Muito se discute sobre o
papel dominante do Estado na política brasileira. Descuida-se, porém, de
lembrar que esse é um componente estrutural que nos acompanha, sem ruptura ou
superação, desde a descoberta por Portugal em 1500. No Brasil, o Estado sempre
foi mais forte que a Sociedade. O Brasil que Portugal descobriu tem sido
descrito a partir do arquétipo do Éden, o paraíso bíblico. O modelo edênico faz
sentido. Uma terra virgem, de clima ameno, generosa na sua vegetação e nas
águas, abundante em pássaros coloridos e desconhecidos, habitada por selvagens
nus, de aparência agradável, em total comunhão com a natureza, pacíficos e
curiosos, não poderia deixar de causar esta impressão nos europeus.
Tudo era tão diferente deles e das terras de
onde provinham. Não porque os portugueses de 1500 desconhecessem outros povos.
Há séculos combatiam os mouros nas cruzadas e na península ibérica; em 1415
invadiram Ceuta na ponta norte do Marrocos e ainda estava viva na memória a
expulsão dos mouros do Algarve. Mas não foi apenas nas guerras que os
portugueses travaram contato com outros povos não europeus. O príncipe D.
Henrique começou a ver no interior da África não mais uma terra de hereges e
sim um território misterioso, aberto ao comércio e à glória.
De volta a Portugal após a conquista de Ceuta,
o infante impulsionou o grande projeto de exploração da costa africana por mar.
A partir de então, as descobertas não terminaram mais: ilha da Madeira em 1420,
Açores em 1432, e a compulsiva tentativa de ultrapassar o Cabo Bojador, a mais
meridional das regiões conhecidas, cercada de superstições, e da suspeita de
que ali se encontrava o fim do mundo. De 1424 a 1434 são quinze as expedições
enviadas com este propósito, cada uma delas aproximando-se mais do objetivo,
até que em 1434 Gil Eanes, chegando às proximidades do Bojador, mudou o curso,
adentrando o Atlântico, e contornou o ameaçador limite.
O Bojador estava vencido. Eanes foi recebido
como herói e as superstições e os temores caíram por terra. A partir desta
conquista, os portugueses desvendaram a costa da África, sempre fazendo
incursões ao interior. Cruzaram o Cabo das Tormentas ao Sul do continente,
navegaram o Índico, chegaram à Índia, Malásia, Pérsia, China e Japão.
A visão edênica do Brasil, portanto, não se
deve à ingenuidade portuguesa, ou ao seu espanto ao descobrir povos não
europeus. Deve-se, isto sim, às condições da natureza e ao primitivismo dos
seus habitantes. O indígena brasileiro estava muito distante, em termos de
civilização, dos indianos, chineses, mouros, persas, e até dos africanos.
Aqui não se via a ação do homem transformando
a natureza. Ao contrário, o homem a ela integrava-se como as plantas e os
animais. Não se viam edificações. Os armamentos eram os mais rudimentares e os
implementos domésticos os mais primitivos. Não havia nenhuma evidência de
indústria nem nas roupas nem nos artefatos. Inexistiam templos, e os caminhos
não se transformavam em estradas. Em suma, era o homem habitando uma natureza
intocada. Não havia cidade a conquistar, fortaleza a derrubar, deuses e
sacerdotes a destruir e subjugar, reis e autoridades a derrotar. Nas costas
brasileiras, os portugueses descobriram o Éden.
Uma das nações mais poderosas, modernas e
cosmopolitas do século XVI e, de mais precoce unificação, encontrou-se nos
trópicos com a mais primitiva e menos “civilizada” das sociedades. Muito menos,
por exemplo, do que as que a América espanhola descobriu no México e no Peru.
A história convencional não valoriza
adequadamente o Portugal do início do século XVI, que descobriu o Brasil, entre
tantas outras descobertas. Portugal, não obstante o seu tamanho, era, nos
séculos XV e XVI, uma das nações mais modernas do mundo. Seu sistema de governo,
desde o reinado de D. Pedro I (1357/67), caracterizou-se pela existência de
monarquias fortes e guerreiras, que unificaram o país. Era uma corte de
cavalaria, ao estilo medieval, que cultivava o heroísmo e as virtudes cristãs.
No início de 1400, os jovens príncipes D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique (o
infante) estavam maduros para sua investidura na ordem da cavalaria. Ao
contrário da festa com “justas” e torneios, o rei D. João redefiniu o “rito de
passagem” dos novos cavaleiros em torno de uma “gesta nacional”: uma nova
cruzada contra os mouros, agora no seu território. Em vez de jogos, festas e
torneios, uma empresa militar nacional para eles provarem que mereciam “ganhar
as suas esporas”.
O objetivo fixado foi Ceuta,
na costa norte da África. A conquista de Ceuta estimulou expedições por terra
e, mais importante, a decisão de explorar por mar a costa africana. O objetivo
era alcançar a Ásia, numa época em que a rota por terra que levara Marco Polo
da Europa ao Império Chinês havia sido interrompida. Definida a meta nacional,
os portugueses, sob a liderança do infante D. Henrique, iniciam uma verdadeira
revolução nas áreas de cartografia e engenharia naval. Os portugueses levaram
adiante a tradição dos “portulanos” – mapas detalhados das costas do Mediterrâneo
e da Europa do Norte –, estendendo-os para a costa da África. Ao mesmo tempo,
desenvolveram a caravela de vela latina: barcos de dois a três mastros, com
aproximadamente 20 metros de comprimento e 60 a 70 toneladas de peso.
Na escola de Sagres, ponto de encontro entre
homens do mar, cartógrafos, geógrafos e inventores, surgiam os projetos de
exploração da costa africana que impulsionaram as descobertas. Este Portugal
aventureiro reunia militares e navegadores que fizeram das descobertas o seu projeto
de vida. Foram bancados pela Coroa Portuguesa por mais de um século, sem
solução de continuidade, não obstante a sucessão de reis que ocuparam o trono
no período.
Para citar apenas os mais conhecidos, por lá
passaram homens como Gil Eannes, Diogo Cão, Gonçalo de Souza, Bartolomeu Dias,
Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Diogo Dias, Duarte Pacheco Pereira, Afonso
de Albuquerque, Francisco de Almeida, Fernão de Magalhães, João Coelho, Martim
Afonso de Souza. Circulavam o globo terrestre com suas caravelas e seus
mosquetes. Queriam descobrir, conquistar, colonizar e cristianizar.
Correspondiam, no seu tempo, aos modernos executivos de uma poderosa
multinacional de hoje. Homens de confiança dos governantes, competentes e
experientes, sem raízes fixadas numa vida convencional, sempre dispostos a
fazer-se ao mar a serviço dos interesses nacionais e da glória pessoal.
Muitos destes nomes fazem parte da história do
Brasil, como fazem também da história de Guiné, Costa do Ouro, Madagascar,
Congo, Angola, Moçambique na África, Cochin, Goa, Calicut, Cananor, Colombo na
Índia, Malaca, e finalmente Cantão e Macau na China. O ponto importante a
ressaltar é a capacidade de Portugal propor-se objetivos nacionais,
disponibilizar os meios físicos e organizacionais para implementá-los e revelar
a persistência e a vontade política de uma elite política para alcançar o
objetivo que definira. Esta era uma condição singular, quando comparada com
outras nações europeias à época. Portugal avançara para o patrimonialismo enquanto
as nações daquela Europa permaneciam enredadas nos conflitos do feudalismo.
Foi este país que em 1500 aportou no edênico
Brasil. Portugal era capaz de fazer frente a impérios asiáticos e ocupar e
manter territórios, dominando a mais moderna tecnologia de navegação da época,
militarmente aguerrido, habituado a lidar com estrangeiros e a com eles
negociar. Foi um encontro de extremos: o extremo da modernidade com o extremo
de uma sociedade primitiva, natural e ingênua. É deste encontro que nasce o Brasil.
Nele se produzem as marcas de nascença que vão nos acompanhar ao longo da
história.
Mas o Portugal que veio ao Brasil era o Estado
português, que aqui chegou antes da sociedade, a bordo de suas caravelas. Este
fato vai marcar toda a nossa evolução histórica ao originar o paradigma do
Estado hegemônico, que preside a nossa evolução histórica até os dias de hoje. Francisco Ferraz – Brasil in “Revista
Voto”
Sem comentários:
Enviar um comentário