Manoel
Bomfim e o antilusitanismo
I
Por
que ler (ou reler) Manoel Bomfim (1868-1932) quase um século depois? Porque,
entre outras razões, esse médico, historiador, psicólogo e professor, nascido
em Aracaju, foi um dos primeiros a pensar o Brasil. Por isso, ao reeditar pela
primeira vez O Brasil na História:
deturpação das tradições, degradação política, escrito em meados da década
de 1920 e publicado em 1930, a Editora PUC-Minas, em parceria com a Editora
Topbooks, presta um relevante serviço à História e à Cultura do País.
Podemos
discordar de muitas ideias de Bomfim, que, naturalmente, como todos nós, foi
escravo do “espírito do tempo” (Zeitgest),
de que dizia Hegel (1770-1781), como bem observa a historiadora Mary Del Priore
na apresentação que escreveu para esta segunda edição do livro, mas não
deixaremos nunca de nos solidarizar com ele em suas observações sobre o Brasil
de sua época, como resultado de três séculos de colonização e 67 anos (de 1822
a 1889) de um Império que pouco mudou os costumes e práticas colonialistas e
uma República que, nascida sob o tacão de militares, em iniquidades não tem
ficado atrás do regime monárquico.
Tal
como hoje, éramos uma nação atrasada, com uma parcela majoritária da população
mergulhada no analfabetismo – hoje, diríamos analfabetismo funcional –, bucha
de canhão para os conflitos que as oligarquias arrumavam e até para a Segunda
Guerra Mundial (1939-1945), além de mão de obra praticamente escrava (ou
neocrava) e desqualificada para o trabalho no campo e nas grandes cidades que
então se formavam.
II
Anglófono,
Bomfim via em Portugal toda a fonte do mal que assolava o Brasil. Dizia que,
antes da expansão colonial, “a burguesia de Londres havia abatido o mais formal
no poder da coroa”, entendendo que a revolução liberal de 1689 havia acabado
com os restos de privilégios da aristocracia inglesa. Por isso, segundo ele, ao
contrário de Portugal, onde a aristocracia continuou a usufruir de todos os
privilégios sobre a uma massa ignara – reduzida a se resignar com as migalhas
que os chamados nobres mandavam atirar aos porcos ou a emigrar –, a Inglaterra
não se degenerara, construindo um regime de estado “o mais livre no mundo
moderno”.
O
antilusitanismo de Bomfim é tão acendrado que, para ele, os 60 anos do Portugal
espanhol constituem o período de formação essencial do Brasil. “Mas, inacabada
essa formação, quiseram os fados que houvesse um Portugal restaurado, para viver exclusivamente desta colônia. E esse
Portugal, de mercantis degradados, entregue à saudade má dessas Índias
perdidas; esse Portugal, a projetar sobre o Brasil a sombra sinistra do seu
declínio, deu-nos todos os males de uma vida estiolada, fora dos estímulos em
que o Ocidente se refazia”, escreveu.
Desta
sorte, segundo ele, era o Brasil distorcido da sua marcha natural – “acorrentado
ao cadáver de uma nação que, mesmo em glória, nunca fora uma civilização
completa”. Para Bomfim, “menos que Roma em face da inteligência grega, Portugal
não teve energias para outra coisa além das suas conquistas de comércio”. Mais
adiante, disse: “Negreiro, escravocrata, absolutista, bragantista, liberal,
cortista, monarquista... o português encarnou, em todas as crises, o renitente
inimigo do Brasil, empenhado em mantê-lo na mesquinha situação que o obrigue a
servir de pasto ao mercantilismo de parasitas obsoletos”.
Só
que, mesmo depois do afastamento dos Braganças do poder, os brasileiros –
leia-se aqui: os donos do poder – continuaram roubando, extorquindo,
manipulando eleições e enriquecendo com o trabalho neoescravo, mantendo a
“lôbrega e mentirosa democracia” da Primeira República (1889-1930) em que
Bomfim viveu ao final de sua vida. E, depois, com o conturbado e fascistizante período
getulista (1930-1945), pouco mudaria, ainda que tenham sido dados alguns
direitos aos assalariados miseráveis, mais por imposição dos tempos do que por
vontade de reformar efetivamente o País. Sem contar a tragédia que constituiu a
ditadura militar (1964-1985).
III
Bomfim
não via mérito nenhum nos aventureiros lusos que, com Vasco da Gama (ca.
1460-1469-1524), avançaram em direção às Índias e que, de passagem, se viam
alguma ilha desprotegida, desciam para fazer a pilhagem. Dessa forma, Luís de Camões
(ca. 1524-1525/1580) teria exagerado ao lhes louvar os feitos mercantis, a
ponto de hiperbolizá-los, ao escrever que, “se mais mundo houvera, (o homem
lusitano) lá chegara”. Mas, ao mesmo tempo, vê patriotismo nos paulistas dos
séculos XVII e XVIII que se embrenhavam nos matos para matar ou escravizar
indígenas, tornando-se também o “terror dos espanhóis” e avançando os limites
do Tratado de Tordesilhas, a tal ponto que, se não houvesse a Cordilheira dos
Andes, o Brasil talvez hoje tivesse também saída para o Pacífico.
IV
Bomfim,
em seu desabrido antibragantismo, deixa de ver a ação da miséria humana nos
grandes acontecimentos, como se todos os reinóis fossem maus e todos os
nascidos na América portuguesa bons. E não percebe que, no movimento de 1789, eram
as mãos dos arrematantes de contratos João Rodrigues de Macedo e Joaquim
Silvério dos Reis que moviam os cordéis da conjuração, aqueles que mais
lucrariam com a separação de Minas e das capitanias que pudessem aderir ao movimento,
pois, como grossos devedores,
ficariam livres das dívidas, que haviam acumulado ao deixar de repassar para os
cofres da Coroa os impostos que arrecadavam em nome dela. Depois de por anos
dividir com os governantes os cabedais
que seriam do Reino, como dizia Critilo, alter ego do ouvidor Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), ao
denunciar (e trair) o ingênuo Tiradentes e outros, pulando para o outro lado da
cerca, Silvério acabou por conseguir o que mais queria: livrar-se das
dívidas...
Para
Bomfim, a independência de 1822 também não passou de um arranjo entre as elites,
ficando o País “sob o governo de legitimíssimos
(sic) representantes da metrópole”, sem nenhuma alteração no pessoal do
Estado. Para ele, a independência não passou de escamoteação em favor dos
Braganças e dos portugueses em geral, não sendo, portanto, o natural
desenvolvimento da nossa evolução nacional, senão um atentado contra essa mesma
evolução. Em outras palavras: “o Estado do Brasil foi organizado com a nata dos
canalhas e ineptos, de que se compunha a degradada classe dirigente do Portugal
de 1808”.
Como
se vê, é preciso algum cuidado ao ler Bomfim hoje, pois só se pode fazê-lo com
os olhos de ontem. E relativizar tudo o que escreveu porque, afinal, os
ladravazes do Império nada mais foram do que precursores dos ladravazes da
República. Foram tantos os ladravazes e tamanha a fúria com que avançaram (e
avançam) sobre as burras públicas que não sobrou espaço para se exercer nos
séculos XX e XXI um capitalismo menos selvagem, ao contrário do que se vê nas
nações mais desenvolvidas. Hoje, o antilusitanismo de Bomfim não procede
porque, guardadas as devidas distâncias, o que construímos foi um imenso
Portugal. Adelto Gonçalves - Brasil
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O
BRASIL NA HISTÓRIA: DETURPAÇÃO DAS TRADIÇÕES, DEGRADAÇÃO POLÍTICA, de
Manoel Bomfim. Prefácio de Ronaldo Conde Aguiar. Belo Horizonte: Editora
PUC-Minas; Rio de Janeiro: Editora Topbooks, 486 págs., 2013, R$ 63,90. E-mail:
editora@pucminas.com.br
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Adelto Gonçalves é
doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo e autor de Os Vira-latas da
Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981), Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona
Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil,
2002), Bocage – o Perfil Perdido
(Lisboa, Caminho, 2003) e Tomás Antônio
Gonzaga (Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras, 2012), entre
outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
Foto: Luiz Nascimento |
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