I
Adelto
Gonçalves não é nenhum iniciante. É jornalista, escritor, doutor em Letras,
professor universitário e crítico literário, como consta de seu curriculum vitae, em feliz hora inserido
no final desta segunda edição de Os
vira-latas da madrugada, numa “Nota do Editor”, sob o título “Adelto
Gonçalves e sua obra” (p. 209-215). Entre
as dezenas de títulos por ele publicados – livros, capítulos de livros, artigos
dos mais diversos, resenhas sem conta –, Os
vira-latas da madrugada é a sua primeira ficção, embora seu livro de
estréia na literatura tenha sido a coletânea de contos Mariela morta (1977).
Os vira-latas da madrugada
conheceu uma trajetória movimentada. Aos dezenove anos de idade, Adelto
Gonçalves tinha o texto pronto. Reescrito entre 1977 e 78, isto é, quando
contava 26, 27 anos, o jovem autor candidatou-se ao Prêmio José Lins do Rego,
concurso de amplitude nacional, promovido pela reputada Livraria José Olympio
Editora, do Rio de Janeiro. Foi classificado com uma menção honrosa, o que lhe
valeu a publicação do romance em 1981. O livro constou em décimo lugar entre a
centena de obras alistadas pelo jornalista e professor Marcos Faerman para
estudantes de uma tradicional faculdade de Jornalismo e que obrigatoriamente
deveriam ser lidas.
O
prefácio, escrito por Marcos Faerman, foi censurado pela ditadura na época, não
constando nessa primeira edição, tendo sido no mesmo ano em parte divulgado
pela mídia independente como “trechos de um prefácio censurado, sobre tempos
nubulosos”, como podemos ler à página 214 da segunda edição, de 2015, da
editora LetraSelvagem, de Taubaté, São Paulo. Aí é finalmente publicado esse
primeiro prefácio por inteiro (p.7-10), além de um posfácio, de Maria Angélica
Guimarães Lopes (p. 205-208), texto publicado na Revista Iberoamericana, do Instituto Internacional de Literatura
Iberoamericana, da Universidade de Pittsburg, EUA, jan-jun.1985, nº 130-131, p.
392-394, e republicado nesta presente edição.
A
época em que os acontecimentos do romance decorrem não é difícil de ser
intuída: o Brasil do século XX. Como consta da “orelha” do livro: “rememorações
da época do tenentismo da Coluna Prestes” que “passam pela época Vargas e
chegam até o período pré-golpe de 1964”. E como o próprio narrador revela: “Eu
era muito pequeno, quando algumas destas histórias aconteceram” (p. 48).
II
A
temática e a condução da trama elegidas por Adelto Gonçalves caíram no
desagrado dos censores da ditadura militar brasileira e Os vira-latas da madrugada foi uma das obras por eles visadas. Daí,
inclusive, o mérito desta segunda edição, reabilitando e recuperando um romance
que constitui um libelo contra a exclusão social, uma crítica ao desrespeito
pela liberdade e uma denúncia do abandono em que vivia a população humilde da
região portuária da cidade de Santos – e não só.
Os vira-latas da madrugada
é o décimo terceiro volume da coleção “Gente Pobre” da editora LetraSelvagem. O
feliz título é uma metáfora que vem ampliar e enriquecer a já extensa lista de
designações para a “gente pobre”, aqueles que alicerçam a base da pirâmide
social, os menos ou nada bafejados pela sorte, a “massa marginal dos esquecidos”,
os subalternos, os “pobres diabos” (p. 45), aqueles que o filósofo Enrique
Dussel chamou de seres sobrantes, descartados pela ética excludente e
utilitarista do desenvolvimento capitalista.
Este
livro é o retrato de uma sociedade excluída, vegetando à margem das funções
relevantes do conjunto social de uma das cidades mais importantes do país.
Apraz-me lembrar que o pensador e teórico alemão Niklas Luhmann, ao visitar o
Brasil, viu-se confrontado com a marginalidade e desumanidade da vida nas
favelas dos grandes centros urbanos. O que contribuiu para ele repensar a sua
abstrata concepção estruturalista dos sistemas sociais (Soziologische Systemtheorie).
Verificando
que grandes contingentes da população que ocupa as periferias ou centros
decadentes – indivíduos reais e em toda a sua complexidade de seres humanos –
não pareciam ter nenhuma relevância funcional nem nenhum retorno dentro do
sistema social em seu conjunto, embora a ele pertencendo e nele vivendo, mesmo
que de forma indigna e sem direitos próprios (cf. Niklas Luhmann, no primeiro
volume da sua Die Gesellschaft der
Gesellschaft, 1997, p. 618-634; publicado no México, na tradução de Xavier
Torres Nafarrate, 2007). Luhmann, a partir dessa vivência, ampliou com
elementos concretos, “reais”, sua reflexão sociológica e teórica do que é
considerado marginal, precisando os conceitos de inclusão e exclusão como
instrumentos de análise estrutural do sistema social.
Uma
abordagem de qualquer aspecto da pobreza merece passar também pelo crivo da
reflexão sobre o colonialismo e suas consequências, levando em conta a
afirmação de Homi Bhabha que a pós-colonialidade “é um salutar lembrete das
relações ‘neocoloniais’ remanescentes no interior da ‘nova’ ordem mundial e da
divisão de trabalho multinacional” (Bhabha, O
local da cultura, 1998, p. 26). Adelto Gonçalves procede em seu romance à
“autenticação de histórias de exploração”, para de novo citar Bhabha,
evidenciando ao longo dos capítulos como suas personagens desenvolvem as mais
diversas “estratégias de resistência” (ib.).
Não
é possível deixar de ter em conta os muitos e diferentes processos e estágios
de dependência e de marginalização dos países ex-colonizados, dos quais o
Brasil faz parte e, nesse contexto, ressaltar as assimetrias existentes, por
exemplo, entre a cidade e o campo, entre os centros urbanos e as periferias,
entre os subalternos (Gayatri Spivac) e os donos do poder (Raymundo Faoro).
O
conceito de subalterno foi divulgado, de forma polêmica, por Gayatri Spivak,
teórica da literatura indiana, docente nos Estados Unidos. Em seus ensaios, ela
insiste em uma revisão crítica da representação do “terceiro mundo”, pondo em
relevo, entre outras análises, a clara discrepância existente, nos países
ex-colonizados, entre as elites e a massa subalterna. “Subalterno” é o marginalizado,
o silenciado, o ignorado, o sem voz, o sem direitos. Seu provocante ensaio “Can
the Subaltern Speak?” (1988), onde Gayatri Spivak põe em dúvida a possibilidade
de que essa situação de marginalidade e de afasia possa ser de fato
ultrapassada, continua atual.
III
O
narrador onisciente de Os vira-latas da
madrugada esclarece não se tratar de uma réplica do histórico: “Longe
disso”. Nem teve “intenção de transformar esses personagens em figuras épicas”.
Desejou apenas “recolher histórias e inventar outras”. Histórias “do tempo em
que os trabalhadores do cais ainda saíam aos gritos pelas ruas e os malandros,
os moleques e as putas faziam do lugar um refúgio em sua luta pela
sobrevivência” (p. 45). O autor adota uma posição compartilhante e solidária,
mas ao mesmo tempo crítica e denunciadora, expondo sem condescendência, na
representação literária, a realidade desse submundo, deixando claro o lugar de
onde fala: “Aqui onde os moleques, vira-latas da madrugada, percorrem a noite
inteira em busca de um otário, roubam os bêbados caídos nas calçadas, dormem
com os pederastas e vivem de pequenos furtos; onde a piranha malandrinha ensaia
um abraço casual na rua ao comerciário despreocupado e lhe leva a carteira
[...]” (p. 47/48).
A
cidade de Santos, ou melhor, a região portuária de Santos, o “beira-cais”,
funciona em Os vira-latas da madrugada
como uma metonímia para a geral situação de carência das periferias das grandes
cidades do país. É importante levar em consideração o lugar de fala do narrador
onisciente que desenha um painel suburbano em forma de mosaico, em que cada
pedra tem seu colorido particular e sua forma específica, fragmentos de vidas
não mais anônimas, pois recebem nome, voz e individualidade graças à escrita de
Adelto Gonçalves.
Não
se trata apenas de um rótulo para uma lista de estereótipos: o vagabundo, a
prostituta, o revolucionário, o biscateiro, o desempregado. Trata-se de
personagens vivas que vão povoar o romance, uma imensa galeria, numa
pluralidade de existências e de estratégias de sobrevivência, nomeadas e
cuidadosamente descritas, vidas e rostos quase todos já esboçados desde o
primeiro capítulo: o moleque Pingola; Marambaia, o velho marítimo e foguista
aposentado; seu amigo Quirino, “embarcadiço” e mulherengo, ambos politizados e
inconformados; o vagabundo Plínio; as prostitutas Naná, Rosa, Sula; a bailarina
Irene; Madame Sílvia, dona do bordel mais importante do local; o velho
entalhador João de Angola; Teodorico, o louco, entre muitos outros.
IV
O
autor maneja com habilidade a narração das diferentes histórias de vida,
utilizando uma dicção áspera e sem peias, apropriada à crueza e à fealdade do
triste ambiente em que essas vozes se alternam, exibindo a dureza da realidade
que as cerca. Ao longo dos capítulos, cada vez uma personagem tem espaço
bastante para que sua história individual se apresente, mas é digno de nota a
perícia do romancista ao utilizar com frequência o recurso das narrativas
encaixadas, recurso estilístico conhecido como mise en abîme, procedimento que consiste justamente em incrustar
uma história dentro de uma outra, não permitindo aos leitores perderem-se no
emaranhado daquelas vidas entrecruzadas, unidas pelo denominador comum da
exclusão.
Michael
Pollak, sociólogo austríaco radicado na França, criou a expressão “memórias
subterrâneas” (POLLAK, Memória e
identidade social, 1989) para definir as memórias que são abafadas pela
memória oficial nacional, entendendo como “subterrâneas” as lembranças dos
despossuídos e das minorias. O analista parte da observação das memórias
oficiais e do reconhecimento da violência que advém dessa escolha unilateral,
em detrimento de outras recordações que são postas em escanteio, mas nem por
isso estão mortas, e sim apenas imersas em “subterrânea” invisibilidade.
Um
dos principais méritos de Os vira-latas
da madrugada é justamente esse trabalho de reconstrução de individualidades
ignoradas ou silenciadas. Pois há um interrelacionamento significativo entre o
silenciado, a memória e o esquecimento: através do instrumento do
silenciamento, emudece-se a memória do subalterno, procura-se fazer esquecer a
narração do status quo vergonhoso
ligado à subserviência ou à exclusão aviltante. O silêncio boicota movimentos
que tentam recuperar memórias sufocadas, incômodas, provocando o encobrimento
do Outro, como afirmou Enrique Dussel. Muitas formas de dizer o dito mascaram o
não dito, motivam distorções, estereótipos, camuflam os conflitos entre os
senhores da “Casa Grande” e os que lutam pela sua visibilidade social.
O
posicionamento do autor de Os vira-latas
da madrugada não é inocente. Adelto Gonçalves aponta sem subterfúgios a
procedência dos problemas que estorvam a consolidação de uma sociedade que se
quer equitativa e equilibrada, problemas (e esperanças) que prosseguem
presentes na atualidade. Dá às suas personagens espaço e direito de sonharem.
Serve-se do referencial histórico de um largo período da história do Brasil,
por ele mesmo vivenciado desde a infância até a idade adulta, para acusar o
abandono das periferias, a sorte dos despossuídos, dos seres sobrantes. Adelto
Gonçalves traça, de forma instigante e literariamente bem sucedida, a
representação simbólica de uma específica comunidade de destino, de história e
de luta. No momento político que o país atravessava, um livro como Os vira-latas da madrugada representou e
continua representando uma relevante contribuição para a conservação da memória
de fatos ocorridos.
Transparece
pelo tecido literário de Os vira-latas da
madrugada a onipresença da sofrida história de opressão interligada a
práticas de resistência, nem sempre bem sucedidas. A solidariedade do autor
para com os subalternos é convincente, assim como sua empatia pelos
marginalizados ou socialmente desfavorecidos. A repulsa ao status quo vigente é conduzida com elegância, resultando em
denúncia contra os abusos do poder e dos desacertos da então situação política
do país. É arrojada e corajosa a exposição, nos capítulos finais, do
apodrecimento dos frutos abortados de um legítimo sonho.
É
essa postura e essa coragem que levam um autor já na sua juventude a uma tomada
de posição concretizada no livro que escreveu mal saído da adolescência. Vale
lembrar as palavras finais de Os
vira-latas da madrugada:
“As
vozes que me trouxeram até aqui já não as ouço mais. Estão mortas, estão
assassinadas. Este irregular relato é só uma homenagem a essas vozes que se
calaram cansadas de testemunhar tanta ignorância e violência em nome de valores
morais que a ambição já desmoralizou há muito tempo” (p. 203). Moema Augel - Brasil
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Os Vira-latas da Madrugada, de Adelto Gonçalves,
com prefácio de Marcos Faerman, apresentação de Ademir Demarchi, posfácio de
Maria Angélica Guimarães Lopes e ilustrações e capa de Enio Squeff. Taubaté-SP:
Associação Cultural LetraSelvagem, 216 págs., 2015, R$ 35,00. E-mail: letraselvagem@letraselvagem.com.br Site: www.letraselvagem.com.br
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Moema Parente Augel é doutora em Literatura pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro. É professora da Universität Bielefeld,
Alemanha.
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