Em 1759, durante o cerco ao Colégio de Jesus, em Coimbra,
um padre escondeu cartas e manuscritos. Documentos foram encontrados durante as
obras de restauro na Sé Nova, em 2016.
Os embrulhos
descobertos num altar da Sé Nova de Coimbra durante os trabalhos de restauro
realizados em 2016 contêm documentos que podem acrescentar novos capítulos à
história dos Jesuítas em Portugal. No interior do altar da Coroação de Nossa
Senhora, do lado esquerdo do monumento, foram encontrados dois códices, um
conjunto de cartas e uma bolsa com embrulhos de pano identificados com o nome
do António Vasconcelos, o padre que os escondeu.
As cartas, algumas da
autoria de Inácio de Loyola, Francisco Xavier ou João de Polanco, são “dos
tempos fundacionais” da Companhia de Jesus, conta Margarida Miranda,
investigadora do Centro de Estudos Clássicos da Universidade de Coimbra que, em
conjunto com Carlota Miranda Urbano, está a analisar os documentos.
Nos embrulhos
constavam documentos que vão desde 1542, pouco depois da criação da Companhia
de Jesus, até 1759, na véspera da sua expulsão de Portugal, num ano em que o
Colégio de Jesus, adjacente ao edifício da Sé Nova, foi cercado. Os documentos
vêm trazer mais informações sobre este período de perseguição pombalina, uma
vez que os mais recentes datam de Agosto e Setembro de 1759, quando a ordem de
expulsão foi decretada a 3 de Setembro.
O actual pároco da Sé
Nova, Sertório Martins, conta ao Público que foi uma descoberta inesperada, uma
vez que já tinham sido restaurados outros altares e retábulos sem que tivesse
sido feito qualquer achado. Mas há cerca de um ano, “ao introduzir o aspirador
naquela coluna para fazer a limpeza, sentia-se um obstáculo”.
O “obstáculo” eram
documentos históricos, alguns com 400 anos e entre os quais estavam também
manuscritos da obra Clavis Prophetarum, do Padre António Vieira,
“em excelente estado de conservação”, diz Margarida Miranda.
António Vasconcelos
escondeu ainda um códice ligado ao padre Francisco Soares Lusitano, com o nome Controvérsia
Filosófica e Religiosa. Mas o conteúdo dos escritos não se resume a
questões teológicas ou de fé. No códice exploram-se questões como o poder do
papa, votos e juramentos, justiça e direito (“a validade de contratos
celebrados no calor da fúria”), sobre o aborto e homicídio ou sobre matrimónio
(“se os surdos-mudos de nascença podem contrair matrimónio válido”). “Mostra
que a universidade era um espaço de debate”, afirma Margarida Miranda.
Entre os documentos
estavam também manuscritos e epístolas do próprio António Vasconcelos, sobre o
qual ainda pouco se sabe. Há correspondência pessoal e alegações de um processo
matrimonial em que tomou a defesa de uma familiar. Mas o jesuíta deixou também
no altar “um caderno de valor precioso para a história das circunstâncias
sociais e políticas do reino”, refere Margarida Miranda. Cousas
notáveis sucedidas em Portugal desde o ano 1750 até ao ano… é o título
de crónicas do quotidiano escritas pelo jesuíta. As reticências são indicador
de que o texto permanecia inacabado quando foi escondido à pressa, antes de os
Jesuítas serem retirados do colégio e exilados.
O acervo ainda está em
processo de inventariação. “As cartas ainda não foram todas examinadas”, pelo
que ainda não é possível saber o que já foi publicado e o que nunca foi,
esclarece a investigadora. Para que a correspondência circulasse efectivamente,
explica, as cartas eram escritas em diversas cópias. As investigadoras têm
“boas razões”, no entanto, para considerar que “pelo menos uma das cartas
é autógrafa”: a missiva de Inácio de Loyola ao mestre Simão Rodrigues datada de
1545, em que o fundador da companhia concede ao responsável jesuíta português
autorização para ir a Roma.
Quem foi António Vasconcelos?
É através do trabalho
de António Trigueiros, investigador na Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa, que ainda é possível seguir o rasto de António Vasconcelos, um nome que
até agora “estava no anonimato”. António Trigueiros, que escreveu uma tese de
doutoramento sobre os jesuítas portugueses no exílio no período pombalino e
pós-pombalino, tem uma base de dados com os nomes dos 1104 expatriados e,
depois do contacto das investigadoras de Coimbra, encontrou o padre entre os
seus registos.
Nascido em 1727 num lugar que hoje pertence à
freguesia do Juncal, concelho de Porto de Mós, António Vasconcelos estava na
Companhia de Jesus desde 1742 e tinha 32 quando foi exilado para Itália. O
primeiro registo nesse país é de 1760, no Colégio de Sezze, a Sul da capital.
Morreu em Licenza, também na província de Roma, em 1801, onde estaria desde
1773, quando o Papa Clemente XVI decretou a extinção da Ordem dos Jesuítas.
Mais informação sobre o religioso português
poderá ser encontrada à medida que a investigação for avançando, através da
análise da sua correspondência, guardada em arquivos entre Lisboa e Roma.
Os documentos escondidos por António
Vasconcelos em 1759 deverão começar a ser digitalizados em Setembro e ficarão depois
disponíveis no portal Cesareia,
o catálogo colectivo das bibliotecas eclesiais portuguesas. Para Margarida
Miranda, a descoberta destes documentos permite “contar a história não pela
pena dos vencedores, mas pela pena dos vencidos”. Camilo Soldado – Portugal in "Jornal Público"
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