Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

De vira-latas e de madrugadas criativas

                                             I
O autor destas linhas não sente acanhamento por usar uma expressão popular, talvez “batida”, mas de grande oportunidade: sentimos a “alma lavada” diante do texto do santista Adelto Gonçalves, tal a leveza com que conduz seus ensaios literários e suas obras de ficção. Sem que a expressão “leveza” signifique superficialidade.


Já conhecia o autor de textos acadêmicos, abordando em biografia o poeta Bocage (“o perfil perdido”), o nosso luminoso Tomás Antônio Gonzaga e o sombrio Pessoa, obras que lhe valeram prêmios e o reconhecimento da comunidade voltada para a escrita. Nas incursões ficcionais tive, há alguns anos, a oportunidade de me surpreender com a emocionante narrativa de Barcelona Brasileira, não por acaso ambientada no que parece ser o palco predileto de Adelto: o porto da cidade de Santos.

Naquele romance (que julguei fosse o primeiro), percebi o “buril” de retratista social, o uso do suspense de forma muito pessoal, narrando as arriscadas aventuras dos sonhadores anarquistas: “...(o Anarquismo é) só um código de conduta moral...” nos dirá o “vira-latas” Marambaia, à espera de uma sociedade ideal, responsável pelo coletivo sem o encilhamento de mandantes. Em Barcelona Brasileira já se revelara no autor o domínio da linguagem para obter tensões necessárias à narrativa.

Surpresa terá o leitor no posfácio do editor deste Os Vira-latas da Madrugada, onde é revelado que a primeira versão foi escrita por Adelto (nascido em 1951) quando tinha 18-19 anos e o romance retomado no final dos anos de 1970 para ganhar Menção Honrosa no Prêmio Nacional José Lins do Rego. Uma obra, pois, da juventude do autor e que, sem perder o esperado frescor, revela extraordinária maturidade, capturando o leitor desde as primeiras linhas.

                                             II
Fica bem claro que Adelto Gonçalves elegeu o Paquetá – um bairro no porto de Santos; frequentado e povoado pela “escória” de desencantados – como o cenário sombrio para as histórias que formam o tecido trágico de seu romance, confessando ter guardado no olhar de juventude muito dos seus largos lamacentos e escusas ruelas. Os personagens que neles transitam são esculpidos de tal forma que a um só tempo, tornam-se incômodos e fascinantes, seus “desenlaces” violentos ou torturantes, acumpliciam o leitor ou o colocam em cheque com o sentimento de repulsa ou de ternura diante de seus destinos.

O quase terno encontro de Pingola e Sula, as esculturas de Pai João de Angola e seu jovem seguidor Louva-Deus, o atormentado Plínio, a violência da luta entre Grego e o astucioso Batatinha, a inevitável “traição” de Quirino, personagem que tangencia as tragédias gregas, magnetizam as páginas do romance. A entrega de Marambaia a uma causa (para ele) maior, e o estranho ritual de Irene, a streaper, à luz do palco, trazem ao leitor uma inquietação que mostra ser a escrita de Adelto arquitetada para ir além do “efeito literário”. Pungente sem ser lacrimosa.

                                             III
O ambiente do porto, do bas fond, produz inevitável aproximação às sagas do baiano Jorge Amado em seu Capitães de Areia, Jubiabá e outras epopeias da denúncia social. No entanto, sem questionar o justo pódio de Amado, Adelto Gonçalves revela uma saudável descrença nas soluções simplistas de uma “revolução”, mostrando que a consciência crítica é algo que deve amadurecer dentro de cada um no processo social. A nosso ver, uma forma menos idealizada e mais “terra a terra” de um “caminho possível” para os brasileiros. Personagens quase românticos, dentro do painel manchado pela crueldade, Pingola e Sula – que traz no ventre uma nova vida – partem para um horizonte que lhes caberá construir. Uma esperançosa mensagem.

Por fazer incursões no desenho e na gravura, o resenhista justifica-se: se a aproximação literária com Jorge Amado é admitida, desde as primeiras linhas os quadros descritos com o pulso firme de Adelto lembram o clima das xilogravuras de Goeldi. Mas não há vácuo. Com extraordinária propriedade, as talentosas ilustrações de Ênio Squeff valorizam as páginas do romance. 

No dizer do prefaciador Marcos Faerman (1943-1999), o jovem dissidente Adelto ao lançar seu romance nos anos de 1970, não agradaria aos mandantes da ocasião (o que levou à exclusão do prefácio da edição de 1981, que premiava o autor). Pior para eles que, parece, merecem hoje um merecido desprezo após a passagem sinistra na vida brasileira.

Os Vira-latas da Madrugada veio para ficar em importante lugar na literatura nacional. 

                                                        IV
Adelto Gonçalves, doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de inúmeras obras de natureza acadêmica. Também jornalista, é mestre na área de Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana pela USP e ex-professor titular da Universidade Santa Cecília (Unisanta), no curso de Jornalismo, e da Universidade Paulista (Unip), no curso de Direito, ambas em Santos-SP. É também professor de Literaturas Portuguesa, Brasileira e Africanas de Expressão Portuguesa. Acaba de lançar também Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015). Hélio Brasil - Brasil

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Helio Brasil, carioca de São Cristóvão, formado em 1955 pela Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil, foi professor nas universidades Santa Úrsula, Federal do Rio de Janeiro e Federal Fluminense (UFF).  Contista e ficcionista, publicou O Anjo de bronze e outros contos (Oficina do Livro,1995);); São Cristóvão, memória e esperança (Editora Relume-Dumará, 2004); A última adolescência (Bom Texto, 2004); e Pentagrama acidental (Editora Ponteio, 2014),entre outros.


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Os Vira-latas da Madrugada, de Adelto Gonçalves, com prefácio de Marcos Faerman, apresentação de Ademir Demarchi, posfácio de Maria Angélica Guimarães Lopes e ilustrações e capa de Enio Squeff. Taubaté-SP: Associação Cultural Letra Selvagem, 216 págs., 2015, R$  35,00. E-mail: letraselvagem@letraselvagem.com.br   Site: www.letraselvagem.com.br

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