I
O autor destas linhas não sente
acanhamento por usar uma expressão popular, talvez “batida”, mas de grande
oportunidade: sentimos a “alma lavada” diante do texto do santista Adelto
Gonçalves, tal a leveza com que conduz seus ensaios literários e suas obras de
ficção. Sem que a expressão “leveza” signifique superficialidade.
Já conhecia o autor de textos
acadêmicos, abordando em biografia o poeta Bocage (“o perfil perdido”), o nosso
luminoso Tomás Antônio Gonzaga e o sombrio Pessoa, obras que lhe valeram prêmios
e o reconhecimento da comunidade voltada para a escrita. Nas incursões
ficcionais tive, há alguns anos, a oportunidade de me surpreender com a
emocionante narrativa de Barcelona
Brasileira, não por acaso ambientada no que parece ser o palco predileto de
Adelto: o porto da cidade de Santos.
Naquele romance (que julguei fosse o
primeiro), percebi o “buril” de retratista social, o uso do suspense de forma
muito pessoal, narrando as arriscadas aventuras dos sonhadores anarquistas:
“...(o Anarquismo é) só um código de conduta moral...” nos dirá o “vira-latas”
Marambaia, à espera de uma sociedade ideal, responsável pelo coletivo sem o
encilhamento de mandantes. Em Barcelona
Brasileira já se revelara no autor o domínio da linguagem para obter
tensões necessárias à narrativa.
Surpresa terá o leitor no posfácio do
editor deste Os Vira-latas da Madrugada,
onde é revelado que a primeira versão foi escrita por Adelto (nascido em 1951)
quando tinha 18-19 anos e o romance retomado no final dos anos de 1970 para
ganhar Menção Honrosa no Prêmio Nacional José Lins do Rego. Uma obra, pois, da
juventude do autor e que, sem perder o esperado frescor, revela extraordinária
maturidade, capturando o leitor desde as primeiras linhas.
II
Fica bem claro que Adelto Gonçalves
elegeu o Paquetá – um bairro no porto de Santos; frequentado e povoado pela
“escória” de desencantados – como o cenário sombrio para as histórias que
formam o tecido trágico de seu romance, confessando ter guardado no olhar de
juventude muito dos seus largos lamacentos e escusas ruelas. Os personagens que
neles transitam são esculpidos de tal forma que a um só tempo, tornam-se
incômodos e fascinantes, seus “desenlaces” violentos ou torturantes,
acumpliciam o leitor ou o colocam em cheque com o sentimento de repulsa ou de
ternura diante de seus destinos.
O quase terno encontro de Pingola e
Sula, as esculturas de Pai João de Angola e seu jovem seguidor Louva-Deus, o
atormentado Plínio, a violência da luta entre Grego e o astucioso Batatinha, a
inevitável “traição” de Quirino, personagem que tangencia as tragédias gregas,
magnetizam as páginas do romance. A entrega de Marambaia a uma causa (para ele)
maior, e o estranho ritual de Irene, a streaper, à luz do palco,
trazem ao leitor uma inquietação que mostra ser a escrita de Adelto arquitetada
para ir além do “efeito literário”. Pungente sem ser lacrimosa.
III
O ambiente do porto, do bas
fond, produz inevitável aproximação às sagas do baiano Jorge Amado em
seu Capitães de Areia, Jubiabá e outras epopeias da denúncia
social. No entanto, sem questionar o justo pódio de Amado, Adelto Gonçalves
revela uma saudável descrença nas soluções simplistas de uma “revolução”,
mostrando que a consciência crítica é algo que deve amadurecer dentro de cada
um no processo social. A nosso ver, uma forma menos idealizada e mais “terra a
terra” de um “caminho possível” para os brasileiros. Personagens quase
românticos, dentro do painel manchado pela crueldade, Pingola e Sula – que traz
no ventre uma nova vida – partem para um horizonte que lhes caberá construir.
Uma esperançosa mensagem.
Por fazer incursões no desenho e na
gravura, o resenhista justifica-se: se a aproximação literária com Jorge Amado
é admitida, desde as primeiras linhas os quadros descritos com o pulso firme de
Adelto lembram o clima das xilogravuras de Goeldi. Mas não há vácuo. Com
extraordinária propriedade, as talentosas ilustrações de Ênio Squeff valorizam
as páginas do romance.
No dizer do prefaciador Marcos Faerman
(1943-1999), o jovem dissidente Adelto ao lançar seu romance nos anos de 1970,
não agradaria aos mandantes da ocasião (o que levou à exclusão do prefácio da
edição de 1981, que premiava o autor). Pior para eles que, parece, merecem hoje
um merecido desprezo após a passagem sinistra na vida brasileira.
Os Vira-latas da Madrugada veio para ficar em
importante lugar na literatura nacional.
IV
Adelto Gonçalves, doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP), é autor de inúmeras obras de natureza acadêmica. Também
jornalista, é mestre na área de Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana pela USP e ex-professor titular da Universidade Santa Cecília
(Unisanta), no curso de Jornalismo, e da Universidade Paulista (Unip), no curso
de Direito, ambas em Santos-SP. É também professor de Literaturas Portuguesa,
Brasileira e Africanas de Expressão Portuguesa. Acaba de lançar também Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São
Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015). Hélio Brasil - Brasil
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Helio Brasil, carioca de São Cristóvão,
formado em 1955 pela Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do
Brasil, foi professor nas universidades Santa Úrsula, Federal do Rio de Janeiro
e Federal Fluminense (UFF). Contista e
ficcionista, publicou O Anjo de bronze e
outros contos (Oficina do Livro,1995);); São Cristóvão, memória e esperança (Editora Relume-Dumará, 2004); A última adolescência (Bom Texto, 2004);
e Pentagrama acidental (Editora
Ponteio, 2014),entre outros.
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Os Vira-latas da Madrugada, de Adelto Gonçalves, com prefácio de Marcos Faerman, apresentação de
Ademir Demarchi, posfácio de Maria Angélica Guimarães Lopes e ilustrações e
capa de Enio Squeff. Taubaté-SP: Associação Cultural Letra Selvagem, 216 págs.,
2015, R$ 35,00. E-mail:
letraselvagem@letraselvagem.com.br
Site: www.letraselvagem.com.br
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