Ainda hoje, nossas
concepções acerca da história sofrem a contaminação de modelos baseados no
chamado “senso comum”, no personalismo e em outros vícios que nosso sistema
educacional teima em reproduzir. Com isso, resta esquecido que para refletir
criticamente sobre os acontecimentos do passado – recente ou remoto – é preciso
fazer uso de uma mescla de critérios científicos e subjetivos, trabalhados
harmonicamente, em constante diálogo.
Aceitar como verdades
incontestáveis as informações reproduzidas por determinadas pessoas ou por
veículos de comunicação, cuja legitimidade baseia-se apenas em seus percentuais
de audiência é, no mínimo, ingenuidade. Sem método para reflexão, sem análise
criteriosa, toda informação é especulação. Por outro lado, os dados e os
números frios, desacompanhados de interpretação, também não se traduzem em
conhecimento efetivo sobre a realidade.
Mas, então, como
confiar no que se vê, no que se ouve, no que se lê, sem correr o risco de
reproduzir falácias ou ideias equivocadas? Questão difícil quando se sabe que a
própria escrita da História ainda se debate entre o cientificismo puro ou o
relativismo que a coloca como mais uma entre tantas formas de narrativa. Roger
Chartier afirma que o trabalho do historiador não pode se afastar do objetivo
de buscar a verdade, mesmo que tal objetivo possa ser, conceitualmente,
impossível de atingir. Abandonar tal busca seria deixar o campo livre a toda
sorte de falsificações, a todos aqueles que, “por traírem o conhecimento, ferem
a memória”.
Assim, o exercício
constante de um olhar crítico perante toda informação é uma forma de evitar, na
medida do possível, a ideia enganada, o ato intempestivo e a reprodução do
erro. Por isso, é importante não se fiar em uma única fonte informativa,
aceitar que toda ideia evolui ao longo do tempo e, por fim, buscar
conhecimentos que permitam discutir e compreender.
Dentre as ferramentas
utilizáveis para a construção da história, a memória pessoal é a mais carregada
de subjetividade. Assim, seu uso como forma de interpretação de determinado
período ou fato histórico estaria contaminado por procedimentos próprios da
literatura. Entretanto, desde que Walter Benjamin fez uso de fragmentos de
memória para contar a história de uma cidade em “Infância em Berlim por volta
de 1900”, aprendemos que se a memória é ineficaz para uma construção linear dos
fatos, pode tecer um painel de percepções múltiplas, simultâneas e polifônicas
que se entrecruzam para formar o tecido histórico, conforme afirma Pablo
Porfírio.
Adelto Gonçalves não
omite o fato de que a memória é o reservatório de onde retira os acontecimentos
e os personagens que povoam as páginas de “Os vira-latas da madrugada”. Em sua
infância, vivida à beira do cais do porto de Santos, assistiu ao desfile desses
trabalhadores portuários, malandros, bêbados, prostitutas, pequenos
comerciantes contra o pano de fundo dos momentos que antecederam o golpe
militar de 64.
É desse material que
retira sua narrativa e é a partir dele que vão surgindo as figuras vivas do
moleque Pingola, do revolucionário Marambaia, do aspirante a craque Cariri, das
prostitutas Irene e Sula, do mendigo Plínio, de Nego Oswaldo, de Quirino, todos
vivendo entre as boates, os cortiços, bares, armazéns e bordéis do bairro do
Paquetá. O autor assume a condição de espectador dos fatos que deram origem à
ficção ao inserir entre um capítulo e outro algumas descrições autobiográficas,
que qualifica como “confissões”.
Se o recurso tenciona
acrescentar credibilidade factual aos eventos narrados, a subjetividade
memorialística invade o suporte histórico, resultando num movimento que passa
do ficcional ao documental e àquele retorna, expandindo e enriquecendo a
leitura. Dessa forma, se a interferência explícita da voz do autor não permite
esquecer que estamos diante de suas lembranças, o momento histórico em que a
narrativa transcorre surge por inteiro através dos olhos de uma testemunha
ocular dos fatos.
“Os vira-latas da
madrugada” é um pungente retrato de um mundo marginal, onde o lenocínio e a
malandragem convivem com anseios por tempos novos, coroados pelo fim da
exploração e da miséria de toda espécie. Aos olhos do leitor, os destinos
desses personagens românticos defrontam-se com uma violência maior, implacável.
E é então que sua luta por uma justiça social inatingível nos toca de maneira
especial. Porque, enfim, ainda hoje partilhamos os mesmos sonhos e ainda
buscamos os meios de transformá-los em realidade. Edmar Monteiro Filho – Brasil
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Os
vira-latas da madrugada, de Adelto Gonçalves, com prefácio de
Marcos Faerman, apresentação de Ademir Demarchi, posfácio de Maria Angélica
Guimarães Lopes e ilustrações e capa de Enio Squeff. Taubaté-SP: Associação
Cultural Letra Selvagem, 216 págs., 2015, R$ 35,00. E-mail:
letraselvagem@letraselvagem.com.br Site:
http://www.letraselvagem.com.br
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Edmar Monteiro Filho é mestre em Teoria e História
Literária pela Universidade Estadual de São Paulo (Unicamp), título obtido com
a dissertação “O major esquecido: Histórias
de Alexandre, de Graciliano Ramos” (2013), e doutorando em Teoria e
História Literária na Unicamp. Recebeu os prêmios literários Guimarães Rosa
(1997) e Cruz e Souza de Literatura, entre outros. Publicou Fita Azul (romance, Babel, 2012) Este lado para cima (poesia, edição de
autor, 1993), Halma húmida (poesia,
edição do autor, 1997), Às vésperas do
incêndio (contos, edição do autor, 2000), Que fim levou Rick Jones? (contos, 2010) e a novela Azande (novela, edição de autor, 2004). Assina uma coluna em que faz resenhas de
livros no jornal semanário A Tribuna,
de Amparo. E-mail: edmont@uol.com.br
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