I
Terceiro
romance de Nicodemos Sena (1958), A Mulher,
o Homem e o Cão (Taubaté-SP, Editora LetraSelvagem, 2009) não só confirma o
talento do seu autor como, ao lado de seus livros anteriores, é, desde a sua
publicação, obra de referência para o estudo temático da vida das populações
marginalizadas da Amazônia (indígenas e caboclos) na Literatura Brasileira. Por
seu estilo ímpar, o autor já foi comparado a grandes ficcionistas brasileiros,
como Graciliano Ramos (1892-1953), Mário de Andrade (1893-1945), Érico
Veríssimo (1905-1975), Guimarães Rosa (1908-1967) e João Ubaldo Ribeiro
(1941-2014), e a importantes ficcionistas latino-americanos, como o paraguaio
Augusto Roa Bastos (1917-2005) e o peruano José María Arguedas (1911-1969).
A
exemplo do que fez Guimarães Rosa em Grande
Sertão: Veredas, com a figura de Riobaldo, o personagem-narrador de A Mulher, o Homem e o Cão fala diante de
um suposto ouvinte sobre as suas vivências no meio da floresta amazônica,
discorrendo histórias fantásticas, com ele ocorridas e com sua família, que
estão perpassadas por mitos regionais e bíblicos. Em outros momentos, o narrador-personagem,
cujo nome não se conhece, reproduz para o seu suposto ouvinte o que a esposa
lhe contara sobre um diálogo que tivera com um homem desconhecido, que seria o
“coisa ruim”, uma criatura fantástica e camaleônica que acaba por gerar os
conflitos quer perpassam o romance.
Na
verdade, como diz o protagonista-narrador logo no início da narrativa, ele, a
mulher e seu menino (que, como as crianças-personagens de Graciliano Ramos em Vidas Secas, não tem nome) – e também o cão que apareceu depois – viveram
uma vida feliz em meio aos mistérios da selva, até que algo de estranho
aconteceu, ou seja, o aparecimento de uma criatura diabólica, de voz doce e
melodiosa, que teria atraído para a água do rio a sua esposa com propostas
soezes.
II
Para
a professora Christina Ramalho, doutora em Semiologia pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ), autora do prefácio, A Mulher, o Homem e o Cão constitui um caleidoscópio, “cujas
imagens brotam da associação constante e mutável de pequenos triângulos
simbólicos que encerram em si significados próprios logo transgredidos e
transformados por outros, trazidos pelo movimento contínuo do brinquedo”.
Já
a professora Dirce Lorimier Fernandes, doutora em História Social pela
Universidade de São Paulo (USP), no posfácio que escreveu para este livro,
observa que “o fantástico e o inverossímil circulam na obra toda, ora na
produção de diálogos simples, ora em conjecturas profundas, ora em diálogos
mais filosófico-religiosos”. E lembra que “a erudição da obra não tem fim”.
De
fato, o romance está impregnado por textos sagrados. Por exemplo: a mulher,
personagem que tem relações amorosas com o “coisa ruim”, sente-se como Eva
expulsa do paraíso, nua, depois de ter sido enganada por Satanás disfarçado de
serpente, tal como se lê no primeiro
livro de Moisés chamado Gênesis
da Bíblia Sagrada.
Já
o homem, como observa o crítico Oscar D´Ambrosio, autor da apresentação que
consta das “orelhas” do livro, é o elemento que interage com a mulher e com o
mundo de maneira complementar. “Se há entre eles a paixão, também permeia essa
relação uma certa rivalidade e competitividade”, diz, acrescentando que o cão
evoca diversas ambiguidades, pois, muitas vezes, relacionado ao diabo, por
outro lado, também é visto como o melhor amigo do homem.
Em
nota aposta ao final do livro, o autor recorda que, para escrever este romance,
conheceu as lições da alquimia, sondou livros de caça às bruxas e de bruxarias
e perquiriu os símbolos da mitologia. “Nem por isso me atribuo a condição de
guru – de embusteiros já anda cheio o mundo”, diz. E acrescenta: “Ao descrever
a maneira soez com que o diabo tentou a mulher, não tive o propósito de
agravar-lhe o estigma ou escandalizar o leitor cristão. Pretendi fazer uma obra
de ficção que envolvesse a imaginação numa experiência de suspensão e
descrença, pois me interessa tanto a onipotência de Deus quanto a fragilidade
do humano”.
III
Nicodemos
Sena, nascido em Santarém do Pará, viveu em seu Estado natal até 1977. Em 1978,
passou a residir em São Paulo, onde bacharelou-se em Jornalismo pela Pontifícia
Universidade Católica (PUC) e, mais tarde, em Direito pela Universidade de São Paulo
(USP). No início de 2000, recebeu convite para dirigir a redação do jornal A Província do Pará e a principal
editora de Belém, a Cejup, trabalhando na capital paraense até o fim do ano,
quando retornou a São José dos Campos-SP.
Insatisfeito
com os primeiros contos que escreveu, dedicou-se a um projeto mais amplo, um
romance que resultou na magnífica saga amazônica A Espera do Nunca Mais, de 870 páginas, editado pela Cejup, em 1999,
seu livro de estreia. O livro, com suas lendas e mitos, mistério e sortilégio,
matas e rios, igarapés e igapós, rendeu ao seu autor em 2000 o Prêmio Lima
Barreto/Brasil 500 anos, da União Brasileira de Escritores (UBE), seção do Rio
de Janeiro.
Em
2003, saiu à luz o seu segundo romance, A
Noite é dos Pássaros, igualmente recebido com entusiasmo pela crítica, publicado
em forma de folhetim, em dezoito episódios semanais, de 3 de abril a 31 de
julho, no jornal O Estado do Tapajós,
de Santarém, e na revista eletrônica portuguesa TriploV. Ainda em 2003, A Noite
é dos Pássaros foi publicado em formato livro (Editora Cejup, 136 pág.).
No
mesmo ano, fragmentos de A Noite é dos Pássaros
foram publicados na revista Palavra em
Mutação (n º 2) e no site Storm Magazine,
ambos de Portugal. Ainda naquele
ano, A noite é dos pássaros conquistou
o prêmio Lúcio Cardoso, da Academia Mineira de Letra,s e, em 2004, recebeu menção
honrosa no prêmio José Lins do Rego, da UBE, seção do Rio de Janeiro. Nicodemos
Sena é nome reconhecido fora da Amazônia, tornando-se verbete na Enciclopédia de Literatura Brasileira,
direção de Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa (edição conjunta da Global
Editora, Fundação Biblioteca Nacional e Academia Brasileira de Letras, 2ª
edição, 2001).
Em
2007, Sena criou a editora a LetraSelvagem, que tem como objetivo incentivar o
gosto pela leitura e promover a linguagem literária, além de desenvolver
atividades que estimulem a tomada de consciência pelas populações, povos e etnias
submetidos a qualquer tipo de dominação. É ainda meta da editora defender a
produção literária, especialmente a brasileira e latino-americana, em face dos
problemas decorrentes da economia “globalizada” e dos interesses do capitalismo
predatório, além de apoiar, produzir e incentivar gestões direcionadas ao
resgate cultural das populações, povos e etnias marginalizados, visando à
democratização do acesso aos bens culturais.
Em
2017, Sena publicou pela editora LetraSelvagem Choro por Ti, Belterra!, obra
escrita em prosa poética e formada por 19 episódios, em que reconstitui o dia
em que fez viagem de retorno às origens, em companhia de seu pai, depois de um
percurso de algumas horas pela rodovia Santarém-Cuiabá, até entrar numa
estradinha de terra que leva à Estrada Um e, enfim, às ruínas da cidadezinha de
Belterra.
Na
década de 1940, a cidade fora dirigida pela Ford Motor Company, empresa do
magnata norte-americano Henry Ford (1863-1947), que, em plena Segunda Guerra
Mundial (1939-1945), tentaria fazer da extração da borracha uma atividade
lucrativa, fornecendo os pneumáticos necessários para movimentar os veículos
militares. Adelto Gonçalves - Brasil
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A Mulher, o Homem e o Cão, de Nicodemos
Sena, romance, com apresentação de Oscar D´Ambrosio, prefácio de Christina Ramalho e posfácio de
Dirce Lorimier Fernandes. Taubaté-SP: Editora Letra Selvagem, 152 páginas, R$
30,00, 2009.
E-mail: letraselvagem@letraselvagem.com.br
Site:www.letraselvagem.com.br
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Adelto Gonçalves
é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São
Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito
e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2015) e Os Vira-latas
da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981;
Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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