Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

domingo, 20 de abril de 2014

Páscoa

 Vi Jesus Cristo Descer à Terra

 Num meio-dia de fim de primavera
 tive um sonho como uma fotografia.
 Vi Jesus Cristo descer à terra.
 Veio pela encosta de um monte
 tornado outra vez menino,
 a correr e a rolar-se pela erva
 e a arrancar flores para as deitar fora
 e a rir de modo a ouvir-se de longe.

 Tinha fugido do céu.
 era nosso demais para fingir
 de segunda pessoa da Trindade.
 No céu era tudo falso, tudo em desacordo
 com flores e árvores e pedras.
 No céu tinha que estar sempre sério
 e de vez em quando de se tornar outra vez homem
 e subir para a cruz, e estar sempre a morrer
 com uma coroa toda à roda de espinhos
 e os pés espetados por um prego com cabeça,
 e até com um trapo à roda da cintura
 como os pretos nas ilustrações.
 Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
 como as outras crianças.
 O seu pai era duas pessoas
 um velho chamado José, que era carpinteiro,
 e que não era pai dele;
 E o outro pai era uma pomba estúpida,
 a única pomba feia do mundo
 porque não era do mundo nem era pomba.
 E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
 Não era mulher: era uma mala
 em que ele tinha vindo do céu.
 E queriam que ele, que só nascera da mãe,
 e nunca tivera pai para amar com respeito,
 pregasse a bondade e a justiça!

 Um dia que Deus estava a dormir
 e o Espírito Santo andava a voar,
 ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
 Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha
 fugido.
 Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
 Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
 e deixou-o pregado na cruz que há no céu
 e serve de modelo às outras.
 Depois fugiu para o sol
 e desceu pelo primeiro raio que apanhou.
 Hoje vive na minha aldeia comigo.
 É uma criança bonita de riso e natural.
 Limpa o nariz ao braço direito,
 chapinha nas poças de água,
 colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
 Atira pedras aos burros,
 rouba a fruta dos pomares
 e foge a chorar e a gritar dos cães.
 E, porque sabe que elas não gostam
 e que toda a gente acha graça,
 corre atrás das raparigas pelas estradas
 que vão em ranchos pelas estradas
 com as bilhas às cabeças
 e levanta-lhes as saias.

 A mim ensinou-me tudo.
 Ensinou-me a olhar para as cousas.
 Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
 Mostra-me como as pedras são engraçadas
 quando a gente as tem na mão
 e olha devagar para elas.

 Diz-me muito mal de Deus.
 Diz que ele é um velho estúpido e doente,
 sempre a escarrar no chão
 E a dizer indecências.
 A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
 E o Espírito Santo coça-se com o bico
 e empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
 Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
 Diz-me que Deus não percebe nada
 das coisas que criou —
"Se é que ele as criou, do que duvido" —
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
 mas os seres não cantam nada.
 Se cantassem seriam cantores.
 Os seres existem e mais nada,
 e por isso se chamam seres."
 E depois, cansados de dizer mal de Deus,
 o Menino Jesus adormece nos meus braços
 e eu levo-o ao colo para casa.

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 Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
 Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
 Ele é o humano que é natural,
 ele é o divino que sorri e que brinca.
 E por isso é que eu sei com toda a certeza
 que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

 E a criança tão humana que é divina
 é esta minha quotidiana vida de poeta,
 e é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta
 sempre,
 e que o meu mínimo olhar
 me enche de sensação,
 e o mais pequeno som, seja do que for,
 parece falar comigo.

 A Criança Nova que habita onde vivo
 dá-me uma mão a mim
 e a outra a tudo que existe
 e assim vamos os três pelo caminho que houver,
 saltando e cantando e rindo
 e gozando o nosso segredo comum
 que é o de saber por toda a parte
 que não há mistério no mundo
 e que tudo vale a pena.

 A Criança Eterna acompanha-me sempre.
 A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
 O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
 são as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
 Damo-nos tão bem um com o outro
 na companhia de tudo
 que nunca pensamos um no outro,
 mas vivemos juntos e dois
 com um acordo íntimo
 como a mão direita e a esquerda.

 Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
 no degrau da porta de casa,
 graves como convém a um deus e a um poeta,
 e como se cada pedra
 fosse todo um universo
 e fosse por isso um grande perigo para ela
 deixá-la cair no chão.

 Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
 e ele sorri, porque tudo é incrível.
 Ri dos reis e dos que não são reis,
 e tem pena de ouvir falar das guerras,
 e dos comércios, e dos navios
 que ficam fumo no ar dos altos-mares.
 Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
 que uma flor tem ao florescer
 e que anda com a luz do sol
 a variar os montes e os vales,
 e a fazer doer nos olhos os muros caiados.

 Depois ele adormece e eu deito-o.
 Levo-o ao colo para dentro de casa
 e deito-o, despindo-o lentamente
 e como seguindo um ritual muito limpo
 e todo materno até ele estar nu.
 Ele dorme dentro da minha alma
 e às vezes acorda de noite
 e brinca com os meus sonhos.
 Vira uns de pernas para o ar,
 põe uns em cima dos outros
 e bate as palmas sozinho
 sorrindo para o meu sono.

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 Quando eu morrer, filhinho,
 seja eu a criança, o mais pequeno.
 Pega-me tu ao colo
 e leva-me para dentro da tua casa.
 Despe o meu ser cansado e humano
 e deita-me na tua cama.
 E conta-me histórias, caso eu acorde,
 para eu tornar a adormecer.
 E dá-me sonhos teus para eu brincar
 até que nasça qualquer dia
 que tu sabes qual é.

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 Esta é a história do meu Menino Jesus.
 Por que razão que se perceba
 não há de ser ela mais verdadeira
 que tudo quanto os filósofos pensam
 e tudo quanto as religiões ensinam?

Fernando Pessoa - Portugal

in "O Guardador de Rebanhos - Poema VIII" com o heterónimo Alberto Caeiro

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