Cada vez que uma mulher é vítima de violência
doméstica ou qualquer outro tipo de violência de género, todas nós estamos em
perigo. Cada vez que as estruturas judiciais são benevolentes com os
agressores, todas nós deveríamos nos sentir desprotegidas. Cada vez que a
sociedade banaliza a violência que sofremos, não querendo identificar o
machismo dessas agressões, ficamos todas um pouco mais invisíveis e mais
vulneráveis. Perante tamanha injustiça, era numa só voz que nos deveríamos
levantar todas para combater a violência e a ignorância.
Não há eufemismo mais perigoso do que a
expressão “crime passional”. Dela se deduz que o agressor matou por amor, “um
sentimento nobre que às vezes leva à loucura”. Mas não é o amor que mata: é o
machismo. Ou então é uma noção machista de amor, colada a um sentimento de
posse. “Ela é minha. Se não for minha, não será de mais ninguém.” Não, ela não
é tua nem de ninguém. Não a possuis, não a controlas e em nenhuma circunstância
terás o direito de a maltratar. Nada justifica a agressão. Não há motivo que
nos comova, nem amor, nem ciúme, nem loucura.
Insistir na ideia de “crime passional”
leva-nos, portanto, a desviar o foco do verdadeiro problema, um problema
profundo que coloniza as nossas consciências, a nossa linguagem e os nossos
primeiros instintos quando nos deparamos com casos destes. Precisamos de nos
libertar desses preconceitos discutindo o que merece ser discutido. Debater a
psicologia do agressor não é mais importante do que condenar sem pudor a
violência que a vítima sofreu. Há questões mais importantes para se falar.
Falemos dos entraves que enfrenta uma mulher
agredida pelo seu companheiro, quando decide ir fazer uma denúncia a uma
esquadra da polícia, em Angola. Falemos da falta de apoio da família e dos
amigos. Falemos da dificuldade que têm essas mulheres para dar esse passo
difícil de denunciar o seu agressor, muitas vezes o pai dos filhos. Vamos falar
dos vizinhos inertes e em silêncio cúmplice, que em noites repetidas escutam as
discussões na casa ao lado, discussões que tantas vezes terminam em choro,
quando a violência verbal se transforma em violência física. Falemos das marcas
no rosto no dia seguinte, na vergonha e nas desculpas esfarrapadas.
Falemos sobre como a sociedade encobre essa
violência, aceita essa violência, desculpa essa violência. Falemos abertamente
sobre porque é que isso acontece. Falemos do namorado controlador, do namorado
ciumento que às vezes te aperta o braço com um pouco mais de força, que te
grita e te ameaça, que depois pede desculpas e promete que “nunca mais”.
Falemos da cultura popular: “entre marido e mulher não se mete a colher”. Vamos
falar do amor machista, do assédio, da violência verbal, da invisibilização
feminina.
Falemos de um mundo onde um homem que
disparou quatro vezes contra a mulher com quem estava casado recebe cinco anos
de prisão. Um mundo onde a mulher que matou para se defender de uma violação é
enforcada. Falemos do caso dos Combatentes reflectindo criticamente sobre o
conteúdo daquilo que dissemos e ouvimos durante estes dias. Falemos das vezes
que renegamos a urgência do feminismo ou que lhe trocamos o nome com medo que
nos ridicularizassem. Não há nada de ridículo em lutar contra o machismo. O
machismo destrói, oprime, diminui. O machismo mata. Aline Frazão – Angola in “Rede Angola”
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