800 Anos
da língua portuguesa: entre o crioulo e o português
Esta sexta-feira, 27 de Junho de 2014,
comemoram-se os 800 anos da Língua Portuguesa (LP), data do documento mais
antigo de que há registo nesse idioma. Em Cabo Verde, apesar de ser a língua
oficial, não é a materna. A falta de oralidade, por um lado, e a falta de
sentimento de pertença da própria língua, por outro, tem condicionado a
aprendizagem e o uso do português nestas ilhas. Mesmo assim, alguns
especialistas cabo-verdianos garantem que a língua portuguesa está “viva”, mas
alertam que precisa ser mais bem tratada.
Com cerca de 244 milhões de falantes em todo
o mundo, a língua de Camões é, hoje, o quarto idioma mais falado do planeta. É
crescente no mundo inteiro o número de interessados em dominar esse meio de
expressão cujas raízes se perdem no tempo. Em Cabo Verde, contudo, a
“coabitação” entre o português, língua oficial, e o cabo-verdiano, língua
materna, não está isento de tensões.
Escritora e professora de profissão, Ondina
Ferreira tem sido uma defensora acérrima da Língua Portuguesa, salientando que
a mesma tem vindo a conhecer uma expansão notável no mundo. “Basta pensar que
países como a China, a Índia e o Japão têm revelado um crescente interesse pelo
ensino da LP nos respectivos países. De tal forma que o Japão pediu estatuto de
Observador, junto da CPLP. O interesse desses países reside no facto de a LP
ter aumentado o seu valor como língua de negócios”.
Aliás, a língua de Camões, ocupa hoje o 4º
lugar no TOP dos 20 países mais falantes da LP, o que deixa transparecer
claramente o poder e influência que tem vindo a conquistar, incluindo no
próprio seio da CPLP, onde há partida os dialectos nativos ainda exercem
pressão. “A LP é hoje a língua materna de mais de 80% de angolanos com menos de
50 anos de idade. E a percentagem sobe, quando se trata de população dos
centros urbanos daquele país. Em S. Tomé e Príncipe, e à escala do país, o
fenómeno linguístico é idêntico, ao de Angola. Em Moçambique, ela vem atingindo
níveis de expansão assinaláveis”.
Dados do Observatório da Língua, que na
opinião da nossa entrevistada deixam transparecer “a importância que os
responsáveis dos países citados atribuem à expansão e ao apossamento da LP como
língua de desenvolvimento por parte do seu cidadão, e como parte incontornável
da sua história cultural”. Por isso, diante desse quadro, Ondina Ferreira
antevê “um futuro brilhante, de plena globalização e de mundialização” para a
LP no mundo.
Falta de pertença pela LP
O mesmo futuro risonho quer antever para Cabo
Verde, onde, apesar de ser considerada língua oficial, a LP sempre foi a
segunda língua. Na prática, a maioria dos cabo-verdianos começam por falar o
crioulo, língua materna, que ao longo da infância vai ganhando terreno quer na
informalidade e brincadeiras de criança, quer nos jardins-de-infância ou até
nas salas de aulas do Ensino Básico Integrado, onde a aprendizagem é
maioritariamente em crioulo.
Neste contexto, a nossa entrevistada defende
que o ensino do português, sobretudo a sua oralidade, devia começar nos
jardins-de-infância. “A criança cabo-verdiana que não a tem em casa (LP), devia
ouvi-la desde muito cedo, dada a enorme capacidade de aprender línguas que a
criança possui. E, isso, seria uma vantagem, uma mais-valia que a criança,
depois aprendente, levaria para a escola e para a sua formação pós-secundária
no país”.
Mas, o que tem dificultado a má aprendizagem
do português nas escolas de Cabo Verde? Para Ondina Ferreira, o problema começa
logo na “falta de assunção da LP como nossa língua também” dos cabo-verdianos.
A este facto, junta-se “a falta de afecto e de interiorização normal”, como
acontecia até há bem pouco tempo. “Há poucos anos a esta parte, tem vindo a
acentuar-se este fenómeno de estranheza com a LP, entre os nacionais”.
Estranheza essa que Ferreira crê “ser fruto de uma orientação – má e intencional
– das políticas linguísticas que estão a suceder no país”.
Na sua opinião, um dos resultados que já é
visível “infelizmente”, desse desapego, “é o pouco à-vontade com que o falante
cabo-verdiano escolarizado se expressa em LP”. Esse distanciamento poderá, no
futuro, “criar um fosso social e intelectual (em termos de raciocínio
lógico/dedutivo) entre os alunos cabo-verdianos que já levam para a escola (de
casa ou, mesmo do jardim de infância) a nossa língua segunda e oficial, e
aqueles a quem a escola primária e secundária não presta a atenção devida ao
ensino do português e a maltratam sem que ninguém, com isso, se escandalize”,
alerta.
Língua é identidade
Ademais, Ondina Ferreira faz questão de
lembrar que a LP “é o veículo linguístico fundamental de todo o percurso
escolar do aluno cabo-verdiano” e a “língua de união que nos permite comunicar
com os países da CPLP”, exemplificando, com “a significativa comunidade
cabo-verdiana emigrada actualmente em Angola, para não falar da comunidade que
foi e continua a ser numerosa, imigrante em Portugal e que recebe diariamente
novos elementos que daqui vão em busca de trabalho”.
Questionada se a língua portuguesa tem sido
"bem tratada" em Cabo Verde, Ondina Ferreira diz que não e argumenta
que “o que está a acontecer e o que está em défice é a falta de oralidade da
LP, em Cabo Verde” e vai mais longe, afirmando que “a língua oficial e segunda,
em termos de oralidade, não está a ser respeitada entre nós”.
Contudo, apesar do cenário pouco animador,
não acredita que a LP tenda a desaparecer em Cabo Verde e afirma que, se isso
acontecesse, seria “como se amputássemos parte da nossa identidade, da nossa
cultura, do nosso saber, da nossa produção literária, jornalística e técnica, e
igualmente a parte mais significativa do progresso e do desenvolvimento
conseguido por Cabo Verde”.
Paridade e complementaridade
Também o linguista e professor universitário
Manuel Veiga tem uma opinião muito própria sobre a LP no país e destaca que o
“contributo maior” que Cabo Verde tem dado para a “boa saúde” do português é,
desde logo, “a declaração do português como língua oficial de Cabo Verde”. E
nisso salienta ainda “as consequências que advêm dessa escolha no sistema do
ensino, na administração, na comunicação, na criatividade artística e
cultural”.
Outrossim, remete ainda para “o contributo”
que “vem da consagração na Constituição da República do articulado que diz: o
Estado promove as condições para a oficialização da língua materna
cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa”.
Aliás, a falta de paridade e convívio das
duas línguas, crioulo e português, em pé de igualdade, tem prejudicado a
aprendizagem do português, acredita este entrevistado. “O ensino do português
continua problemático pelo facto de não partilhar, convenientemente, o espaço
do magistério com a língua materna cabo-verdiana, nos termos da Constituição
que ordena a construção da paridade”.
Na opinião deste linguista, esta situação “é
problemática” porquanto “o sistema impõe, por enquanto, o ensino formal apenas
do português”, mas “os professores se confrontam na sala de aula com a presença
fortíssima da língua materna que, por não estar devidamente enquadrada,
procura, mesmo sem ser autorizada, e por necessidade ou comodidade, ocupar
espaços que julga ter direito, mas que ainda não lhe é, legalmente,
reconhecido”, explica a propósito da necessidade do ensino do crioulo.
Ensino de qualidade
Por isso, esta “luta” entre as duas línguas
“desfavorece”, na opinião desse entrevistado, tanto a língua portuguesa como a
língua cabo-verdiana. A solução, a seu ver, passaria por “ensinar as duas
línguas com rigor e com metodologia própria, não em competição, mas em
complementaridade”.
Aliás, Veiga defende que a LP ficaria “mais
viva” quando “passar a viver mais harmoniosamente com a língua materna
cabo-verdiana nos espaços de oficialidade, particularmente no ensino” e “passar
a partilhar, harmoniosamente, mais espaços de informalidade com a língua
materna cabo-verdiana”.
Por outro lado, admite que ainda que o
português conseguirá conquistar outro espaço em Cabo Verde “quando a
massificação do seu ensino corresponder também à massificação da qualidade
desse mesmo ensino, com uma pedagogia e metodologia adequadas”.
Não obstante estes e outros constrangimentos,
Veiga almeja que “o português da informalidade aumente o seu espaço e conviva,
harmoniosamente, com a informalidade das línguas nativas, e que haja paridade e
bilinguismo social efectivo entre o português formal e as línguas maternas
nacionais” não só nas ilhas crioulas”, como em todo o espaço da CPLP. Gisela Coelho – Cabo Verde in “A Nação”
As questões elaboradas por Gisela Coelho e as
respostas de Ondina Ferreira para a construção do texto acima apresentado:
Na sua
opinião qual o futuro da língua portuguesa no mundo?
A Língua portuguesa é uma das línguas vivas
que vem conhecendo uma expansão notável no mundo. Entre as 20 Línguas mais
faladas no mundo, ocupa o 4º lugar. É a Língua mais falada no Hemisfério Sul.
Basta pensar que países como a China, a Índia
e o Japão têm revelado um crescente interesse pelo ensino da Língua portuguesa
nos respectivos países. De tal forma que o Japão pediu estatuto de Observador,
junto da CPLP.
O interesse desses países reside no facto de
a Língua portuguesa ter aumentado o seu valor como língua de negócios. Os dados
que eu aqui referencio, são dados do Observatório da Língua.
A Língua portuguesa é hoje Língua materna de
mais de 80% de Angolanos com menos de 50 anos de idade. E a percentagem sobe,
quando se trata de população dos centros urbanos daquele país. Em S. Tomé e
Príncipe, e à escala do país, o fenómeno linguístico é idêntico, ao de Angola.
Em Moçambique, a língua portuguesa vem
atingindo níveis de expansão assinaláveis. Daí que se possa perceber a
importância que os responsáveis dos países citados, atribuem à expansão e ao
apossamento da língua portuguesa como língua de desenvolvimento por parte do
seu cidadão, e como parte incontornável da sua história cultural.
Por tudo isto, auguro-lhe um futuro
brilhante, de plena globalização e de mundialização.
E em
Cabo Verde, na sua opinião, a língua portuguesa tem sido "bem
tratada"?
Como falante e amante da nossa bela língua,
acho que não. Mas isto parece que é infelizmente, geral. O que está a acontecer
e o que está em “deficit” é a falta de oralidade da língua portuguesa em Cabo
Verde. Os falantes lusófonos que cá chegam estranham muito este fenómeno.
Outrossim, a língua oficial e segunda, em termos de oralidade, não está a ser
respeitada entre nós….
Acha
que a língua portuguesa está "bem viva " em Cabo Verde ou tenderá a
desaparecer?
Abrenúncio! Uma língua que é hoje falada por
mais de 250 milhões de pessoas, em plena expansão, desaparecer entre nós? É o
começo da minha resposta à sua pergunta!
A primeira, que as rochas e os areais destas
ilhas ouviram! Uma língua vetusta, mas sempre renovada e enriquecida!...
Seria também como se amputássemos parte da
nossa identidade, da nossa cultura, do nosso saber, da nossa produção
literária, jornalística e técnica, e igualmente a parte mais significativa do
progresso e do desenvolvimento conseguido por Cabo Verde. Se tal acontecer, na
minha opinião, estar-se-ia a penhorar e sem recuperação o próprio país.
Defendo que a Língua portuguesa tem que estar
bem viva e bem cuidada em Cabo Verde! A língua portuguesa é nosso património há
mais de 500 anos! É a testemunha linguística principal de quase todo o acervo e
do registo documental escrito, da História de Cabo Verde.
Na sua
opinião o que tem dificultado a má aprendizagem do português nas escolas de
Cabo Verde?
Tal como a entendo, o que tem dificultado
tudo isto, é a falta de assunção (fenómeno relativamente recente) da Língua
portuguesa como nossa língua também; falta de afecto e de interiorização normal
como acontecia naturalmente, até a um passado bem recente, mas que na
actualidade, e de há poucos anos a esta parte, tem vindo a acentuar-se este
fenómeno de “estranheza” com a Língua portuguesa, entre os nacionais. Creio ser
fruto de uma orientação – má e intencional – das políticas linguísticas que
estão a suceder no País. Creio, que um dos resultados que já é visível
infelizmente, é o pouco à-vontade com que se expressa em Língua portuguesa, o
falante cabo-verdiano escolarizado. E isto, vai no futuro, criar um fosso
social e intelectual (em termos de raciocínio lógico/dedutivo) entre os alunos
cabo-verdianos que já levam para a escola (de casa ou, mesmo do Jardim de
Infância) a nossa Língua segunda e oficial e aqueles a quem a escola primária e
secundária não presta a atenção devida ao ensino do português e a maltratam sem
que ninguém, com isso, se escandalize!
Para além do mais, é a Língua portuguesa, a
língua de união que nos permite comunicar com os países da CPLP – veja-se a já
significativa comunidade cabo-verdiana emigrada actualmente em Angola, para não
falar da comunidade que foi e continua a ser numerosa, imigrante em Portugal e
que recebe diariamente novos elementos que daqui vão em busca de trabalho.
Tudo isso e de há muitos anos a esta parte,
já devia merecer, o maior cuidado e interesse em todo o o sistema de ensino da
língua portuguesa aqui em Cabo Verde. A língua portuguesa é o veículo
linguístico fundamental de todo o percurso escolar do aluno cabo-verdiano.
Bem não estou a inovar, isto é expresso, com
força de legal e institucional, na Lei de Bases do Sistema de Ensino de Cabo
Verde, fundada e elaborada em 1989, e aprovada em parlamento plural, no ano de
1991.
Aliás, tal como outros estudiosos e
interessados pelas questões que se põem às nossas línguas, já o afirmaram, no
respeitante à portuguesa, e entre nós, o seu ensino, sobretudo a sua oralidade,
deviam começar nos Jardins-de-Infância. Ou seja, a criança cabo-verdiana que a
não teve ou tem em casa, devia ouvi-la desde muito cedo, dada a enorme
capacidade de aprender línguas que a criança possui. E isso seria uma vantagem,
uma mais valia que a criança, depois aprendente, levaria para a escola e para a
sua formação pós-secundária no País.
Logo, a sua expansão entre nós, sobretudo a
sua oralidade, é de todo desejável pois que, só nos enriqueceria ao
tornarmo-nos bilingues de facto.
Considera
que o projecto de Ensino Bilingue nas escolas do EBI poderá servir para
facilitar uma melhor aprendizagem do Português ou não? Porquê?
Como não estou a par do projecto, não sei se
responderei a esta questão de forma correcta. Por isso, não sei se é esse o
propósito do projecto, refiro-me à questão colocada: - poderá servir para
facilitar uma melhor aprendizagem do Português?
Depende e muito da formação do professor, dos
professores que têm ou, terão a seu cargo ministrar as duas línguas. Para
começar os docentes (espero e faço votos que sem formações aceleradas, leia-se:
apressadas) deviam ter perfis diferenciados, o de português há-de ser, ou deve
ser, um docente que a domina e a fala sem acanhamento (a língua portuguesa). O
ensino actual das línguas vivas, com é o caso da língua portuguesa entre nós,
comporta e funde diferentes metodologias do ensino de línguas (materna, segunda
e estrangeira). Pode ser que sim, que resulte, e pode ser que não, que não
resulte… Tal como já disse depende de muitos factores inerentes à didáctica das
línguas vivas e reitero, não conheço o projecto com profundidade suficiente
para aferir eventuais resultados. Ondina
Ferreira – Cabo Verde in “Coral Vermelho”
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