Já foi há quase dez anos que visitei pela
primeira vez a Galiza, para participar no Dia das Letras Galegas. E lembro-me
nitidamente, como se hoje fosse, da súbita sensação de assombro com que me vi
fora de Portugal sem sentir que já tivesse saído.
Como a maioria dos meus compatriotas lusos,
pouco sabia sobre a velha Galécia, terra verde e bonita de uma beleza séria e
fundamental. Os portugueses, que vivemos há demasiado tempo de costas voltadas
para os nossos irmãos galegos, fomos ensinados a falar de uma coisa chamada
“Espanha” como um monólito impenetrável de afectações andaluzas e jeitos de
toureiro. Mas a Galiza é um país diferente, onde o português não encontra forma
de se sentir estrangeiro. Foi isso que senti, quando a minha amiga Sabela, do
Grove, me falou num português perfeito, inspirado de uma pronúncia límpida e
ancestral ou, quando pelas ruas de Compostela, respirei aquela portuguesíssima
forma de estar, cuja ausência alaga em saudades os corações dos portugueses
emigrados. Não, os galegos não são espanhóis.
É que no fundo, são os portugueses que são
galegos. Calaicos, keltikoi... celtas que se separaram, há tantos séculos, do
reino de Leão, retendo a matriz humana e cultural. A Galiza não foi apenas o
berço da cultura e da língua portuguesa, foi também pátria de nascimento para
Afonso Henriques e pátria adoptiva para Zeca Afonso, que cantou primeiro a
Grândola para a margem esquerda do Návia. As nossas afinidades são tais, que
entre o idioma português e o galego quase nada diverge. Culturalmente, a única
barreira que nos separa é uma prisão chamada Espanha, uma imposição das classes
dominantes de Castela sobre toda a península, que entende Portugal como um
excepcional e desconfortável acidente histórico ao longo da estrada para o
domínio da Península Ibérica.
A brutal ocupação e assimilação castelhana da
Galiza quase a matou, propósito que reconhece o cronista de Aragão Zurita em
pleno séc. XVI, quando descreve a “doma e castração do Reino da Galiza”. Com
efeito, a língua galega foi perseguida e humilhada século após século e
obrigada a sobreviver nos bueiros escuros do seu povo miserável. A sua cultura
foi relegada para a taberna e para o campo, expurgada da academia e destituída
de auto-estima. As nossas irmãs e irmãos galegos, carregam às costas o secular
fardo da vergonha de ser quem és a par da trágica (e espúria) obrigação de
semelhar o castelhano. Só nos finais do século XIX (quando perde
definitivamente a sua independência formal), a Galiza começa um longo caminho
dual para se redescobrir e libertar.
Por um lado, a redescoberta cultural obriga à
recuperação literária da língua e à sua afirmação e modernização em todos os
âmbitos da sociedade. Por outro, a libertação política obriga à construção de
um movimento de massas populares de corte secessionista e socialista. Tanto num
como noutro vector, os galegos carecem capitalmente de uma aproximação a
Portugal. A língua galega, manietada pelo Estado espanhol, estacionou ao longo
do século XIX, arcaizando-se ou castelhanizando-se. Mas como sugeria Rodrigues
Lapa, ao contrário dos catalães ou dos bascos, os galegos podem servir-se do
padrão literário da língua portuguesa, altamente desenvolvido e modernizado,
para recuperar a sua própria identidade.
Da mesma forma, a libertação política da
Galiza encontra eco na aproximação à sua família do sul. Não só os portugueses
construíram uma rede política, cultural e económica internacional baseada na
lusofonia, como o Estado Português tem o potencial de espelhar a referência de
nação independente dentro da península e fora de Espanha. A isto, acresce o
exemplo único do panorama político português, em que, ao contrário do Estado
Espanhol, a esquerda não chegou ao século XIX deserdada de organizações revolucionárias
de classe poderosas e coerentes.
Se a Galiza precisa de Portugal, também o
povo português precisa do galego. Indiferente à CPLP das instituições e
profundamente desiludido de um europeísmo bacoco que se provou destrutivo para
o povo, Portugal terá que reconfigurar a soberania futura em torno de uma
identidade nacional que, neste momento, está em cacos no chão. Para que essa
soberania resida no povo e não no capital, esse povo tem que saber primeiro
quem é, olhar-se com frontalidade no espelho da História e compreender onde
começa e acaba e o que o distingue dos outros. É pois, chegada a hora de
regressar à Galiza, que guarda na sua ternura de povo antigo e na sua
sensibilidade afinada pelo compasso da natureza, as cofragens da identidade
portuguesa.
A resoberanização do povo português nunca
estará completa enquanto este não viver em união de facto espiritual com a
Galiza. Alexandre Herculano dizia que Portugal é a maior criação do génio
galego. Tinha razão. E Portugal precisa desesperadamente de reconvalescença
cultural, às mãos carinhosas do artesão que lhe soprou vida nos pulmões, a
Galiza.
Ser solidário com o independentismo galego
proletário não é apenas um dever da solidariedade internacionalista, é também
lutar pela nossa própria liberdade, porque galegos e portugueses somos irmãos
siameses que não podem sobreviver separados. Sérgio Godinho perguntava numa
canção se pode alguém ser livre se outro alguém não é. E quando esse alguém é o
nosso irmão, a resposta é ainda mais fácil. O lugar da esquerda portuguesa é
com os independentistas galegos porque o povo galego-português é na verdade um
só: a mesma árvore reflectida noutras águas: podemos até falar um português um
pouco diferente, mas o nosso coração bate em galego. António Santos – Portugal in “Diário Liberdade”
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