos diversos da vida social e
política de um país, e existem os executores de programas. Digamos que eu fui
um bom executor de programas. Não fui eu quem decidiu que a filosofia deveria
ser introduzia na educação de Moçambique; nem fui eu quem decidiu que os liceus
do país teriam a disciplina; muito menos determinei que houvesse mestrados e
doutoramento. Pode dizer que eu fui um bom operário que materializou uma série
de coisas, mas essas foram decididas em instâncias das quais eu não era
responsável.
Mas
o sr. avalizaria, então, os rumos da educação em Moçambique?
Os processos de educação em
nossos países têm trilhado caminhos de metamorfose muito complicados. Digo isso
sobre Moçambique, mas vale também para outros países da África. Costumo dizer
que o continente africano — de maneira geral, independentemente do tipo de
regime que se pratica —, desde a segunda metade do século 20, fez da educação o
caminho necessário para sair da pobreza e do desenvolvimento. Se compararmos os
números do tempo colonial aos de agora, vemos que houve uma massificação
importante da educação em Moçambique.
Ao mesmo tempo, isso acarretou
problemas de dois tipos. O primeiro é que a massificação pode ter significado,
em alguns casos, a redução da qualidade. Isso porque um grande número de
professores que havia no tempo colonial saiu quando houve a independência.
Tivemos de remar com o pouco de professores que tínhamos ou tivemos de
improvisar para responder à massificação.
Houve
um grande êxodo de professores por ocasião da independência de Moçambique?
Sim, e isso foi um grande
problema, que nos acompanha, em parte, até os dias de hoje, porque não
conseguimos igualar, em termos de qualidade. Um segundo problema por que
passamos foi ter apostado na massificação da educação com o olhar na miragem do
que esta era no tempo colonial. Nós nunca nos perguntamos o tipo de educação
que fosse o mais adequado para tirar nosso país, ou nosso continente, das
condições de pobreza e de subdesenvolvimento com que temos confrontado. Mais do
que avalizar o que aconteceu, a aposta desta geração a que em parte pertenço e
está aí, mas que já vem ficando para trás, tem de ser se questionar quanto ao
tipo de educação que pode corresponder à busca essencial. Ou seja, não é uma
situação só política, mas de construção de políticas democráticas essenciais e,
por outro, de desenvolvimento social vinculado a outro país.
No
Brasil, especialmente com o fim do regime militar, e especialmente a partir do
governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1995, existe a preocupação em diminuir
o índice de analfabetismo, a partir de programas de incentivo, como o Bolsa
Escola, que depois se tornou o Bolsa Família. Como o sr. vê esse tipo de
política educacional básica que temos por aqui? Tem como comparar ao que ocorre
em Moçambique?
Toda comparação que eu fizesse
seria temerária. Não tenho conhecimento suficiente para estabelecer uma
leitura comparativa entre o que corre aqui e em Moçambique. Talvez salvem duas
coisas para dizer: me parece que a política brasileira, pelo pouco que conheço,
discriminou durante muito tempo as minores — as populações de origem negra,
indígena, os chamados pardos, as mulheres, nem sei se posso chamar de
“minorias”, exatamente — tudo o que ocorreu até antes da Segunda Guerra
Mundial. Constituiu-se uma sociedade em que vemos grandes riquezas, mas também
grandes pobrezas; vemos grandes intelectualidades, mas também um imenso
segmento de gente com pouco conhecimento.
Moçambique, desde 1975, é um
país mais ou menos uniforme. Não temos muitos ricos — aliás, temos pobreza
quase total — nem polos de concentração de conhecimento e de inteligência, como
vocês têm no Rio de Janeiro e em São Paulo, com tantas universidades e
faculdades, inclusive da iniciativa privada. Em meu país, temos um nível de
escolaridade que é baixo. Então, a partir daí, vejo que há diferenças radicais
que fazem com que não haja base para comparação.
O segundo ponto é que, no
Brasil, o sistema escolar foi criado por portugueses, como modelo, mas as
universidades receberam a influência da França, em Sorbonne, e eram alimentadas
pelo saber mais ocidental. Quando a Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento do
Pessoal de Ensino Superior] começou a mandar brasileiros para estudar fora, o
essencial era ir para os Estados Unidos ou para a Europa, que eram a
referência. Para fazer isso, era preciso ter meios. A potência econômica que
o Brasil foi se tornando permitiu que esses programas se realizassem. Isso
contribuiu, de certa maneira, para melhorar o nível de formação dos quadros
superiores que, quando voltaram, formaram outros quadros.
Em Moçambique, não temos os
meios do Brasil, não temos a extensão territorial nem a mesma capacidade
econômica, mas também não temos as mesmas referências. Para nós, os franceses
nunca tiveram qualquer importância em relação à educação, apesar de os
programas portugueses imitarem, no fundo, aquilo que era o modelo francês.
Estamos encurralados na África costal, onde essencialmente se fala inglês. Bem
ou mal, o modelo anglo-saxônico acaba por vincar todos. Não tivemos também o
processo de discriminação que justificasse as cotas raciais e sociais que vocês
têm aqui. Nosso discurso era outro, era o de que nós nascemos e crescemos em
uma região em que o racismo predominava. Nosso discurso era de construir uma
sociedade sem raças, na qual raças e etnias das tribos não tivessem qualquer
valor. O movimento negro no Brasil é formado por pessoas que querem ações
afirmativas, para serem discriminadas positivamente. As dinâmicas sociais e
políticas são completamente diferentes nos dois países. As comparações, me
parece, podem criar equívocos.
Apesar da grande pobreza em
Moçambique, não existe lá uma desigualdade social tamanha como a que acomete o
Brasil…
No que eu chamo comumente de
Primeira República em Moçambique, onde nos pautávamos por uma filosofia
política igualitarista, proveniente de certa leitura do marxismo, de fato as
diferenças sociais não existiam. Mas, a partir do momento em que houve os
acordos de paz — o que corresponde, de fato, à vitória do neoliberalismo sobre
os sistemas igualitaristas inspirados na então União Soviética —, começamos a
ver rapidamente discrepâncias sociais. Uma certa comunidade internacional
começou a cooptar uma parte das elites políticas moçambicanas e as
transformou em uma elite econômica.
Neste momento histórico,
estamos com uma discrepância em nível de poder de compra que, obviamente, não
são comparáveis às que o Brasil tem. Não tem a mesma história nem a mesma
segmentação, mas estamos assistindo a uma espécie de ruptura e de nascimento de
uma classe social pequenina, mas extremamente poderosa em termos de consumo, em
detrimento de uma massa que continua com graves dificuldades. Isso corresponde
ao tempo, às políticas e às economias dominantes. Elas têm necessidade do que
se chama de classe média, mas eu diria que o neoliberalismo precisa de seus
representantes “in loco”. Aquilo que no século 19 faziam o antropólogo, o
explorador e o missionário agora vai ser feito por alguém que hoje representa
os interesses dessas multinacionais e desse neoliberalismo. É o que nós
chamados de “nova burguesia emergente”, mas é o mesmo processo que ocorreu na
América Latina no século 19 e estamos agora repetindo na África do século 21.
O
primeiro presidente de Moçambique foi um antropólogo. Desde o começo da luta
até a independência, o socialismo chegou ao poder por uma via sangrenta, ao
contrário do Brasil, em que o PT chegou pela via democrática. Seu país poderia
estar melhor do que está hoje?
A leitura que podemos fazer é
que o colonialismo acabou de fato com o fim da Segunda Guerra Mundial, quando
duas grandes potências dominaram o mundo: de um lado a União Soviética, pela
esquerda, e do outro, os Estados Unidos, pela direita. Isso vai redimensionar o
espaço da França e da Grã-Bretanha com as colônias, que tinham feito a parte do
“leão” na distribuição do continente africano. Em 1941, Winston Churchill
[primeiro-ministro britânico] pede a ajuda dos Estados Unidos para entrar em
guerra, e a resposta de Franklin Roosevelt [presidente dos Estados Unidos] foi
de que, ao fim do processo de guerra, as colônias teriam de acabar. Quer dizer,
os Estados Unidos, como a União Soviética e os países do norte da Europa,
queriam ter acesso direto aos países africanos. Isso determinou que,
gradualmente, o processo de independências africanas fosse defendido quer pelo
Ocidente, nos Estados Unidos, quer pelo Leste, na União Soviética. Entretanto,
as políticas francesas, sobretudo, mas também as inglesas, eram de resistência
ao fim do colonialismo. Charles de Gaulle [presidente da França] transforma
suas colônias em países ultramarinos que fazem parte da França, como as ilhas
de Martinica, Guadalupe e Reunião hoje. A ideia era continuar com o grande
império francês, mudando o nominativo “colonialismo” em território de ultramar.
Mas
Portugal também parece ir por esse caminho…
Portugal segue o modelo
francês, passa a nos considerar territórios de ultramar, pensando que isso iria
diminuir os movimentos libertários e a vontade de independência. No caso francês,
a Guerra da Argélia e, sobretudo, a recusa de Sékou Touré [primeiro presidente
da Guiné após a independência, em 1958] na Guiné serão as alavancas para
continuar aquele sonho de De Gaulle de manter sua hegemonia nos países. Não
obstante isso, ele conseguiu impor por meio de uma limitação da Constituição,
da presença de militares, uma espécie de neocolonialismo francês, que continua
infelizmente ainda hoje em boa parte do continente, sobretudo nos países de
língua oficial francesa. A Inglaterra fez a mesma coisa com seus países, com um
tipo de prática diferenciada.
Ora, França e Inglaterra
tinham meios políticos e econômicos para manter seu neocolonialismo, o que
Portugal não tinha. Por isso, Portugal não se pôde permitir a dar uma
independência a Angola, a Moçambique e a Guiné Bissau, bem como a Cabo Verde e
a São Tomé e Príncipe, pensando que pudesse fazer uma prática neocolonial. Isso
é a primeira questão. Em segundo lugar, Portugal era regido por um governo
fascista, o de Salazar. Um terceiro aspecto: a geopolítica faz com que
Moçambique, ainda mais que Angola, fosse cercado pelo “apartheid” da África do
Sul.
Então, fizeram com que o
rompimento do colonialismo passasse por esses processos de luta armada que
foram destrutivos. Os cinco países de língua oficial portuguesa tiveram de
passar por lutas de libertação armada, que duraram dez anos ou mais. Até nossos
irmãos de países vizinhos, da África francófona e anglófila, não tiveram de
passar por esse processo.
Lutas armadas são destrutivas,
são desestruturantes e têm implicações políticas. As metamorfoses da luta e a
adesão de Portugal à Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte], entre
outras coisas, fizeram com que Moçambique caísse, em minha opinião, numa
ideologia de esquerda que nunca foi uma opção principal. A única e verdadeira
opção foi a independência política, mas, para se ter meios para alcançar a
independência, a África e o Terceiro Mundo teriam de ter um não alinhamento.
Entretanto, o não alinhamento não funcionou e acabamos por ter de nos alinhar.
E o fato de nos alinharmos e termos obtido a independência alinhados à
esquerda, deu argumentos à Rodésia [hoje Zimbábue] e à África do Sul para
iniciar os ataques e, assim, prorrogou-se o processo de luta.
Então, é muito difícil responder
à pergunta se poderia ter sido diferente. Não consigo ver, no quadro
geopolítico internacional, como podíamos ter mantido a vontade de
independência em termos diferentes. Penso que, por essencial, aquilo que
aconteceu dependeu mais do quadro externo do que de uma conjuntura interna.
Penso assim. Pequenos atos são episódios no interior de um grande filme, mas
no essencial a espinha dorsal do problema é o que acabei de dizer. E aí há
dificuldade de ver como isso poderia ter-se passado diferentemente.
“A
imigração foi e é um processo violento”
A
luta pela independência, quando chega à guerra civil, deixa danos sérios na
população, como os refugiados, a questão da fome e outros. Como é estar num
país assim?
De fato, a guerra nunca parou
em Moçambique. A guerra começa em 1964 e termina em 1974, mas logo em seguida
vêm os ataques da Rodésia.
O
sr. viveu isso tudo?
Eu estava em Maputo, na
capital, e a guerra se passava no centro-norte. Eu era jovem quando a
independência chegou, quando então eu tinha de 12 para 13 anos. Então, não
posso dizer que tivesse consciência dos fatos. Tive mais conhecimento e
consciência do período de guerra que começa no conflito com a Rodésia e,
depois, com a intervenção sul-africana. Eu fui estudar no exterior na década de
80, mas a guerra em Moçambique era uma realidade, em um processo muito cruel.
Dessa segunda parte da guerra, eu tive plena consciência.
O
sr. foi diretamente para a Itália para fazer a graduação?
Sim.
Foi
movido principalmente pela questão religiosa?
Eu era seminarista, tinha
estudado filosofia em Maputo e, então, fui encontrar minha filosofia por meio
da teologia. Estava num quadro praticamente religioso, sem nunca abandonar
minhas preocupações fundamentais em termos de emancipação, de onde veio esse
interesse pela Teologia da Libertação, que já mencionei antes.
E
como foi sua adaptação na Itália, em um mundo totalmente ocidentalizado?
No colégio onde eu estava, o
que descobri, em primeiro lugar, e que me interessava muito, foi a África, por
paradoxal que fosse. Nasci em Maputo, a capital de Moçambique. Primeiro, eu
tive consciência de ser moçambicano e sempre preferi essa “moçambicanidade”,
apesar de ser uma identidade em construção. Quando cheguei a Roma, entrei num
colégio que tinha mais de cem estudantes, e 99% deles eram africanos. Era um
colégio feito especialmente para quem viesse dos países da África. Tinha um mexicano,
um sírio e alguns vietnamitas que acabavam de chegar. O restante era de
africanos. Então, comecei a conhecer um ruandês, um burundês, um nigeriano, um
queniano, um congolês, um malgaxe. No fundo, Roma permitiu-me descobrir a
África. A África, que era só uma palavra, eu comecei a tocá-la com os dedos,
nas línguas, nos sabores das comidas que se cozinhava, nas linguagens, nos
problemas, nos conflitos, nas realidades sociais etc. Eu descobri a África na
Europa; mas nem era Europa: era Roma, o centro da catolicidade mundial. Me
permitiu isso.
A
própria palavra, “católico”, significa “algo de caráter universal”…
Exatamente. Ao mesmo tempo,
também descobri uma parte da Europa: os costumes, a maneira de ser, de viver,
as diferenças sociais, de línguas e de linguagens, até o fato de sair de uma
pobreza de Moçambique para uma Roma de certa opulência. Ir de um Moçambique em
guerra para uma Roma que respirava paz — apesar de ter ainda uma Brigadas
Vermelhas [organização paramilitar de guerrilha comunista italiana] quando
cheguei, mas já no fim —, era uma estrutura social completamente diferente. Mas
a Roma que vivi — a Roma cristã, eclesiástica, que era também uma Roma laica,
onde jogamos futebol e íamos à cidade como toda a gente —, era muito mais
tolerante que a Roma que encontro hoje. Quero dizer que o africano era mais um
objeto de curiosidade no sentido positivo da palavra, mas não de discriminação.
A Roma de hoje, me parece, quando vê um negro, um árabe, mais o discrimina do
que o acolhe como uma surpresa pela diferença que pode trazer no viver
conjunto.
Eu credito aos processos de
imigração. A imigração foi e é um processo violento. É violento para as
pessoas, que precisam abandonar suas casas e enfrentar o mar. Parece que
estamos condenados a sempre fazer frente ao mar: uma vez pela escravatura, uma
vez pelo colonialismo e, agora, quase que de maneira involuntária, temos de
atravessar o mar para lutar pela sobrevivência. É violento pelo número de
mortes, pela destruição de famílias, pelo abandono das terras, pela
discriminação; também é violento para as pessoas que, de um dia para o outro,
precisam acolher pessoas que não conhecem sua língua e que quase têm essa
sensação de invasão por pessoas que chegam e não sabem muito bem como
integrá-las e conviver com elas.
Esse processo é violento
também pela exploração que certos grupos fazem da imigração, colocando
imigrantes para trabalhar 12, 13, 14 horas por dia, pagando pouco. Isso acaba
criando guerra de pobres. Quero dizer que é um processo violento para uns e
outros e que, no fim, acaba por incrementar a xenofobia e reforçar posições de
extrema direita, como a da discriminação e a demonização do outro. Isso está
fazendo avançar, também, a força de certos políticos radicais em alguns países.
Quando
o sr. pensa nos problemas dos refugiados e da imigração, que talvez seja o
drama mais sério do mundo hoje, consegue definir um ponto central? É a disputa
religiosa, que envolve, por exemplo o radicalismo do Estado Islâmico? Ou seria
uma questão econômica ou climática, que afeta bastante a África,
principalmente? É possível dizer que existe algo mais grave nesse processo ou é
um conjunto de fatores?
Acho difícil identificar um
fator como sendo o determinante. Quando olho para o processo de imigração,
como já aconteceu na Itália, em um primeiro momento me parece estar ligado ao
imaginário. Quando os programas das televisões privadas italianas começaram a
ser vistas na Albânia, aquilo que os albaneses viam era uma Itália que parecia
opulenta, cheia de bens e de possibilidades, diante da terra deles, que era
cheia de dificuldades. A primeira imigração que chegou da Albânia foi produzida
pelos efeitos da televisão. Ora, as televisões não mostram a vida das pessoas,
mas outras realidades, com casas grandes. É como ocorre com as telenovelas
brasileiras.
Em
Moçambique passam as novelas brasileiras?
Até demais (risos). Por isso,
o moçambicano de senso comum tende a pensar que o Brasil é aquele da novela,
assim como os albaneses pensaram que a Itália era aquela que viam na TV. E essa
foi a produção que criou uma miragem e fez com que muitos albaneses fossem para
a Itália. Mas também na África subsaariana essa questão da representação é
importante. As pessoas que atravessam da África subsaariana para a Europa são
pessoas que têm um conhecimento científico geográfico de onde ficam o Sul e o
Norte, que são citadinas e que têm um mínimo de meios para pagar aqueles que os
fazem atravessar.
Mas essas pessoas, que estão
nas cidades e que podem acumular dinheiro, não são necessariamente as mais
pobres e com mais problemas nos países de origem, mas elas imaginam que,
chegando à Europa, suas condições de vida vão melhorar. Uma vez mais, é o
imaginário, mais que a realidade social. Porque na Europa, muitas vezes, as
condições por que elas vão passar são de maior pobreza do que as condições que
tinham no país de origem. Então, as questões de imaginário e de representações
determinam mais a imigração que de fato as diferenças sociais e econômicas.
Aqui entra a questão de
desequilíbrio econômico; do discurso que se faz em volta dele. [Umberto] Bossi,
que era da Liga Lombarda, um movimento de extrema direita, dizia: “Se não quer
imigração, ajudem as pessoas onde elas estão”. Quer dizer que as políticas de
desequilíbrio entre o hemisfério norte e o hemisfério sul não favoreceram
absolutamente nada a fixação das pessoas do sul em seus lugares de origem.
Depois, os outros fatores vão se acrescentar a isso. É preciso ver que o
oportunismo econômico fez com que muitas pessoas fingissem que não queriam a
imigração, mas que, no fundo, tirassem proveito dela. Depois da Segunda Guerra
Mundial, De Gaulle dá ordens para que os imigrantes portugueses, espanhóis e
italianos entrassem à noite e não de dia. Por quê? Se eles entrassem de dia,
teriam de ser registrados e ter as mesmas condições sociais e trabalhistas; se
entram à noite, eles seriam um tanto clandestinos, não se precisaria pagar a
mesma coisa.
Então, essa imigração, se de
um lado é devido ao que acontece no sul, há no norte um certo apelo por ela. Eu
encontrei um homem no norte da Itália que dizia que empresas dele cresceram
muito quando chegaram os imigrantes. Ele paga em dinheiro, faz trabalhar 12
horas e não 8 por dia. Qualquer pessoa de Roma hoje tem uma empregada doméstica,
o que não acontecia há 20 ou 30 anos; empregadas domésticas de Cabo Verde, das
Filipinas. Quer dizer, o Ocidente tirou proveito desse tipo de tráfico sem
nunca dizer oficialmente que estava em seu raio de interesse que essa imigração
acontecesse. O que a Alemanha fez agora com os da Síria foi uma imigração
coletiva: “Nós queremos que venham o especialista em informática, o engenheiro,
por ser útil para nossa indústria. Mas não queremos aquele que não tenha
formação alguma”. Quer dizer, existe um maquiavelismo político que justificava
isso.
Por agora, o último movimento
dos sírios também obedeceu mais ou menos a mesma lógica, mas é preciso ver que
a desestabilização do Oriente Médio é resultado das falhas das políticas do
próprio Ocidente, do intervencionismo no Iraque, na Síria e na Líbia. As
questões políticas e econômicas do mundo sempre passam pelas armas. Quer dizer,
o gangsterismo do Estado, o “texanismo” das políticas ocidentais. Para o
Ocidente e essas políticas, tudo se resolve com armas. Pode-se tomar um
presidente de um país e matá-lo. Vivem, afinal de contas, de desestruturar.
Jogam bombas por cima, mas não querem descer lá embaixo para ajudar a
reconstruir o tecido social. E isso está na origem da criação de todos os
movimentos de desestabilização que o Oriente Médio conhece. A imigração é um de
seus corolários. Um alerta, porém, é que quem sofre, em primeiro lugar, não são
os ocidentais: são os próprios sírios, são os libaneses, são os iraquianos.
Então, o que o mundo ocidental
mostra em suas reportagens é o Ocidente desesperado, sem saber o que fazer. Mas
quem está desesperado, de fato? São aqueles que abandonam suas casas em seus
países de origem.
Esses
são as primeiras e verdadeiras vítimas do processo de migração, não?
Quando eu era jovem, estava na
Itália e caiu o Muro de Berlim. Eu fui o primeiro a ficar na fila de uma livraria
para comprar a “Perestroika”, de Mikhail Gorbachev [então presidente da União
Soviética]. Eu tinha muita esperança de que a Guerra Fria iria acabar e nós
iríamos construir um mundo novo com a democracia, com valores diferentes. Eu
sonhava que a produção de armas iria acabar, que a militarização do mundo iria
acabar e que os campos minados iriam desaparecer. A pequenez das classes
políticas que nós tivemos desde a queda do Muro de Berlim fez com que, ao invés
de acabarmos com os conflitos, com o fim da Guerra Fria nós exacerbássemos
esses conflitos. Tivemos presidentes e uma elite política de mente pequena, que
não foram capazes de perceber isso como uma oportunidade de construir, de fato,
um mundo diferente. Hoje estamos a reconstruir os muros. Construímos muros no
Peru, para separar os ricos dos pobres, me parece que em Lima; construímos
muros na Turquia e na Tunísia, para que os africanos da África subsaariana não
fossem para lá. E começamos a construir muros na própria Europa, como vemos na
Áustria e, agora, na Croácia.
Quer dizer, todas aquelas
pedras que tiramos de Berlim, metemo-nas de lado, à espera de um bom momento
para voltar a pô-las. E agora nem sequer aquelas pedras bastam: estamos a
colocar novas pedras para criar novos muros. Hoje, não é o Muro de Berlim, mas
o muro entre riqueza e pobreza, entre o sul e o norte. Essa é a realidade.
A
maioria dos bolivianos e peruanos que vêm para o Brasil passa a trabalhar em
subempregos nas grandes cidades, notadamente em São Paulo, onde há muitas confecções,
inclusive de grifes famosas que já foram autuadas por promover trabalho
praticamente escravo. Muitos desses migrantes acabam por desempenhar tarefas em
cubículos, durante horas e horas, sem as mínimas condições de dignidade. Em
Goiânia, temos um boom de condomínios horizontais, onde as pessoas que têm
poder financeiro podem pagar para se cercar de segurança, bem como proteger
seus bens. Esses muros modernos dividem quem pode pagar para estar dentro deles
e quem acaba excluído, como ocorria, de certa forma, na idade média, com as
fortalezas feudais. Isso que o sr. diz, então, é um fenômeno que ocorre
interpaíses, mas também “intracidades”. É o fim da utopia? Para quem vem do
seminário, da experiência com a Teologia da Libertação, como é ver esse
contraste do mundo pós-Muro de Berlim?
O tempo em que nós vivemos é
um tempo não de riqueza de nações, como preconizava Adam Smith. Hoje isso
perdeu muito de seu sentido, embora ainda haja nações de fato ricas, como
Luxemburgo, Suíça, Suécia etc. Mas o que nós assistimos nos Estados Unidos, por
exemplo, é a existência de grupos ricos e outros de muita pobreza; no Brasil, a
mesma coisa. No sul do mundo, chegamos a países como a África do Sul, em que
vemos pequenos grupos de ricos e muitos pobres. Em Moçambique, a mesma coisa.
Então, os muros não separam só países. Há pessoas para as quais não há muros,
não há fronteiras. Se você tem um cartão de crédito bem cheio, não tem muro que
você não atravesse — este é o título de um poema de um escritor da Martinica
que diz que “não há muros que não atravessemos”. Eu concordo, não há muros que
a gente não atravesse assim. Se a pessoa tem um grande limite de crédito, hoje,
independentemente, da cor de suas pernas, de seu país de origem, se você mostra
que tem 1 milhão de dólares pode atravessar qualquer muro voando, pois o cartão
de crédito abre qualquer porta, ultrapassa qualquer fronteira. Quero dizer que
os novos muros são simbólicos. Os muros que nós pomos os aviões passam por cima
deles. Nós mantemos os muros físicos, mas quem tem meios não tem muros, podem
atravessá-los e ir para onde quiserem. Os muros são feitos para os pobres e
esses pobres não se encontram apenas no hemisfério sul, mas também no
hemisfério norte. Eles, os pobres, têm muros, independentemente do fato de
serem de onde são. O grande paradoxo é que, no fim, os que se põem a combater,
os que lutam, os que se embatem, os policiais e os policiados, são todos da
mesma classe. São os pobres que estão em confrontação. E este é o trágico, ou o
tragicômico, se você assim quiser, da civilização em que vivemos.
O
sr. conhece bem a Igreja Católica. Como o sr. vê hoje, nestes tempos, a figura
do Papa Francisco?
Você conhece a história de
Davi e Golias, não é? Pois então, só uma vez o mais fraco ganhou do mais forte.
Por um lado, isto desencoraja, pelo fato de não esperar que mais casos assim
não possam acontecer, mas, por outro, há um precedente positivo, a ponto de que
torçamos para que o mesmo possa se repetir. Os dogmáticos da Igreja Católica
dizem que a conversão de Constantino [primeiro imperador romano a professar o
cristianismo, no ano 312] fez muito mal a igreja, pois ela se ligou ao poder.
Durante toda a época medieval, o poder transcendental, teocêntrico, da Igreja
prevaleceu sobre outras esferas do poder. Aliás, o luteranismo originou o
protestantismo no embate contra os excessos que se praticavam nas cúrias. A
história da escravatura e do colonialismo teve, na Igreja, digamos, um
paradoxo. Por um lado, ela foi cumplice e, por outro, ela denunciou. A Igreja
sempre teve essas duas alas, esta dicotomia foi sempre presente: com Ricci
[padre Matteo Ricci, jesuíta que é considerado o fundador das missões católicas
na China, no século 16] na China, com Las Casas [Bartolomé de las Casas, frade
dominicano espanhol, tido como o grande protetor das civilizações indígenas,
também no século 16] nas Américas, com o processo dos jesuítas que armam os
índios na América Latina. Depois, já vemos ocorrer as concordatas, que dariam
aos portugueses o direito de quase um senhorio sobre as populações indígenas de
Moçambique, por exemplo.
Portanto, a igreja sempre teve
um processo dicotômico. A Teoria da Libertação é muito interessante nesse
aspecto, pois ela faz uma opção clara, a famosa opção pelos pobres. O papa
Francisco parece querer dar continuidade a essa Igreja pelos pobres. Mas ele se
encontra com um monstro chamado história, que tem 17 séculos de existência e
que é ligado à governação, a seus paradoxos, aos movimentos de direita etc. O
que quero dizer é que, nessa luta de Davi contra Golias, o grande Golias é a
própria história e a própria institucionalização. Falamos aqui de globalização;
pois o primeiro autor global da história é a Igreja Católica. E ela tem uma
história tal que, hoje, não se consegue mudar leis no Brasil porque
historicamente sempre foi assim. Um senhor de um ministério brasileiro falaria
“isto é contra a história do Brasil!”. E o Brasil tem quantos séculos? Pouco
mais de cinco. A Igreja Católica tem 17, pelo menos institucionalizada. Quero
dizer que esse Golias será muito difícil de abater, mas é bom que o Papa tenha
posições arrojadas e irradie o que faltou à Igreja. Um teólogo, depois do
Concílio Vaticano II, disse que a Igreja está sem fôlego para acompanhar a
corrida dos tempos. O que o papa está tentando fazer é correr com uma bicicleta
atrás de foguetes, que voam a grande velocidade. Por isso é que vejo uma luta
de Davi contra Golias. Mas, se não tivermos a ousadia desses Davis, a
discrepância com os tempos históricos vai ser ainda maior. Elder Dias – Brasil in “Jornal Opção”
brilhantes palavras.
ResponderEliminarbrilhantes palavras.
ResponderEliminarGOSTEI DR
ResponderEliminarBoas informacoes Dr.Lenda viva
ResponderEliminargrande celebre dos nossos tempos.
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