Se já foi definido pelo poeta e professor Affonso Romano de
Sant´Anna, doutor em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais, como o
mais português dos poetas brasileiros, Álvaro Alves de Faria (1942) também pode
ser considerado um dos romancistas mais criativos da geração de 1940 na
Literatura Brasileira. Prova disso é o romance O Tribunal (Taubaté-SP:
Editora LetraSelvagem, 2015), escrito e publicado em 1971 à época do regime
militar (1964-1985) e que constitui “um testemunho fidedigno da resistência da
cidadania contra um regime ditatorial e a demonstração surpreendente da
capacidade humana de superação diante das mais angustiantes situações”, na
definição do editor e escritor Nicodemos Sena, autor do texto de apresentação
deste livro.
Texto
que foge à classificação de novela ou romance, O Tribunal, primeira
incursão do poeta na ficção, é uma prosa poética em tom de confissão – não
fosse seu autor extremamente lírico – que surpreende ainda hoje o leitor, ao
mostrar “uma personagem que avança pelos meandros de uma selva escura, através
das barbáries e miséria, lutando pela consolação desse sentimento positivo”,
como escreveu o crítico Geraldo Galvão Ferraz (1941-2013) no prefácio preparado
para a segunda edição desta obra publicada em 1976.
Como
o bancário Josef K., de O Processo, de Franz Kafka (1883-1924), a
personagem de Faria se vê diante de uma acusação absurda, que foge à luz da
razão, ou seja, a de ter atropelado um tanque, o que lhe rende uma condenação à
pena máxima. E, como a personagem de Kafka, sente-se como um inseto diante da
brutalidade e insensibilidade de “um tribunal criado apenas para condenar”.
Como
a obra kafkiana, o livro é igualmente uma crítica direta ao sistema judiciário
brasileiro à época do Estado autoritário, cujos malefícios sobreviveram em
grande parte depois da restauração do regime democrático e que, em muitos
aspectos, ainda estão presentes na sociedade brasileira. Por isso mesmo, o
livro da Faria continua atualíssimo. Até porque, como escreveu Ferraz, “O
Tribunal parece ter surgido como um lancinante grito de dor ante os
males do mundo e como uma amarga denúncia das diversas opressões que atormentam
o homem de hoje”.
Em
outras palavras: é um exemplo perfeito de sistemas judiciários iníquos, como o
da história de Josef K., que não respeitam as leis e operam acima delas, de
acordo com a vontade e os interesses de juízes pouco confiáveis.
Numa época como a nossa em que alguns desavisados saem a público
para defender impunemente aquela época de arbítrio, nada mais oportuno que a
reedição deste livro, um pungente relato que põe diante do leitor um homem que,
embora oprimido e estilhaçado por dentro de si mesmo em razão da tortura, olha
“profundamente” nos olhos sanguíneos dos torturadores e, “num instante de
absurda lucidez, se lança contra as grades e arrebenta os ferros que se enfiam
em seu corpo”, como observa Sena no texto das “orelhas” do livro.
Ou
ainda como observa o crítico e escritor Adelto Gonçalves, doutor em Letras na
área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), na resenha
que escreveu para este livro em 2015: “(...) como um Fiódor Dostoievski
(1821-1881) brasileiro, Álvaro Alves de Faria fez um relato surreal, absurdo,
de confusão entre o real e a ficção, de danação absoluta e submissão ao
imaginário, construindo um mundo de sinais trocados, em que o mal está sempre
acima do bem, uma descida passo a passo ao inferno”.
Diz
mais Gonçalves, citando trecho do livro de Faria: “Como o K. kafkiano, esse
personagem sem nome avança tateando por um labirinto, em meio à barbárie e
miséria humanas: “Por que o senhor atropelou o nosso tanque? O oficial
me perguntou e eu o mandei para a puta que o pariu, ele e todos que inventaram
aquela guerra filha de uma grande puta, eu não tenho nada com isto, eu não
atropelei ninguém, tem sentido eu atropelar um tanque?”
É de
se lembrar ainda que este romance é de uma fase em que o poeta era um ativista
da liberdade, período que começou em 1965, um ano depois que os militares
haviam usurpado o poder, quando ele passou a fazer recitais nas ruas e praças
de São Paulo e lançou o livro O Sermão do Viaduto, um comício
poético em homenagem ao Viaduto do Chá, marco da cidade localizado na zona
central. Com um microfone e quatro alto-falantes, fez nove recitais no local,
desafiando a ordem mantida pelas forças militares.
Em
1966, os recitais foram proibidos e naquele ano, contrariado com a arbitrariedade,
Faria escreveu O Tribunal, resultado de sua experiência pessoal,
pois já havia sido detido cinco vezes pelos esbirros do Departamento de Ordem
Pública e Social, o famigerado Dops, que o acusou de subversivo. Voltaria a ser
preso ainda em 1969, acusado de desenhar cartazes para o Partido Socialista
Brasileira (PSB), então na clandestinidade.
Nascido em São Paulo, filho de pais portugueses (a mãe é de
Famalicão e o pai de Lobito, Angola), Faria publicou mais de 50 livros,
incluindo poesia, novelas, romances, ensaios, livros de entrevistas com
escritores e peças teatrais, entre elas Salve-se quem puder que o
jardim está pegando fogo, que foi proibida 15 dias antes da sua estreia e
ficou censurada por seis anos pelo regime militar, depois de receber o Prêmio
Anchieta de Teatro, um dos mais importantes na década de 1970.
Há
17 anos dedica-se à poesia em Portugal, onde já publicou 13 livros – 12 de
poesia e uma novela –, trabalho que já se estendeu a Espanha, onde publicou
seis livros, inclusive uma antologia com mais de 350 páginas, com tradução do
poeta peruano-espanhol Alfredo Pérez Alencart. Como observa o editor na
apresentação, Faria diz que “fugiu” para Portugal por não suportar mais os
rumos medíocres da poesia brasileira “amparados por um jornalismo cultural de
caráter duvidoso” que, aliás, só costuma dar espaço para autores publicados por
grandes editoras, de preferência de origem anglo-saxônica.
Também
jornalista, Faria sempre se dedicou à divulgação de trabalhos da área cultural,
tendo produzido crítica literária para jornais e revistas, além de comandar
programas de rádio e televisão. Por seu trabalho em favor da divulgação
cultural, recebeu o Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro em 1976 e 1983
e o Prêmio Especial da Associação Paulista de Críticos de Arte em 1981, 1988 e
1989. J. J. Pereira Coelho - Brasil
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O Tribunal, de Álvaro
Alves de Faria, romance, com apresentação de Nicodemos Sena, editor.
Taubaté-SP: Editora Letra Selvagem, 88 páginas, R$ 20,00, 2015.
E-mail:letraselvagem@letraselvagem. com.br
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J. J. Pereira Coelho é crítico
literário e divulgador cultural.
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