não és mais do que as
outras, mas és nossa,
e crescemos em ti. Nem se
imagina
que alguma vez uma outra
língua possa
pôr-te incolor, ou inodora,
insossa,
ser remédio brutal, mera
aspirina,
ou tirar-nos de vez de
alguma fossa,
ou dar-nos vida nova e
repentina.
Mas é o teu país que te
destroça,
o teu próprio país quer-te
esquecer
e a sua condição te
contamina
e no seu dia-a-dia te
assassina.
Mostras por ti o que lhe
vais fazer:
vai-se por cá mingando e
desistindo,
e desde ti nos deitas a
perder
e fazes com que fuja o teu
poder
enquanto o mundo vai de nós
fugindo:
ruiu a casa que és do nosso
ser
e este anda por isso
desavindo
connosco, no sentir e no
entender,
mas sem que a desavença nos
importe
nós já falamos nem sequer
fingindo
que só ruínas vamos
repetindo.
Talvez seja o processo ou o
desnorte
que mostra como é realidade
a relação da língua com a
morte,
o nó que faz com ela e que
entrecorte
a corrente da vida na
cidade.
Mais valia que fossem de
outra sorte
em cada um a força da
vontade
e tão filosofais melancolias
nessa escusada busca da
verdade,
e que a ti nos prendesse
melhor grade.
Bem que ao longo do tempo
ensurdecias,
nublando-se entre nós os
teus cristais,
e entre gentes remotas
descobrias
o que não eram notas
tropicais
mas coisas tuas que não
tinhas mais,
perdidas no enredar das
nossas vias
por desvairados, lúgubres
sinais,
mísera sorte, estranha
condição,
mas cá e lá do que eras tu
te esvais,
por ser combate de armas
desiguais.
Matam-te a casa, a escola, a
profissão,
a técnica, a ciência, a
propaganda,
o discurso político, a
paixão
de estranhas novidades, a
ciranda
de violência alvar que não
abranda
entre rádios, jornais,
televisão.
E toda a gente o diz, mesmo
essa que anda
por tal degradação tão mais
feliz
que o repete por luxo e não
comanda,
com o bafo de hienas dos
covis,
mais que uma vela vã nos
ventos panda
cheia do podre cheiro a que
tresanda.
Foste memória, música e
matriz
de um áspero combate:
apreender
e dominar o mundo e as mais
subtis
equações em que é igual a
xis
qualquer das dimensões do
conhecer,
dizer de amor e morte, e a
quem quis
e soube utilizar-te, do
viver,
do mais simples viver
quotidiano,
de ilusões e silêncios,
desengano,
sombras e luz, risadas e
prazer
e dor e sofrimento, e de ano
a ano,
passarem aves, ceifas,
estações,
o trabalho, o sossego, o
tempo insano
do sobressalto a vir a todo
o pano,
e bonanças também e tais
razões
que no mundo costumam
suceder
e deslumbram na só variedade
de seu modo, lugar e
qualidade,
e coisas certas,
inexactidões,
venturas, infortúnios,
cativeiros,
e paisagens e luas e
monções,
e os caminhos da terra a
percorrer,
e arados, atrelagens e
veleiros,
pedacinhos de conchas, verde
jade,
doces luminescências e
luzeiros,
que podias dizer e desdizer
no teu corpo de tempo e
liberdade.
Agora que és refugo e
cicatriz
esperança nenhuma hás-de
manter:
o teu próprio domínio foi
proscrito,
laje de lousa gasta em que
algum giz
se esborratou informe em
borrões vis.
De assim acontecer, ficou-te
o mito
de haver milhões que te
uivam triunfantes
na raiva e na oração, no
amor, no grito
de desespero, mas foi noutro
atrito
que tu partiste até as
próprias jantes
nos estradões da história:
estava escrito
que iam desconjuntar-te os
teus falantes
na terra em que nasceste, eu
acredito
que te fizeram avaria
grossa.
Não rodarás nas rotas como
dantes,
quer murmures, escrevas,
fales, cantes,
mas apesar de tudo ainda és
nossa,
e crescemos em ti. Nem
imaginas
que alguma vez uma outra
língua possa
pôr-te incolor, ou inodora,
insossa,
ser remédio brutal, vãs
aspirinas,
ou tirar-nos de vez de
alguma fossa,
ou dar-nos vidas novas
repentinas.
Enredada em vilezas, ódios,
troça,
no teu próprio país te
contaminas
e é dele essa miséria que te
roça.
Mas com o que te resta me
iluminas.
Graça
Moura - Portugal in "Antologia
dos Sessenta Anos"
Em
memória de Vasco Navarro Graça Moura, Porto 03.01.1942 – Lisboa 27.04.2014
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