Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Dalton Trevisan e o apuro da crítica

I
Nascido como tese de doutoramento na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), orientada pelo lendário professor Antonio Candido, Do vampiro ao cafajeste – uma leitura da obra de Dalton Trevisan (São Paulo, Hucitec, 1982), de Berta Waldman, professora-titular no Departamento de Letras Orientais da USP, ganha agora segunda edição acrescida de 17 artigos escritos nos últimos anos, com o título Ensaios sobre a obra de Dalton Trevisan (Campinas, Editora Unicamp, 2014), com apresentação de Hélio de Seixas Guimarães, prefácio de Modesto Carone e texto de orelha de Vilma Arêas.

Entre as teses que defende, Berta destaca o valor da repetição na obra de Dalton Trevisan, contista que, com linguagem popular e concisa ao extremo, conseguiu criar personagens de significado universal, especialmente o cafajeste Nelsinho, o vampiro de Curitiba, além de outros tantos “pássaros de cinco asas quebradas” que incluem uma multidão de funcionários públicos, lojistas, prostitutas, donas de casas, domésticas, profissionais liberais e trabalhadores da terra que, no dizer da autora, “contentam-se em sugar o outro, transformando-o à sua imagem e semelhança”. Para tanto, a professora compara o vampiro de Trevisan ao conde Drácula, especialmente o retratado no romance gótico Drácula, do irlandês Bram Stocker (1847-1912), publicado em 1897.

Nesse percurso em que Trevisan transforma o célebre conde em cafajeste brasileiro, como observa o professor, jornalista, tradutor e escritor Modesto Carone no prefácio, Berta constrói um caminho que vai da metáfora – a metáfora do vampiro que se autorreproduz – para a descrição dos seus termos. Para Carone, com este livro, a ensaísta “põe as coisas no eixo e diz convictamente porque Dalton Trevisan é, afinal de contas, um autor sério – e sério, aqui, significa o escritor suficientemente desperto para inovar formas e, por intermédio delas, dar relevo estético e histórico para as coisas do seu tempo e lugar”.

A autora ressalta ainda o recurso do clichê utilizado por Trevisan como elemento construtivo articulador da linguagem, com o uso abusivo de diminutivos, frases feitas, letras de hinos pátrios, músicas populares, cartas escritas sob a inspiração do consultório sentimental das antigas revistas femininas e ainda construções calcadas na imprensa marrom e nos boletins de ocorrências das delegacias de polícia. “Nesse caso”, diz Berta, “o eu que fala e o tu que se apresenta como interlocutor de uma fala vazia ocupam o lugar de um ele, de uma não pessoa, na medida em que se nega ao sujeito o papel ativo na elaboração do próprio discurso”.

Para a ensaísta, como decorrência dessa ausência de sujeito, há nos contos de Trevisan uma “irresponsabilidade” com relação ao que se fala, a ponto de, em certos momentos, o leitor não conseguir identificar o emissor, que tanto pode ser o narrador, como uma personagem ou outra.

                                                           II
Como bem ressalta na apresentação Hélio de Seixas Guimarães, professor livre-docente de Literatura Brasileira do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP, especialista em Machado de Assis (1839-1908), Berta mostra que nas narrativas de Trevisan é frequente o uso do discurso indireto livre em que a voz do narrador é atravessada pela das personagens e aponta também o que define como “discurso direto livre”, “referindo-se à frequente interrupção, no discurso do narrador e sem prévio aviso, de frases das personagens”.

Diz mais: Os sujeitos vampirizados são ventríloquos de discursos prontos, ready mades, enunciadores de frases feitas, colhidas no meio da rua ou nos meios de comunicação de massa. Mas também não se limitam a isso, pois resta humanidade nos dentes que lhes faltam na boca, no acessório prafrentex e cafona, no sexo feito às pressas, no desejo de ser alguma coisa que não são e talvez nunca possam ser, o que imprime uma nota pungente e inconfundível às narrativas de Dalton Trevisan”.

Para Guimarães, Trevisan e Machado de Assis agem como verdadeiros larápios, saqueando e recontextualizando as fórmulas esvaziadas dos mass media, no caso de Trevisan, e da retórica, no caso de Machado. De fato, neste livro, como observa com percuciência a ensaísta e ficcionista Vilma Arêas no texto que escreveu para a orelha, “a sofisticação do autor se encontra com o apuro da crítica, e assim se completam”.

                                                           III
Ao que parece, Berta Waldman nunca conversou diretamente com Trevisan, até porque o escritor mantém-se arredio até hoje àqueles que estudam sua obra ou mesmo a jornalistas ou admiradores. Preferiu assim “dialogar” com o autor da única maneira possível, ou seja, estudando seus textos, apontando a tendência do contista para o enxugamento da linguagem, o que se comprova em suas mini-histórias e seus hai-kais e até mesmo na novela A polaquinha, publicada em 1985, que conta a história de uma moça pobre, de vida difícil, mas muito cobiçada pelos homens, como disse em entrevista a Ubiratan Brasil, em O Estado de S. Paulo, de 11/5/2015.

Aliás, até hoje se conhece apenas uma entrevista que Trevisan tenha dado à imprensa e, mesmo assim, sem sabê-lo. Foi em 1980, quando o repórter Marcos Barrero, da revista Status, de São Paulo, destacado para escrever um perfil do escritor, ficou três dias em Curitiba à caça do autor, até que, por indicação de amigos íntimos da personagem, conseguiu se aproximar dele numa banca de jornais da Boca Maldita, zona central da cidade.

Apresentou-se como professor, o que de fato era, e com um gravador minúsculo no bolso de dentro do paletó, que usava como repórter da rádio Jovem Pan, de São Paulo, gravando uma conversa de quase uma hora com o autor de Virgem louca, loucos beijos (1979). Com a entrevista e as informações passadas por seus amigos e fotos cedidas às escondidas por Rosana, filha do contista, Barrero escreveu um memorável perfil que ocupou oito páginas na edição de maio daquele ano da revista.

                                                           IV
Berta Waldman nasceu em São Paulo. Estudou Letras na Universidade de São Paulo. Professora de Literatura Brasileira e Teoria Literária na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), dedicou-se também à Literatura Hebraica. Em sua bibliografia, além de Do vampiro ao cafajeste – uma leitura da obra de Dalton Trevisan, destacam-se: A paixão segundo Clarice Lispector (São Paulo, Editora Brasiliense, 1983), Nelson Rodrigues: flor de obsessão (São Paulo, Editora Brasiliense, 1985), em parceria com Carlos Vogt, e Linhas de força: escritos sobre literatura hebraica (São Paulo, Humanitas, 2004). Adelto Gonçalves – Brasil

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Ensaios sobre a obra de Dalton Trevisan, de Berta Waldman. Campinas: Editora Unicamp, 285 págs., R$ 58,00, 2014. E-mail: vendas@editora.unicamp.br


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Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), e Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br

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