O investigador Miguel
Rodrigues Lourenço dedicou anos a juntar peças de um ‘puzzle’ que, porventura,
nunca ficará completo. Da pesquisa aturada, vertida em livro, saiu, porém, um
novo contributo para a História: a Inquisição actuou em Macau via Goa.
“A Articulação da Periferia:
Macau e a Inquisição de Goa (c. 1582- c. 1650)”, obra recentemente distinguida
pela Academia Portuguesa da História (na categoria de História da Presença de
Portugal no Mundo), debruça-se sobre a “não questão” aos olhos da historiografia
da actuação do Santo Ofício em Macau, dado como “um espaço de impermeabilidade”
e “um porto seguro” para cristãos-novos.
O trabalho do investigador do
Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa vem preencher um vazio
sobre a actuação do Santo Ofício no antigo enclave português, acabando por
contestar, em certa medida, com recurso a documentação nova, a tese instalada,
demonstrando como se estenderam a Macau, através de Goa, os tentáculos da
Inquisição.
“A experiência do Santo Ofício
em Macau era uma não-questão para a historiografia, um pouco influenciada por
autores como Charles Boxer, sendo a percepção geral a de que Macau teria
permanecido amplamente à margem daquilo que se chama actividade inquisitorial,
que seria de certa forma imune”, pelo que “o contributo mais interessante é o
de que as coisas talvez não devam ser olhadas assim”, explica à agência Lusa.
Isto porque, apesar de “ser,
em grande medida, um espaço de refúgio para os cristãos-novos, a verdade é que
há casos de processados – embora sem a mesma expressão numérica de Goa ou
Cochim, por exemplo – e, quando analisamos a documentação, verificamos que
sempre que a inquisição de Goa emitiu uma ordem ela foi executada em Macau”.
O investigador observa, porém,
que “a Inquisição é um vínculo que se pode dizer familiar nos séculos XVI e
XVII, no contexto da Coroa e seus domínios, pelo que o facto de Macau ter tido
uma experiência com o Santo Ofício não é uma coisa assim aberrante”.
“Se era um paraíso para
cristãos-novos, não era porque a Inquisição não era capaz de intervir, mas por
outros factores que terão muito que ver com a sua importância no contexto
mercantil do Estado da Índia”, sustenta, explicando que tal fez, por exemplo,
com que “não fosse conveniente” lançar uma visitação – momento em que o
inquisidor sai da sua sede de distrito para qualquer território sob sua
jurisdição para fazer averiguações no terreno.
“Isso não acontece em Macau
apesar de ordenado desde Lisboa em grande medida por haver um bloqueio do
governador do Estado da Índia para que não vá avante”, diz, salientando que
tratar-se-á do “aspecto que mais mostra que, no contexto do Estado da Índia,
houve limites à presença da Inquisição em Macau”, mas que esses limites não a
invalidaram.
“Macau teve durante todo o
período de vigência da inquisição de Goa e, sobretudo a partir da morte de D.
Leonardo de Sá [bispo da China], uma experiência regular – atrevo-me a dizer
normalizada – apesar das tensões da primeira metade do século XVII” entre as
ordens religiosas no seio das quais eram nomeados os comissários do Santo
Ofício, sublinha.
Em causa, os “três cismas de
Macau” ou “três violentas controvérsias de precedências jurisdicionais que
chegaram ao extremo de levar, por exemplo, a que, em 1642, o capitão-geral de
Macau, que apoiava a facção da Companhia de Jesus, tivesse apontado ao Convento
de Santo Agostinho os canhões do Forte de S. Paulo”.
O Santo Ofício tinha uma série
de tribunais, com o de Goa a figurar como o único com sede fora do Reino, com a
sua área de jurisdição, sobre território descontínuo, a abarcar Macau que, “a
partir de certa altura, passa a ter comissários residentes e a funcionar em
permanência”, contextualiza.
Leonardo de Sá constitui uma
“excepção no contexto da inquisição de Goa”, dado que “chega ao Estado da Índia
com uma comissão inquisitorial passada diretamente pelo inquisidor geral para
ser exercida apenas sobre aqueles que se tinham convertido recentemente à fé
católica”, “causando desconforto entre os inquisidores de Goa”.
“Há queixas de que abusa da
sua comissão e que se atreve a julgar aqueles que estavam fora da sua comissão,
os portugueses, cuja jurisdição pertenceria então à inquisição de Goa”, pelo
que, quando morre, esta “passa a enviar comissões para serem executadas em
Macau”, isto dentro do que se pode saber pois o arquivo da inquisição de Goa
foi destruído no século XIX.
Também é por essa razão que,
“durante muito tempo, a inquisição de Goa foi o parente pobre dos estudos
inquisitoriais em Portugal porque há uma tradição de se estudar a partir dos
processos”, explica, dando conta de que, no caso de Macau, só dispõe de um
único completo.
Soma-se a isso “um repertório
das causas seguidas pelo tribunal de Goa até 1623 e listas de autos de fé, que
não estão completas, mas que dão acesso a algumas informações relativas a
Macau”. “De resto, fui encontrar em correspondência menções a casos, mas a
informação em termos das vítimas, dos processados, é muito fragmentária e há
coisas que de facto nunca saberemos”, reconhece. In
“Ponto Final” - Macau
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