I
Fita
azul (São
Paulo, Editora Babel, 2011), primeiro romance do contista e poeta Edmar
Monteiro Filho, um dos finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura de 2012,
surpreende da primeira à última linha pela segurança com que o seu autor
desempenha o seu ofício. Escrito como se saísse da pena de uma mulher,
acontecimento raro na Literatura Brasileira, o romance foi construído a partir
de lembranças da mãe do autor sobre a infância e a adolescência vividas em
Amparo, cidade hoje de 70 mil habitantes, estância hidromineral a 50
quilômetros de Campinas, terra de adoção de Bernardino de Campos (1841-1915),
advogado e fazendeiro de café que foi um dos altos próceres da Primeira
República (1889-1930) e duas vezes presidente do Estado de São Paulo (1892-1896
e 1902-1904).
O romance não está dividido
em capítulos nem partes, mas em blocos que o leitor só consegue identificar
plenamente na última linha, quando a memorialista revela a sua idade à época
dos acontecimentos que narra. Eis um exemplo:
(...) Minha irmã não adoece, paira séria e elegante sobre
esses males menores do mundo. É professora competente, leciona em Pedreira.
Anda de trem, compra os tecidos e encomenda suas roupas para uma costureira de
Serra Negra, para tristeza das habilidades da mãe (...). Nos finais de semana
vejo-a passeando de braços dados com uma ou outra amiga, rindo e conversando ao
redor do jardim ou pelo Largo da Matriz, enquanto saio do catecismo e das rezas
direto para casa. Já não tenho quaisquer dúvidas sobre meu ódio: intenso,
maduro.
Eu tenho quinze anos de
idade. (...)
Mais adiante, lê-se:
(...) E desejei tanto esses filhos, que até o Caçador me
procurou para as obrigações que mal cumpria, movido por um sentimento que
julguei ser ternura, mas que depois descobri ser apenas remorso. E se foi por
um período curto de proximidade, foi o suficiente para que eu descobrisse,
certa manhã de enjoo terrível, que Deus mais uma vez atendera às minhas preces.
Eu tinha vinte e seis
anos.
Sem querer antecipar o final
do livro, seguem as últimas linhas:
(...) Tenho o meu jardim, a cidade toda, o tempo, tudo
guardado num armário cuja chave me pertence. Diante dele, observo o mundo que
envelhece. A mãe repetia: “cuidar da vida que a morte é certa”, como uma sina,
um destino inexorável. Ajoelho-me e rezo, exijo com o mesmo fervor desde que
aprendi a usar minha fé para os devidos propósitos. Não seria justiça adoecer e
morrer agora que está tudo consumado.
Eu tenho cento e trinta
anos.
É isso mesmo: a anti-heroína
de Edmar Monteiro Filho vive até a provecta idade de 130 anos. Fita azul é o esforço desmedido de uma
professora que, ao anotar suas lembranças, procura reconstruir a memória, como
se guardasse suas experiências e sentimentos num armário metafórico, com a
mesma paciência com que alinhava seus livros na estante, revivendo um passado
em que as mulheres não tinham voz e eram obrigadas a aceitar caladas tudo o que
os homens diziam e faziam nem tanto às escondidas.
II
Como se escreveu acima, o romance
tem a bucólica cidade de Amparo como o seu grande cenário: a praça da Matriz, os
casarões da época dos “barões do café”, as casas humildes das décadas de 1920 e
1930, as ruas de paralelepípedos, o Jardim Público, ainda hoje um recanto
inconfundível na paisagem urbana, a praça da velha estação de trem da Mogiana, o
vetusto hospital da Beneficência construído em gótico português e as discretas
e mansas águas do rio Camanducaia. Mas a Amparo do romance é ainda aquela do
final do século XIX, onde nasceu e viveu
a personagem principal até o início de sua vida adulta e para onde ela retorna
depois de uma ausência de mais de 40 anos.
O título do romance vem da
fita azul que marcava as integrantes mais qualificadas da irmandade católica
Filhas de Maria, numa época em que o que o padre dizia no púlpito era o que
valia na cidade. Se não virara uma carola de mão cheia, a memorialista dizia
acreditar que com fé tudo é possível e que Deus sempre estava disposto a ouvir
suas orações e, mais importante, a cumprir os seus rogos.
Mas não imagine o leitor que sentirá
pela memorialista imensa ternura. Trata-se de uma mulher seca, dura e áspera
consigo mesma e com os outros, tantas vezes malvada, que sentia um ódio bíblico
pela irmã mais velha, mas que também era vítima, tal como a imensa maioria das
mulheres de seu tempo. Só que com uma diferença marcante: para escapar da dura
e triste realidade, um casamento mal sucedido, uma paixão não correspondida, a
família esfacelada, ela se refugia em literatura de alta qualidade – Luís de
Camões, Osman Lins, Mario Vargas Llosa, Ernest Hemingway, Julio Cortázar,
Gabriel García Márquez, Herman Hesse, José Lins do Rego, Florbela Espanca,
Ferreira Gullar, Pablo Neruda, Ítalo Svevo, entre outros.
No dizer do poeta, ensaísta e
crítico Ronaldo Cagiano, na apresentação que escreveu para este livro, Fita azul é uma “obra densa e
psicológica, particularizada por uma linguagem elegante e uma atmosfera envolvente”,
que “espelha as ambiguidades, contradições e pesadelos da personagem central e
nos remete aos romances de formação”. Para Cagiano, Edmar Monteiro Filho, “uma
das grandes revelações da literatura brasileira”, vem arejar a ficção
contemporânea com sua voz renovadora. De fato, não é a toda hora que surge um
romancista tão seguro e maduro como este.
III
Edmar Monteiro Filho (1959)
escreve e publica desde 1980. Possui graduação em Ciências Biológicas
Modalidade Médica pela Universidade Federal de São Paulo (1980) e em História
pela Fundação Municipal de Ensino Superior de Bragança Paulista (2007), com
especialização em História Cultural pela mesma instituição de ensino (2010). É
mestre em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de São Paulo
(Unicamp), título obtido com a dissertação “O major esquecido: Histórias de Alexandre, de Graciliano
Ramos” (2013). Atualmente é doutorando em Teoria e História Literária na
Unicamp.
Recebeu os prêmios literários
Guimarães Rosa (1997), promovido pela Rádio França Internacional, com o conto
“Primeiro de janeiro é o dia dos mortos”, e Cruz e Souza de Literatura, com o
livro Aquários (contos, Fundação
Catarinense de Cultura, 2000). Publicou ainda Este lado para cima (poesia, edição de autor, 1993), Halma húmida (poesia, edição do autor,
1997), Às vésperas do incêndio
(contos, edição do autor, 2000), com o qual conquistou o Prêmio Cidade de Belo
Horizonte, Que fim levou Rick Jones?
(contos, 2010) e a novela Azande (edição
de autor, 2004).
Nascido na cidade de São
Paulo, mora em Amparo, desde a infância, mas, como funcionário do Banco do
Brasil, viajou por quase todo o País recolhendo os relatos que depois
utilizaria em seus contos. Foi em jornais de Amparo que começou a publicar seus
textos, em 1981, ano em que ganhou seu primeiro prêmio literário com o conto
“Maré vermelha”, na cidade de Araguari-MG. Desde 1997, ministra oficinas
literárias de contos em várias cidades. Assina uma coluna em que faz resenhas
de livros no jornal semanário A Tribuna,
de Amparo. Adelto Gonçalves - Brasil
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Fita azul, de Edmar
Monteiro Filho, com apresentação de Ronaldo Cagiano. São Paulo-SP: Editora
Babel, 171 págs., 2011.
E-mail:
edmont@uol.com.br
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Adelto Gonçalves é doutor
em Literatura
Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de
Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona
brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil,
2002), Bocage – o perfil perdido
(Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio
Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2012), e Direito e Justiça em
Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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