Construir
a imagem de um cristo rei à entrada do bairro português em Malaca gerou um
confronto com as autoridades malaias que por pouco não culminou na sua
demolição. Há agora um plano para erguer uma imagem da virgem maria, mas Luísa
Timóteo, da Associação Coração em Malaca, diz que isso não chega para manter a
identidade portuguesa de uma pequena comunidade que vive pobre e com
limitações. Pede-se uma escola e a visita de Marcelo Rebelo de Sousa
O mar que outrora pôs o comer
na mesa a várias famílias descendentes de portugueses já não é o mesmo. No seu
lugar nasceu um imenso lodo que tirou o sustento aos vários pescadores que dali
tiravam o seu ganha-pão diário. Em 2015, uma centena de pescadores que residem
no bairro português de Malaca, na Malásia, protestaram erguendo caixões e
enviaram um abaixo-assinado a Portugal a pedir embarcações e apoio técnico para
voltarem a erguer a actividade.
Luísa Timóteo, presidente da
organização não governamental (ONG) Associação Coração em Malaca, com presença
em Portugal e Malaca, foi a portadora dessa missiva destinada às autoridades,
mas nada aconteceu. Desde então, a situação mantém-se.
“Os pescadores estão uma
desgraça, estão a pedir gente para lá, porque não têm embarcações para pescar e
fazem-no manualmente”, contou Luísa Timóteo ao HM. “Entram pelo mar adentro até
terem pé, e o mar está poluído, pelo que já não há peixe até onde eles podem
chegar. [Em Portugal] temos o mar por nossa conta e temos tanta história, com capacidade
para mandar embarcações para lá, e não fazemos nada.”
Ao largo do cais do Kampung
Portugis – a designação do bairro português de Malaca, conquistada por Afonso
de Albuquerque em 1511 – quase não se vê vivalma, muito menos pescadores ou
barcos em movimento.
Bunny Rodrigues é um dos
pescadores que por ali vagueia na sua moto, e quando dá pela nossa presença faz
uma paragem para conversar e fumar um cigarro. De chinelo no pé e ar
descontraído, nem parece que vai começar a trabalhar daí a minutos: além de
pescador, também faz umas horas extra num dos poucos restaurantes portugueses
que existem no bairro. Orgulha-se do ordenado que tem: três mil ringitts, ou
seja, cerca de 5.800 patacas, num país onde o salário médio mensal ronda os 800
dólares americanos.
Casado com uma chinesa, Bunny
Rodrigues aprendeu português com os pais e tem três filhos que, graças a si,
falam todos a língua. Contudo, como nunca aprendeu português na escola,
depressa o nosso diálogo passa a ser feito em inglês. Nunca comeu bacalhau mas
sabe que é bastante salgado e de difícil preparação.
“Perguntei ao meu pai e ele
disse-me que ainda temos familiares em Portugal, mas nunca os conheci”, contou
Bunny Rodrigues, que nunca foi a Portugal e assume não ter dinheiro para fazer
uma viagem a uma pátria que considera como sua.
Tal como Bunny Rodrigues, no
Kampung Portugis encontram-se pessoas que mostram com orgulho o seu cartão de
identificação com apelidos portugueses como De Mello, Silva, Rodrigues ou
Albuquerque. Luísa Timóteo, cujo amor por Malaca a fez criar a ONG, fala de uma
comunidade que se tem mantido ao longo de gerações praticamente sem apoios
institucionais e com dificuldades económicas.
“Os jovens estão sem trabalho
e não têm hipóteses de estudar, ficam com o curso elementar e às vezes nem
isso. Esse é o grande problema, porque havia universidades [portuguesas] que
abriam as portas para eles estudarem, mas têm de ter o ensino superior para
depois se graduarem em Portugal”, defendeu Luísa.
Além disso, “a escolaridade
nem sequer é obrigatória e há crianças que nem sequer vão à escola, e isso é
muito triste, porque Portugal sabe disso e não age”.
A presidente da ONG e grande
dinamizadora da manutenção da identidade dos portugueses de Malaca destaca
também um centro da AMI, fundado em 2016 e que hoje dá apoio a cerca de mil
moradores do bairro.
“Demos algumas cadeiras de
rodas e bengalas, porque os mais velhos para andar até se agarram a cadeiras de
plástico, e eu não posso ver isso”, contou Luísa Timóteo.
“Há pessoas que estão acamadas
no chão. Criamos este centro da AMI para que haja uma reserva de material
hospitalar que possa ser devolvido quando já não é utilizado. Não posso ver
gente a ser tratada no chão, porque não têm cama ou porque correm o risco de
cair da cama que têm em casa”, apontou.
À entrada do bairro notam-se
algumas moradias e carros estacionados, mas, de acordo com a presidente da ONG,
pertencem a “pessoas que estiveram a trabalhar fora, muitos deles na América, e
que se vão destacando”.
“[As pessoas] estão ali
estagnadas e a maioria da comunidade é muito pobre. Os jovens e crianças andam
lá famintos, comem mal. Os velhos têm dificuldades de mobilidade.”
As autoridades malaias já
começaram, entretanto, a desenvolver parcerias com este centro, onde são feitos
workshops e rastreios contra o cancro da mama e a diabetes, uma das patologias
mais comuns no país. “É uma achega muito grande, mas não chega”, lamenta Luísa
Timóteo.
Falta
quase tudo
As carências de que fala Luísa
Timóteo notam-se nos primeiros olhares de quem chega ao bairro. Além do cais
abandonado, encontram-se vestígios do velho Hotel Lisboa, que está vazio, e
pouco movimento se nota por ali, à excepção de alguns moradores que deambulam
de um lado para o outro, sem nada com que ocupar o tempo. Quem lá mora terá
pedido à Associação Coração de Malaca para atrair um investidor português para
o edifício do antigo hotel, mas Luísa Timóteo ainda nada conseguiu.
“O espaço foi alugado a uma
pessoa que criou uns cursos universitários na área do turismo, mas há períodos
em que fecha porque não há alunos.” Na cabeça da presidente da ONG germinam,
contudo, outras ideias.
“Uma das nossas expectativas é
que aquele edifício tão grande e tão bonito fosse aproveitado para todas as
outras coisas que eles querem fazer, como a abertura de lojas, onde se poderiam
ter produtos portugueses e onde pudesse também funcionar a escola portuguesa.”
Luísa Timóteo assegura que “os
projectos estão sempre alinhavados mas não se concretizam, porque Portugal tem
de se chegar à frente nas relações diplomáticas com a Malásia, porque eles
[comunidade] também não podem fazer o que querem. Eles são um bairro, no fundo,
uma aldeia, e como aldeia têm de obedecer às leis do país onde estão inseridos.
A Malásia tem tido muita paciência em não ter já acabado com aquilo.”
Outro dos projectos que Luísa
Timóteo gostaria de ver concretizado é a expansão do museu localizado no bairro
português. “Queremos pedir apoios, pois achamos que não pode morrer de maneira
nenhuma. Aquilo foi criado por eles, mas ninguém ali investiu nada, Malaca,
Malásia ou Portugal. É necessário mais espaço, porque eles têm imensas coisas
mas não está nada identificado.”
Esse trabalho será feito por
um bolseiro abrangido por uma cooperação já estabelecida com o Instituto Camões
(IC). “O museu tem de ser aumentado e requalificado, e pensa-se que isso possa
ser feito fora da praça, mais próximo do edifício do Hotel Lisboa.”
Depois da presença de um jovem
de Malaca em Lisboa, onde fez um projecto na Biblioteca Nacional, a Fundação
Gulbenkian tomou conhecimento das necessidades da comunidade e decidiu oferecer
uma biblioteca. Mas nem o seu transporte foi tarefa fácil. “Ninguém sabia como
mandar aquilo, porque não se arranjava dinheiro, mas depois a fundação lá
conseguiu enviar a biblioteca.”
“O IC está sensibilizado, a
Fundação Oriente está sensibilizada. Eu não lhes digo que Portugal não está com
eles, pois há muitas associações sensibilizadas, mas não chega”, salienta Luísa
Timóteo.
A comunidade também deseja
criar a sua própria corporação de bombeiros, mas, mais uma vez, faltam os meios
humanos. “Temos de mandar alguém para lá para os ensinar, como aconteceu em
Timor. Isto porque não é a Malásia que os vai ensinar a serem bombeiros. Nem
era necessário muito dinheiro, porque eles querem é profissionais que os
ensinem como se faz, para a comunidade se desenvolver.”
Pelo bairro não falta quem
peça uma escola portuguesa. Luísa Timóteo diz que já entrou em conversações com
o ministro português da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, mas que, até ao
momento, apenas a questionaram quanto à existência de currículos portugueses.
Ainda na área da educação, a
comunidade portuguesa de Malaca conta, desde Julho do ano passado, com um
manual elaborado pelo académico Sílvio Moreira, actualmente a dar aulas na
Universidade de Ciências e Tecnologia de Macau. Este não é um mero livro de
português como língua estrangeira, como o próprio contou ao HM. “Trata-se de um
livro que pretende mostrar, em parte, a língua crioula de Malaca. Existe uma
versão em crioulo, inglês e português europeu.”
O livro é ensinado aos mais
novos de forma informal e em actividades promovidas pela Coração de Malaca e
também nas aulas de Sara Santa Maria, “uma activista cultural que dá aulas a
crianças de forma nada oficial”, apontou Sílvio Moreira.
Estátuas
da discórdia
Desde o ano passado que o
Kampung Portugis passou a ter uma imagem de marca: na pequena praça ergue-se
uma enorme figura de um cristo rei que esteve envolvido em polémica. Bunny
Rodrigues recorda-se bem: todos o construíram de forma voluntária e todos contribuíram
com donativos, pois nada se fez às custas do Estado malaio. Nos dias de
trabalho, várias famílias ofereceram comida caseira. Para este ano deverá ser
erguida uma segunda estátua com a imagem da virgem maria, e até uma pequena
fonte. Tudo para mostrar aquilo que são: católicos romanos.
“Se falar comigo sobre as
figuras da igreja eu conheço-as a todas, porque é obrigatório saber tudo”,
responde-nos em inglês. O que mais o deixa feliz é ver chegar portugueses de
Portugal. “Não esperamos pessoas de outras religiões, mas sim que venham mais
portugueses conhecer isto.”
Fora do bairro português, é
fácil encontrar mais pessoas que descendem dos primeiros portugueses que por
ali apareceram. Valérie Jéssica Pereira conduz um dos muitos tuk tuk
barulhentos que povoam o centro de Malaca. Não vive no bairro português e os
pais moram noutra povoação, também ela com portugueses de Malaca. Por ali
existem várias povoações com descendentes de portugueses, apesar do Kampung
Portugis continuar a ser o sítio mais tradicional, assegura Valérie.
“Nasci em Malaca, mas não falo
o seu português, falo o meu português, da minha geração”, começa por explicar
Valérie, que garante que a comunidade portuguesa ainda é aceite pelas
autoridades.
“Penso que o nosso país é
harmonioso, é uma só Malásia. Não há lutas, aceitamo-nos uns aos outros”,
garante.
Apesar desta harmonia, a
construção da estátua gerou um conflito com as autoridades, que queria demolir
o projecto. Luísa Timóteo recorda que o problema só se resolveu porque um morador
do bairro português era membro do parlamento local.
Apesar de Bunny Rodrigues
estar confiante quanto à aprovação dos futuros projectos, que poderão ser
erguidos ainda este ano, Luísa Timóteo teme que não seja bem assim.
“Eles podem fazê-lo à revelia,
porque com uma licença não acredito que consigam. Trata-se de uma afirmação de
pessoas que já têm dinheiro e outros horizontes, pois vivem no bairro mas já
estiveram fora, a trabalhar noutros países. Aprenderam outras coisas. Isto
porque a comunidade em si não arrisca nada, está quieta e serena nas suas
casas.”
Valérie Jéssica Pereira
defende que é possível que o projecto tenha seguimento. “Nos outros bairros
portugueses não existem estes planos [de construir figuras religiosas]. Havia a
ideia para a demolição da estátua, mas depois da mudança do Governo a estátua
acabou por ficar, e agora há mais um projecto para construir outra. Todas as
pessoas gostam de lá ir, especialmente os portugueses de Portugal, gostam de
ver a estátua e visitar.”
“Penso que a estátua não
afecta ninguém e é muito bonita. Quando chegamos ao bairro português pensamos
na frase ‘Jesus dá-lhe as boas vindas’, então para mim é bonito. O anterior
Governo queria demolir a estátua por razões políticas, mas para mim a estátua
não é perigosa”, acrescentou.
UNESCO
e Marcelo
Luísa Timóteo realça esta
vontade da comunidade de querer manter uma entidade própria, mas recorda que
seria muito mais importante dar seguimento ao projecto da UNESCO de fazer o
levantamento do património português que resta em Malaca. Chegaram a
realizar-se algumas reuniões sem que Portugal se tenha feito representar. O HM
tentou chegar à fala com Joseph Santa Maria, um dos moradores do bairro que
esteve ligado a este processo, mas até ao fecho desta reportagem não foi possível
estabelecer contacto.
“Os colégios foram destruídos
e agora estão em ruínas. Esse património que a UNESCO quer que seja levantado é
aquilo para o qual eu gostaria que tivessem sensibilidade. Era muito mais
importante reconstruir todas as igrejas”, apontou Luísa.
A responsável máxima pela
Coração de Malaca sente-se quase sozinha nesta luta pela preservação da
presença portuguesa neste pedaço da Malásia. Sempre defendeu a visita de
governantes portugueses e pede que o actual Presidente da República Portuguesa,
Marcelo Rebelo de Sousa, faça uma visita a Malaca para perceber o espírito dos
que lá vivem.
Luísa Timóteo não está
optimista e teme que o tempo apague o que os descendentes de Afonso de
Albuquerque foram deixando ao longo dos anos.
“Ainda se mantém a identidade,
mas não sei se isso irá acontecer por muito mais tempo, porque eles já estão
misturados com outras nacionalidades que existem ali ao lado, como filipinos ou
chineses. Acho que quando morrer isto vai acabar, porque sou sempre eu que ando
nesta liderança.”
Quem é do bairro “tem um amor
a Portugal que é uma coisa louca”. “Querem construir estátuas, mas não é por
aí. Têm é de ser educados e de se desenvolver noutras áreas, como o turismo,
por exemplo.”
Mais uma vez, Portugal deveria
desempenhar o seu papel. “Temos cá muita gente para os ajudar a formar. Eles
querem renovar o folclore mas depois cantam sempre o ‘Malhão, Malhão’, não
passam disso, quando temos tanto folclore e não mandamos para lá ninguém.
Alguém de peso do Governo português deve ir lá e conversar com o Governo de
Malaca, porque Malaca está disposta a negociar, e isso era muito bom para nós.
A nível de emprego não faltam
lá oportunidades para os portugueses, e as portas não se abrem”, remata Luísa
Timóteo. Andreia S. Silva – Macau in “Hoje
Macau”
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