Carta de Bissau
História do Adile Sebastião e dos ”Fidjus di Bideras”
Advertência ao leitor: prepare o seu lencinho
porque vai chorar, pois o que ler é mesmo para fazer verter lágrimas, muitas.
Nem tudo na Guiné-Bissau é política, ou pelo
menos política dura, suja e violenta. E nem toda a gente transpira corrupção e
droga. Há muita gente boa (e alguma má) em todos os grupos sociais e em todo o
lado neste nosso mundo. Posso citar muitos países na África, da Ásia, Europa,
Américas, onde, em termos per capita, há mais sacanagem e mais crimes se
praticam do que nesta Terra de Deus, a Guiné-Bissau.
Esta é uma terra abençoada com muita água,
chuva, rios e lagos. Um mar muito, muito rico. Mas esta enorme riqueza marinha
está a saque em pleno dia por centenas de traficantes, oriundos de países que
falam muito sobre a droga na Guiné-Bissau, mas não dizem uma palavra sobre a
pesca ilegal, espoliando e levando à ruína milhões de gentes simples de toda
esta região da África.
Enquanto o vizinho Senegal está sendo
devorado pelo deserto do Sahel, asfixiado pela poeira, a Guiné-Bissau exibe
verdura luxuriante, com belas florestas de madeiras raras que até atraem
comerciantes sem escrúpulos do Império do Meio.
A Guiné-Bissau foi também abençoada com um
povo bom, avesso à violência. Aqui há tradições ricas, profundas, místicas,
difíceis de decifrar; há dança, música, poesia, cinema.
Já fui a um concerto de jazz com orquestra.
No passado, fui frequentador dos grandes clubes de jazz em Greenwich Village,
Nova Iorque, mas um concerto de jazz com uma orquestra sinfónica, só em Bissau!
Foi no Centro Cultural Francês, com agendamento cultural variado toda a semana,
onde assisti a esse fabuloso concerto de jazz apresentado por um famoso grupo
alemão. O Centro Cultural Francês é um magneto na cidade, atraindo centenas de
pessoas, de todas as idades, cada semana.
O Centro Cultural Brasileiro não fica atrás,
com muitas atividades culturais, musicais, literárias e cinematográficas de
grande qualidade.
O Centro Cultural Português é muito mais
parco em atividades. Sou bem timorense, mas a minha costela luso-judaica faz-me
viver e sofrer com Portugal e fico triste quando oiço falar deselegantemente do
CCP. Dizem que ali só há o jornal “A Bola”! Dou a mão `a palmatória…ainda não
fui lá. Hei-de ir e tenho esperança em desaprovar aqueles que falam mal do
Centro Cultural Português. Vou descobrir que, além do venerado jornal “A Bola”,
há muito mais eco da grande herança cultural portuguesa.
Políticos não faltam na Guiné-Bissau. Há mais
de 30 partidos políticos. Isto significa que não falta gente com ambição de
governar. Há também universitários sem conta, desde advogados a economistas,
até médicos. As Forcas Armadas têm oficiais altamente formados, licenciados e
mestrados. Ouvimos falar apenas no General António Injai, mas há muitos outros,
jovens e de grande intelecto.
E aqui atribuem-se todos os males, dos
pequenos aos mais graves, aos militares. Pude comprovar alguns incidentes em que,
com a maior desenvoltura, se acusava os “militares” para, após alguma
averiguação por mim feita, se vir a concluir que, afinal, nenhum militar
estivera envolvido.
Há comerciantes experientes, relativamente
bem sucedidos, aqui e na região. Mas, então, porquê esta estagnação e
depauperamento? Hoje decidi escrever só sobre as coisas boas, pois das más toda
a gente escreve.
E vou partilhar com vós (sim…com vós…não digo
convosco, pois gosto mais de dizer com vós…) uma história bonita, que faz
chorar.
É a história do Adile Sebastião. Ele é o
segundo de sete filhos do casal Domingos Armando Sebastião, empregado comercial
de 60 anos, e Abelina Biaguê, doméstica e vendedora, de 51.
Conheci-o há umas semanas, quando aceitei um
convite para assistir a um jogo de futebol promovido pela Academia Fidjus de
Bideras (crioulo), o que em português significa “Filhos das Vendedeiras”. O
estádio, recém construído pela cooperação chinesa, fez-me inveja, sendo
timorense. Nós, em Timor-Leste, temos um estádio que, mesmo depois da sua
reabilitação, não tem sequer metade da dimensão e condições deste estádio de
Bissau.
Ele e seus amigos e companheiros de pobreza e
luta decidiram criar esta academia em homenagem às suas mães, mulheres simples,
dignas, trabalhadoras, que cada dia labutam no mercado a vender comidas para
recolher algum dinheiro destinado à sobrevivência da família.
Eu fui a esse mercado, uma manha, há uma
semana, e assim conheci as mães “Bideras”. Conheci a mamã Abelina, mãe do herói
deste meu conto de hoje.
A Dona Abelina tem 51 anos, mas podia ter 71;
magra, pele seca, cara sorridente, vestida muito simples, pé descalço. Ela
vende uma espécie de canja, que prepara em casa e leva de manhã cedo para o
mercado.
Senti-me pequeno perante a dignidade daquelas
mães de pé-descalço. Receberam-me com calor, alegria, algumas com lágrimas nos
olhos. Eu era a primeira pessoa “importante” a visita-las.
O meu herói de hoje – de nome Adile Sebastião
– nasceu em Bissau e aqui estudou até ao 7º ano. Agora, pelas suas próprias
palavras:
“Hoje, 11 de Junho, faz precisamente 15 anos
que deixei a Guiné com medo da guerra. Saímos num barco da marinha senegalesa
que tinha trazido militares para combaterem ao lado do então Presidente Nino
Vieira e, no regresso, evacuou cidadãos estrangeiros. Nem sei como, mas entrei
no barco e fui parar a Dakar. Três dias depois, um senhor cabo-verdiano, também
ele refugiado no mesmo centro de acolhimento, teve pena de mim e ofereceu-se
para me levar para a sua casa em Cabo-Verde. Tratou da papelada e seguimos num
voo da força aérea portuguesa. Em Cabo-Verde, eu mantinha-me sempre ligado à
RDP-África, para ter informações sobre a situação na Guiné. Foi assim que
descobri que uma fragata portuguesa estava a caminho de Praia, com refugiados
guineenses. Fui ao porto para ver se via algum familiar, pois o último contacto
havido com a minha família fora há uma semana e não sabiam do meu paradeiro. No
porto, soube que iam para o aeroporto e, depois, para Portugal. Segui para o
aeroporto e acabei por me juntar a eles, e fui para Portugal. Estava a quatro
meses de completar 13 anos.
“Em Portugal, encaminharam-me para a Mansão
Santa Maria de Marvila, uma instituição da Igreja Católica, onde permaneci,
mais ou menos, uma semana, até conseguir localizar um tio meu. De seguida, com
a ajuda dele, liguei para um programa que promovia o reencontro dos guineenses
separados pela guerra e deixei uma nota que emitiram. O meu pai ouviu que
estava fora de perigo… nove meses mais tarde consegui falar ao telefone com
toda a família e ficaram finalmente sossegados.
“O meu sonho sempre foi jogar futebol e o FC
Porto tinha estado na Guiné meses antes da eclosão do conflito, à procura de
talentos. Contactei-os, e propuseram-me ir para um clube no norte de Portugal,
concretamente em Matosinhos. Fui morar para o Lar do Leixões, onde me deram as
condições para estudar e jogar futebol. Estive cinco anos e, depois, mudei-me
para o Boavista FC, que me assegurou as mesmas condições e um subsídio
mensal…que nunca cheguei a receber. Nessa altura, tinha 17 anos e estava a
completar o Ensino Secundário. Decidi deixar de jogar futebol e entrei no
mercado de trabalho. Com a ajuda de um amigo e aproveitando a circunstância de
Matosinhos ser uma cidade costeira, sofrendo os efeitos das salinas do mar,
ofereci-me para limpar os vidros de montras das lojas e janelas de casas.
Arrendei um apartamento, pagava a minha alimentação, estudos e conseguia ajudar
a família na Guiné.
“No ano seguinte, entrei para o Curso de
Direito na Universidade Católica Portuguesa, Porto, através de uma bolsa social
da instituição. Queria ser magistrado. Acordava cedo, tratava da minha agenda
quanto aos vidros e seguia para as aulas. Entretanto, fruto do facto de o meu
trabalho se desenrolar em lojas e casas de outras pessoas, fui ganhando amigos.
Foi assim que conheci o Diego, um jogador da Seleção Brasileira, que me mudou a
vida. Tornámo-nos muito amigos e beneficiava…do estatuto de estrela que ele
detinha. Facto que, infelizmente, quase me ia atrofiando a vida, embora tivesse
ganho muita coisa boa no complicado “mundo da fama.
“Por ter acesso facilitado aos jogadores de
futebol, detentores de grande poder de aquisição, criei uma imobiliária que
apenas negociava nesse nicho de mercado. Permitiu-me ganhar algum dinheiro.
“Em 2007, nove anos depois, voltei à Guiné,
de férias. Encontrei tudo pior do que quando tinha saído. Vi a minha família
numa situação muito complicada. Os meus pais tinham-se separado e os meus
irmãos estavam sem grandes perspetivas. Essa viagem fez-me crescer e passei a
ter como prioridade ajudá-los. Arrendei um apartamento maior em Portugal, levei
quatro comigo. A mais velha já vive sozinha e trabalha num restaurante. O que
me segue é um grande chefe! Trabalha num dos melhores restaurantes do Porto e é
um orgulho. Os outros dois são mais novos e estão no último ano do Secundário.
A caçula é um exemplo na escola e quer ser médica. O outro quer fazer Gestão
Desportiva. Tenho uma outra a quem financio os estudos no Brasil. Está a
finalizar a Licenciatura em Biblioteconomia. Eram duas, uma delas não se
adaptou, há quatro meses voltou, vive comigo e com o meu pai até se conseguir
outra solução.
“Em 2009 licencie-me como “Agente de
Jogadores” e passei a representar jogadores. Trabalhava sobretudo com a América
Latina, por influência de amigos Argentinos.
“Em 2010, comecei a elaborar o projeto da
Academia Fidjus di Bideras, apesar de que só conseguimos assegurar as condições
mínimas para arrancar a seis meses.
“A par do projeto de futebol, estou inserido
em mais dois. A partir de meados de 2011, incentivei alguns amigos/empresários
portugueses a investirem na Guiné. Com efeito, conseguimos promover a criação
da AFROSTONE, S.A., que se dedica à exploração de granitos e mármores, um
investimento de cerca de 1 000 000 (um milhão de euros), do qual sou sócio e
administrador (por pouco tempo). Estamos a trabalhar a 40 por cento, mas
perspetivamos arrancar em força após as chuvas. Trouxe igualmente para a Guiné
a BILECTRIC, SARL, uma empresa vocacionada para montagens elétricas, de baixa,
média e alta tensão. Neste momento estamos a instalar-nos.
“Em Setembro deste ano vou-me inscrever na
faculdade para completar os poucos créditos que me faltam para ter a
licenciatura. É que, com o trabalho de empresário de futebol, nunca consegui
conciliar, pois os exames coincidiam com as épocas de transferências e andava
muito stressado. Depois, gostaria muito de fazer o Mestrado num país
anglo-saxónico, ou francófono.
“Namoro há quatro anos com uma estudante de
Arquitetura de nacionalidade argentina/alemã, que vive no Porto, com quem
tenciono casar-me em Dezembro de 2014 (o Senhor Presidente está convidado)!”
Conclusão
E agora…os meus amigos portugueses o que vão
fazer? Os grandes clubes nacionais, Benfica, Sporting, Porto, o Cristiano
Ronaldo, Figo e muitos outros mais, juntos podem muito facilmente juntar
dinheiro, uns dois ou três milhões de euros, e ajudar a construir a Academia
Fidjus di Bideras! Ramos-Horta - Guiné Bissau in “ramoshorta.com”