O trabalho é diferente da
acção humana.
A acção humana é tudo o que
vai pela mão e além da mão. É tudo o que o cérebro pode criar, imaginar e
depois realizar. É o sonho feito prática. É pensar e depois criar.
O trabalho também pode ser
um projecto.
Mas o trabalho é sobretudo e
para quase todos para comer.
Foi o trabalho para caçar,
para colher. Para inventar pedras pontiagudas. Setas. Mas algumas marcadas por
desenhos que vejo na minha cabeça. Eu sou criador.
Aprender a trabalhar a
terra. Sol a sol. Até à exaustão. Produzir para trocar. O meu trigo, o teu
linho. Produzir para vender. Para pagar a terra, que já não é a minha. Ser
escravo. Até à exaustão. O chicote.
Até que vendo o meu
trabalho.
Não trabalho para os meus
alimentos.
Trabalho para vender o meu trabalho.
Para sobreviver. Trabalho até à exaustão. Pagam-me. O patrão sabe que se eu
comer posso trabalhar. Comer alguma coisa. O mínimo. Se for mais velho já posso
morrer. A minha mulher também tem de comer. O mínimo. E as crianças, as que
vivem, têm que comer. O mínimo. E cedo vão começar a trabalhar.
Flora Tristan correu a
França e descreveu-os. Corriam os anos 30 e 40 do século XIX. Viu-os nas
fábricas da seda de Lyon. Foi a casa deles. Viu as camisas lavadas de um dia
para o outro. Esfiapadas. Les canuts, trabalhadores da seda, cantou o Ives
Montand. Flora viu-os nos altos fornos em Londres. E as crianças das ruas
escuras. “Não será o raquitismo uma doença hereditária? “Diziam alguns sábios.
Foi a classe operária inglesa que lutou pelo weekend. Quando já havia muitas
máquinas. É uma regalia, dizem os sábios.
Um século de revoltas,
greves, lutas, utopias. Um século a sonhar com o futuro. Consigo encurtar as
horas do dia. Mas nos campos as horas são as horas do dia. De sol a sol. Pão e
azeitonas. E vinho. O vinho dá-me força e alegria. Suporto. Canto. Se fazes
greve és despedido no “balão”.
Mais quase outro século a
sonhar com o futuro. Trabalhar só 8 horas. Tirar meio fim-de-semana. Tirar o
fim-de-semana. Muitas lutas. Muitos mortos. Vale a pena? Vale a pena. Sonhar
com o futuro. Amanhã “o sol brilhará
para todos nós”.
O sol não brilhou muito.
Brilhou um pouco. Houve liberdade e greves e lutas. Houve dignidade. Sou um
homem, trabalho com as mãos. Sou uma mulher, trabalho com as mãos. Sou eu.
Igual a ti. A minha casta? Trago-a escondida no fundo da minha memória.
E falo da minha memória:
passávamos fome, não tínhamos sapatos. Era uma vergonha. Muito pequena fui para
a costura. Fui para criada. Apanhava. Fui aprendiz de sapateiro. Fui para a
fábrica.
Agora este fundo da memória
vem ao de cima. Com raiva.
São 700.000, 1 milhão de
desempregados. 300.000 vivem de nada. Viverão de nada. Para eles já não vai
haver amanhã. Nem esperança. Nem ilusão. 2 milhões pensam todos os dias como é
que hão-de pagar a casa. Como é que hão-de comer. E o leite para os filhos. Eu
vendo o trabalho pelo preço que quiserem. Estou à venda. Aqui. Sou simpático.
Faço qualquer coisa. Tenho jeito para tudo. Trabalho as horas que quiser. Logo
me arranjo. Sou mulher, posso pôr as crianças na creche, logo de manhãzinha.
Tomo o transporte, mesmo apertado. Levo lancheira. Saio tarde. Vou buscar as
crianças. Dou-lhes banho. Comem. Oxalá durmam cedo. Faço a comida. Adormeço em
frente da televisão. Durmo pouco. É levantar. Trabalhar. Trabalhar. Até à
exaustão.
Um dia vamos trabalhar só 4
horas. Porque as máquinas já trabalham por nós. Não haverá desemprego. Teremos
tempo para as crianças, para namorar, para criar, para jogar.
Um dia. Depois da luta que
há-de vir. Isabel do Carmo – Portugal in “
Revista Rubra”
(Este texto foi escrito e
lido por Isabel do Carmo, integrado na performance sobre o esforço realizada
pelo grupo Visões Úteis, no Festival Serralves em Festa, a 24 de Maio de 2014,
no Porto. Integraram ainda esta performance Conceição Martins, operária da
cortiça, Alexandre Viegas, operário da construção civil, António Fonseca,
actor, o Grupo de Etnografia e Folclore da Universidade do Porto, João
Palinhos, Kendoca, Ester Alves, maratonista e Inês de Carvalho, artista
visual.)
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