Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

quarta-feira, 4 de abril de 2018

Galiza - Microlinguismos num país de psicopatas

Não tenho muita ideia dos quadros teóricos que descrevem ou tentam explicar os fenómenos sociolinguísticos, mas como bom galego, tenho bastantes intuições que costumam acordar e emergir quando vejo ou ouço algumas cousas que acontecem ao meu redor.
Há uns dias o cidadão Juan Carlos foi nomeado Embaixador de honra da Rota Jacobea em Santiago de Compostela. O bourbon fez parte do seu discurso naquela língua que aprendeu de cativo quando morava em Estoril. Os diários galegos não duvidaram em categorizar como galegoessa parte do discurso. La Voz de Galicia especificou que o ex-monarca “habló en castellano y en gallego, este último con un marcado acento portugués, no en vano allí pasó muchos años de su infancia”. O Faro de Vigo também confirmou que aquilo que falava “el rey emérito” era “gallego”.
Afirmar que algo é português ou galego depende de vários fatores, nomeadamente: quem é o emissor, os conhecimentos do recetor sobre o emissor ou o lugar em que se realiza a emissão da mensagem. Vejamos alguns exemplos. Se o discurso do cidadão Juan Carlos fosse em Lisboa, ninguém duvidaria em afirmar que está a falar português. No entanto, quando o discurso é em Santiago de Compostela, então a mesma pronúncia e o mesmo léxico transforma-se em galego. Suponhamos agora que quem faz esse discurso sou eu frente à minha família. Eles diriam, sem duvidar, que estou a falar português. No obstante, se falo desse mesmo jeito diante de portugueses que me conhecem e sabem que sou galego, é provável que pensem que isso que escutam é galego (ou portunhol). Se não me conhecem e não sabem que sou galego, diriam que estou a tentar falar português. A primeira vista, pode parecer que somos um feixe de esquizoides ou psicopatas da língua. Mas, em realidade, trata-se simplesmente de processos de categorização dependentes de critérios extra-linguísticos. As categorias que utilizamos para balizar o continuum linguístico e que nos permitem separar o que é galego do que é português são dependentes de parâmetros externos à própria língua, nomeadamente de pré-conceitos sociais com alicerces na comunidade linguística. É difícil encontrar um exemplo tão diáfano e transparente da nossa realidade linguística, profundamente difusa e subjectiva.

Uma outra curiosidade que queria compartilhar é a seguinte. Estava a ver um programa político de TV3, aliás a única televisão que as minhas vísceras aguentam, quando observo como a pessoa entrevistada, uma letrada ou advogada, para de falar, pensa durante um segundo e, finalmente, pergunta como se diz “auto judicial” em catalão. A entrevistadora responde “interlocutoria” e a entrevistada retoma o fio do seu discurso utilizando o termo “interlocutoria”, que vai repetir várias vezes já com normalidade. A pessoa que colocou esta questão não ousou utilizar a primeira expressão pois sabia que era um castelhanismo. Este simples gesto permite conhecer a situação sociolinguítica do catalão tanto ao respeito do castelhano como do galego. Primeiro, permite saber que o catalão não é uma língua completamente normalizada. É impossível pensar que uma jurista castelhana não conheça um termo técnico tão comum como o de “auto” na sua língua. Isto é impensável. No entanto, na Catalunha, os profissionais da jurisprudência catalão-falantes podem não conhecer esse termo em catalão porque vivem a sua profissão em castelhano total ou parcialmente. Vejamos agora as diferenças ao respeito do galego. Esta pessoa que perguntou polo termo em catalão não era linguista nem, bem provavelmente, tinha uma consciência linguística muito desenvolvida. É dizer, era uma pessoa normal e não um esquizoide linguístico, como podo ser eu, completamente obcecado com o tema da língua, e que tenho mesmo proibido às crianças falar em castelhano na casa. Em poucas semanas tenho visto cenas semelhantes à relatada acima em diferentes meios catalãs. É curioso, no entanto, observar que nenhuma pessoa galega, mesmo as mais ativistas da língua, ousa deter-se no meio duma conversa formal para perguntar sobre uma palavra que não conhece. O comportamento é sempre o mesmo: se não sabes, usa o castelhano e não te detenhas. Pois bem, como é possível que uma pessoa normal na Catalunha tenha um comportamento linguístico mais evoluído e responsável em relação ao catalão do que um obcecado polo galego como eu? A resposta é simples: a situação sociolinguística da língua catalã tem muita melhor saúde do que a galega. Não é nada novo que não soubéssemos, mas é difícil não ficarmos chocados quando esse feito aparentemente banal, que eu chamo de microlinguismo, é percebido de um jeito tão cruel, explícito e descarnado.

A solução a muitos dos nossos problemas é relativamente simples. Proponho que os galegos e galegas passemos um mês em Estoril para aprender a descastelhanizar a nossa fala e só nos informemos através de TV3 durante duas semanas para dar-nos conta que estamos sendo governados por um feixe de políticos, juízes e jornalistas psicopatas, sem empatia, que narcotizam o resto da população. Paulo Gamalho – Galiza in “Portal Galego da Língua”


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Paulo Gamalho - nasceu em Freixeiro (Vigo) em 1969. É licenciado em Filologia Hispânica pola USC e Doutor em Linguística pola Université Blaise Pascal, França. É docente-investigador especializado em linguística computacional.

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