Quarenta
anos depois da fugaz Revolução Portuguesa, três palpites sobre medo passageiro
das elites, ilusão dos revolucionários e manobras do poder global
Estamos no mês das celebrações. Vão
organizar-se muitas peregrinações ao 25 de Abril de 1974 com trajetos e até
destinos diferentes, como se fossem pacotes de turismo da memória. Um tempo tão
importante pelos lugares visitados como pelos evitados, pelo que vai ser dito
como pelo que não vai ser dito. Remeto-me a imaginar os lugares evitados, o
não- dito, propondo-me um exercício de sociologia das ausências. São três os 25
de Abril que vão estar ausentes.
O 25-de-Abril-de-quem-deve-teme. Para os
poderosos, as elites de sempre (latifundiários, grandes industriais,
banqueiros), todas com “sólida formação moral” certificada pela PIDE [a polícia
política da ditadura salazarista], o 25 de Abril foi uma dor de cabeça, um
desconforto inoportuno. Para alguns, até pareceu um bom negócio mas foi sol de
pouca dura. A partir de 11 de Março de 1975, transformou-se numa ameaça que
lhes causou medo e os obrigou a protegerem-se. Foi um susto passageiro, pois em
25 de Novembro do mesmo ano foi-lhes dito ao ouvido (para os portugueses comuns
não ouvirem) que, com o tempo, tudo voltaria ao normal. Não seria sequer
necessário criar uma comissão de verdade e reconciliação e muito menos uma que
incluísse, além destas, justiça. Quarenta anos depois, quem teve medo já nem se
lembra e quem lhes causou medo tem medo de lhes lembrar.
O
25-de-Abril-dos-revolucionários-aferventados. Foi a fulguração das ruas, das
praças, dos campos, das escolas, das famílias, dos quarteis a incendiar a imaginação
duma sociedade justa, como se a felicidade estivesse à mão, a opressão secular
fosse um pesadelo passageiro e o futuro distante e radioso tivesse chegado aqui
e agora para ficar. Havia partidos que se diziam de vanguarda mas nem
retaguarda eram da alegria que transbordava. O país eram trabalhadoras rurais
analfabetas a vasculharem maravilhadas as gavetas íntimas das senhoras da
herdade; operários empolgados a tentarem convencer-se a si próprios de que
tinham direitos contra o patrão; prostitutas a organizarem-se em sindicatos;
jovens a fazerem sexo tão incessantemente quanto faziam cartazes e manifestos;
camponeses a organizar “corporativas” por soar mais familiar do que
cooperativas; jornalistas a poderem escrever socialismo ou comunismo como se fosse
anúncio de filme em cartaz; professores a poderem leccionar Karl Marx e já não
Carlos Marques como anteriormente faziam para despistar os informadores da PIDE
no fundo da sala. Tudo aferventado porque mal cosido e a escaldar. A quem já
foi senhor dos seus sonhos, mesmo que por pouco tempo, custa lembrar, em tempos
de servidão, que já esteve levantado do chão.
O 25-de-Abril-das-grandes-manobras. No ano
anterior, a primeira experiência de socialismo democrático do século XX, o
governo de unidade popular de Salvador Allende no Chile, tinha sido esmagada
por militares a soldo da CIA. Portugal corria o risco de repetir a experiência,
o que, do ponto de vista dos EUA, seria ainda mais grave por ocorrer na Europa
Ocidental, uma zona de influência sua nos termos do Tratado de Yalta. Kissinger
considerou a invasão do país com o apoio da NATO, mas a social-democracia
europeia (sobretudo alemã) opôs-se e propôs que, em vez de militares, viesse
dinheiro, muito dinheiro, para fortalecer os partidos e os movimentos sociais
que se opunham ao “modelo soviético”. Assim se fez e os resultados foram os
esperados. Portugal ficou então em dívida para com os alemães e assim continua
hoje. Mudam-se os tempos mudam-se as dívidas mas não o endividamento. Quarenta
anos depois, seria impertinente falar de imperialismo norte-americano quando
afinal ele é agora europeu.
O 25 de Abril foi a mega-expectativa de ontem
que está na origem da mega-frustração de hoje. Aos peregrinos ao 25 de Abril de
1974 eu aconselharia que acampassem por lá durante um tempo, tomassem o ar
livre, cheirassem o alecrim, conversassem sobre Portugal como se fosse outra
vez coisa sua e, em vez de regressarem, organizassem uma expedição ao presente
e, já que estamos a falar de peregrinos, expulsassem os vendilhões do templo. Boaventura Santos – Portugal in “Outras Palavras”
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