O
protagonista ausente
Naquela manhã de 22 de Abril
de 1974, segunda-feira, o dia seria igual a muitos outros que nos últimos
tempos iam ocorrendo de quinze em quinze dias. Pela manhã bem cedo,
apresentei-me mais uma vez no quartel da Administração Militar ao Campo Grande,
para obter um passaporte militar que me garantia a presença em casa por mais
uns dias e a redução da despesa por parte do Estado em alimentação da minha
pessoa e mais cerca de 160 militares.
Estávamos todos numa amena
cavaqueira na parada do quartel, aguardando que os serviços administrativos
abrissem para recebermos o passaporte que nos permitia circular no exterior por
um tempo determinado, uma, duas semanas. No serviço militar não é permitido
distracções, mas a interessante conversa da altura levou-me a ficar distraído e
a ficar de esguelha precisamente para o Comandante do quartel.
O meu cabelo estava
ligeiramente comprido para um militar, nada que fosse um exagero, mas para o
Comandante foi o suficiente para me interpelar em plena parada do quartel do
Campo Grande e perguntar-me porque não estava eu com o cabelo cortado?
A interpelação foi
justamente em frente à barbearia que existia naquele quartel e como estava
encerrada, a minha resposta foi lesta ao afirmar que aguardava que a barbearia
abrisse.
Não satisfeito com a
resposta o Comandante questionou-me qual a razão que eu não tinha cortado o
cabelo num cabeleireiro no exterior. Respondi rapidamente que auferia apenas 90
escudos mensais, o que não me permitia cortar o cabelo num estabelecimento onde
qualquer comum cortava. O meu vencimento de trabalhador antes de entrar no
serviço militar era de três mil e cem escudos.
O Comandante de seu nome
Barros, Major Barros, não gostou da minha resposta e fez-me mais duas perguntas
que eu respondi prontamente, o que não o satisfez e de imediato me deu voz de
prisão até à data de embarque para a colónia de Moçambique, que estava prevista
para 18 de Junho de 1974, como efectivamente veio a acontecer.
Chamou o Tenente, comandante
da companhia de intendência e mandou-me deter num quarto da ala de sargentos do
quartel. Acompanhei calmamente o Tenente que foi à procura de um quarto
disponível para cumprir a ordem, pois apenas os soldados podiam ser detidos na
prisão.
A área de sargentos estava
esgotada, pois estavam muitos militares em trânsito para as áreas de combate
para onde tinham sido designados e foi essa a informação que o Tenente foi
transmitir ao Comandante.
Entretanto o Major Barros
foi verificando que o meu caso não era único e decidiu voltar atrás na decisão
de prisão e marcou uma revista para duas horas depois para a verificação do
atavio.
No Campo Grande junto à
Avenida do Brasil havia uma barbearia, perto da pequena capela que por lá ainda
existe e eu tive a honra de ser o primeiro a cortar o cabelo, pois o desenrolar
do acontecimento tinha sido observado pelos outros 160 colegas.
Duas horas depois, formou-se
a companhia, 4 pelotões, cada um com cerca de 40 jovens militares, um aspirante
a comandar cada pelotão e o Tenente da companhia de intendência.
Não apareceu o Comandante
Barros, mas sim o 2º Comandante, o Major Queiroz de Azevedo, que iniciou a
revista por uma ponta do primeiro pelotão, formados em U alargado e, quando
chegou ao terceiro pelotão, mesmo por trás da minha pessoa, mandou-me para a
frente da companhia, começou a fazer o elogio do atavio de um militar e por fim
pediu o meu número mecanográfico, para me dar um louvor, isto tudo debaixo de
um sorriso escondido de toda a companhia incluindo o Tenente que duas horas
antes tinha andado à procura de um quarto para me deter.
Este dia 22 de Abril de
1974, foi o meu dia, parece que os Deuses resolveram brincar comigo.
Três dias depois dava-se o
25 de Abril de 1974, estava em casa e em casa fiquei, pois tinha a mulher
grávida, esperávamos um filho para Maio, que os nervos fizeram antecipar para o
dia 26 de Abril de 1974, quando nasceu a minha filha.
Na segunda-feira dia 29 de
Abril de 1974 regressei ao quartel, o ambiente era outro, havia festa por todo
o lado e todos aqueles que tinham presenciado a minha cena na semana anterior
corriam para mim e diziam: “Seixas, tu é que devias ter cá estado para levares
o Barros preso para o Lumiar!”
O que tinha acontecido
naquela quinta-feira, 25 de Abril de 1974, no quartel do Campo Grande foi que o
Comandante, Major Barros, não aderiu ao Movimento das Forças Armadas e o 2º
Comandante, o Major Queiroz de Azevedo, que aderiu passou a comandar o quartel.
O Major Barros foi levado num “jeep” detido acompanhado por colegas meus e
preso no quartel da Escola Prática de Administração Militar (EPAM) no Lumiar.
Penso que o tal louvor nunca
chegou a sair no diário da unidade, o que eu sei e continuo hoje a dizer, que a
única pessoa que até agora me deu voz de prisão, três dias depois estava preso
e por isso e apenas isso, me considero o protagonista ausente. Que nunca mais,
uma pessoa por seu arbítrio decida deter um cidadão. João Seixas - Portugal
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