A linguista Fabiana Raquel
Leite identificou, durante sua pesquisa de mestrado na Unicamp, uma nova fonte
de estudos para a Língua Geral Paulista (LGP), principal idioma falado no
Estado de São Paulo entre os séculos 16 e 18. Trata-se de um vocabulário com
1.311 entradas. O documento, único registro do século 19 desta Língua, foi
publicado no século 20 e vinha passando despercebido por estudiosos do tema.
A LGP é originária do
contato dos dialetos falados pelos índios tupis e colonizadores portugueses. O
documento, intitulado Vocabulário Elementar da Língua Geral Brasílica, foi
publicado em 1936 na Revista do Arquivo Municipal de São Paulo. “Apesar de trazer
em seu título a denominação ‘Língua Brasílica’, o vocabulário de autoria de
José Joaquim Machado de Oliveira constitui, efetivamente, uma fonte da LGP. Foi
isso que demonstramos no estudo, essa é a descoberta”, esclarece Fabiana Leite.
O achado integrou pesquisa
desenvolvida por ela junto ao Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), sob a
orientação do professor Wilmar da Rocha D’Angelis, um dos principais estudiosos
da área de línguas indígenas do país. O trabalho contou com financiamento da
Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes).
“Língua Brasílica,
denominação corrente nas crônicas jesuíticas, caracterizava estes dialetos
falados a partir do contato dos colonizadores e índios. O termo ‘língua geral’
é utilizado para referir-se à língua indígena mais difundida na costa
brasileira nos séculos XVI e XVII. A principal contribuição do estudo foi
conhecer um pouco mais essa Língua Paulista e identificar uma nova fonte
valiosa de registro e estudo. Com isso, novas perspectivas para a pesquisa
poderão surgir. A LGP foi muito importante, era praticamente a língua oficial
do nosso Estado”, fundamenta a pesquisadora da Unicamp.
Fabiana Leite explica que,
ao contrário das outras línguas gerais existentes no país, a paulista está
extinta. No Brasil, a partir da colonização, foram faladas três línguas gerais.
Duas no domínio português: a Língua Geral Paulista e a Língua Geral Amazônica,
falada no Norte, nos atuais estados do Maranhão e Pará. E outra, denominada
Língua Geral Guarani, falada no Sul, na época em que o Estado estava sob o
domínio espanhol.
“A Língua Geral Amazônica
sobreviveu e hoje ela é conhecida também como Nheengatu. Foi documentada,
existe gramática, dicionário e é uma língua viva. Já a LGP deixou de ser falada
no início do século 20. Para as línguas amazônica e guarani existem muitas documentações,
ao contrário da paulista. O principal documento de registro dessa língua
conhecido até então era um dicionário de verbos compilado e publicado pelo
naturalista alemão Carl Friedrich Philipp von Martius, que recebeu este
documento de segunda mão”, contextualiza.
A língua paulista tem suas
origens nos dialetos dos índios tupi de São Vicente e do alto do rio Tietê. Com
a ação dos bandeirantes no Brasil colonial, ela foi disseminada também para os
estados de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e Paraná. “É uma língua de origem
indígena, mas com elementos do português, espanhol e do guarani. Comparada à
Língua Geral Amazônica, a paulista apresenta uma maior influência do idioma do
colonizador português, espanhol e, também, do guarani. Por essa razão, autores
como von Martius, a consideraram uma língua menos pura. Podemos dizer que a LGP
era o idioma corrente das bandeiras paulistas”, descreve a pesquisadora.
Vocabulário
A linguista Fabiana Raquel Leite |
Fabiana Leite concluiu sua
dissertação em três anos. Boa parte do seu trabalho foi pesquisar se o
“Vocabulário Elementar da Língua Geral Brasílica” era uma fonte de registro do
Nheengatu, a língua falada no Norte, ou da Língua Geral Paulista. “Durante a
pesquisa descobri que realmente este documento é um registro da língua
paulista. Isso estava passando despercebido. Devido à escassez de documentação
sobre a LGP, para a análise comparativa dos dados, foram utilizados critérios
fonológicos e morfológicos. A insuficiência de documentação não nos permitiu a
utilização de critérios gramaticais. Analisamos, ainda, as diferenças
semânticas existentes entre o léxico tupi e o guarani”, justifica.
O Vocabulário Elementar foi
publicado em 1936, 69 anos após a morte do seu autor, o militar e político José
Joaquim Machado de Oliveira (1790 - 1867). Além da carreira política, Machado
de Oliveira se destacou pela rica produção intelectual e cultural. A linguista
da Unicamp acrescenta que ele foi sócio da Revista Trimestral do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, instituição na qual publicou grande parte de
seus trabalhos.
Foram, no total, 36 obras
publicadas e diversos manuscritos inéditos. As publicações abarcam uma rica
variedade de assuntos: etnografia, criação do bicho da seda, estatística,
recrutamento militar, imigração, colonização, geografia, além de biografias e
relatos de viagens. “O neto dele, José de Alcântara Machado, encontrou os
manuscritos desse Vocabulário e publicou. Muitas respostas ficaram sem
preencher porque, embora eu tenha procurado o manuscrito durante toda a
pesquisa, tive que me basear apenas na publicação editada pela Revista do
Arquivo Municipal de São Paulo”, reconhece.
Para a elaboração do
Vocabulário, a estudiosa da Unicamp informa que o autor consultou obras de Luís
Figueira (A Arte da Língua Brasílica, em especial), de António Ruiz Montoya e o
manuscrito da segunda parte do Dicionnario Portuguez-Brasiliano e
Brasiliano-Portuguez.
“O Vocabulário possui 1.311
entradas que ocupam as páginas de 129 a 171 da Revista do Arquivo Municipal de
São Paulo. Na sequência delas, encontramos uma lista de 73 entradas denominada
Vocabulário dos Índios Coroados. As entradas estão em língua geral, seguidas da
tradução em português”, detalha.
Manuscrito da Biblioteca
Nacional
Chegando ao final da
pesquisa, durante o exame de qualificação, Fabiana Leite identificou outro
documento de registro da Língua Geral Paulista. “Trata-se de um manuscrito da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, provavelmente do século XVIII,
intitulado Vocabulário da Língua Geral dos Índios das Américas. É um documento
importante que consta de 440 entradas e não traz indicação de data e autor.”
O manuscrito já havia sido
apresentado em 2001 durante comunicação proferida no II Colóquio sobre Línguas
Gerais pelos estudiosos Aryon Dall’Igna Rodrigues, ex-docente da Unicamp, e
Ruth Maria Fonini Monserrat, ambos pesquisadores atuais do Laboratório de
Línguas e Literaturas Indígenas (LALLI) da Universidade de Brasília (UNB). Sílvio Anunciação – Brasil in “Unicamp”
Publicação
Dissertação: “A Língua Geral
Paulista e o ‘Vocabulário Elementar da Língua Geral Brasílica’ ”
Autora: Fabiana Raquel Leite
Orientador: Wilmar da Rocha
D’Angelis
Unidade: Instituto de
Estudos da Linguagem (IEL)
Financiamento: Capes
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