Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Lá, cá, em qualquer lugar

Linchamentos e a peste da violência

No primeiro dia o médico viu um rato morto na frente da sua casa e achou isso estranho (insólito). No segundo dia, mais três. Nos dias seguintes, muitos. Em seguida surgem incontáveis doentes com os mesmos sintomas: inchaços, erupções cutâneas e delírios; em menos de 48 horas todos começaram a morrer. Centenas de milhares de pessoas efetivamente morreram. As autoridades negam dizer a verdade, enquanto podem. Chamam os que denunciam a calamidade de alarmistas e inconsequentes. Ninguém quer mencionar o nome do fenômeno. Não se pode deixar a opinião pública em pânico. Ela é sagrada. Mas negar os fatos não muda a realidade. Nem mudar o seu nome (chamando de desafio o que, na verdade, é um problema). Quando a desgraça se espalhou por toda cidade, então foi necessário revelar o seu nome: a peste. Meses depois foi feito o anúncio oficial do fim da tragédia. O médico, no entanto, não quis participar da comemoração. Por quê? Porque ele sabia que a euforia da multidão ignorante era passageira, posto que “o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca” (isso foi escrito em 1947, por Albert Camus, no seu livro A peste, citado por Riemen, no livro O eterno retorno do fascismo, 2012, p. 11-12).


A tragédia da peste da violência, que está incubada na nossa sociedade (a tortura está na alma do brasileiro, dizia Darcy Ribeiro), fez mais uma vítima: Fabiane Maria de Jesus, 33 anos, dona de casa, em Guarujá (SP). Foi linchada por moradores da cidade e vizinhos, depois de um boato de que sequestrava crianças. O linchamento é uma das manifestações mais bárbaras de um povo. Era comum na Idade Média. A infundada suspeita e acusação contra a vítima foi mais um uso irresponsável da mídia (que hoje é escrita, falada, televisada ou compartilhada). A pior utilização da mídia é a que estimula a violência, o justiçamento com as próprias mãos. Mas isso, no Brasil, está sendo disseminado há muitos anos. Da Idade Média chegamos na Idade Mídia, com as mesmas atrocidades, crueldades e barbáries.


Quem são os responsáveis pela peste da violência? Os perturbados sociais executores do linchamento, os que induziram a esse ato, os que estimulam a violência no país, incluindo a mídia, a falência das instituições (justiça, política e Estado), o desaparecimento dos valores positivos, os governantes que deixam o povo indignado praticando suas indignidades, a sociedade ressentida (rancorosa, odiosa) intolerante, que já não suporta tanta injustiça, gerada pela histórica desigualdade individual e social. Quando vamos compreender que o comunismo fez política de esquerda sem saber fazer políticas econômicas (aliás, foi um desastre)? Quando vamos acordar e perceber que o capitalismo extremamente desigual sabe gerar capital (e o bem-estar de uma pequena parcela da população), mas não sabe fazer políticas sociais de inclusão da classe trabalhadora (cujos salários vêm sendo impiedosamente arrochados no mundo todo)?


Com tanta informação hoje disponível, como é que não vemos que o primeiro (o comunismo) quis repartir bem-estar aos trabalhadores, mas não soube produzir? Que o segundo sabe produzir, mas não quer repartir? Quem ainda não percebeu que o primeiro se tornou insustentável e morreu em praticamente o mundo todo? E que o segundo se transformou numa fábrica de conflitos infinitos, linchamentos e violências, porque a desigualdade é essencialmente um problema de estabilidade e de segurança? (J. Villalobos, El País 8/5/14, p. 37). Com o obscurantismo nunca vamos chegar à emancipação. Temos que começar a pensar o Brasil seriamente e urgentemente (uma vida preservada da barbárie já justifica o esforço). Flávio Gomes – Brasil in “JusBrasil”



Luiz Flávio Gomes - Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).

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