Quatro
pontos sobre os desastrados encontros entre a África e a Europa (da escravatura
transatlântica ao neocolonialismo actual)
Ponto 1
A primeira situação
desastrosa no encontro entre a África e a Europa não aconteceu, como se diz
muitas vezes, com a simples chegada de europeus à África, graças,
especialmente, à superioridade dos seus meios náuticos e das armas de fogo.
Nestes primeiros contactos houve até momentos bastante positivos como aqueles
que tiveram lugar numa parte do que é hoje uma parte do território angolano,
como a modernização e cristianização progressivas do Reino do Congo.
A sucessão de desastres
começou quando muitas das elites africanas puseram-se a comparticipar no
negócio da escravatura transatlântica, contribuindo para a construção do
chamado “novo mundo” (Américas) e para o enriquecimento desmedido do Ocidente,
à custa da perda dos seus mais activos “braços”. Mas essas elites do passado,
merecem, naturalmente, um julgamento mais benévolo da nossa parte, visto que
não tinham a preparação adequada para defrontar uma elite europeia já
introduzida numa modernidade desprovida de qualquer humanismo, apesar de o
disfarçar nas vestes do chamado “fardo do homem branco”, o de ter que
“civilizar” o “ homem negro”.
Ponto 2
Enfraquecida a África com o
negócio do tráfico negreiro, o enriquecido Ocidente dispensa-o, com a
resistência até de algumas elites políticas e comerciais africanas, porque o
desenvolvimento dos novos engenhos de produção do que necessitava era de fontes
de matérias-primas e de novos mercados. Chegou a Conferência de Berlim de
1884-5 em que os líderes europeus de então, sem qualquer consulta às
autoridades africanas (para quê, se eram elas mesmo objecto da tomada violenta
do seu poder político?!) decidem que o Continente devia ser retalhado, entre
si, sem atender à distribuição territorial das suas diversas comunidades. Este
constituiu, sem dúvidas, o pior incidente para o Continente, mãe de todas as
desgraças ulteriores.
Ponto 3
A independência das
colónias, algumas décadas apenas, depois do retalho e ocupação política do
Continente pela Europa ocidental, foi já conduzida por elites suficientemente
preparadas para encarar com objectividade as novas realidades que se
constituíram nessas colónias: já não eram puramente antigas comunidades
políticas pré-coloniais, devendo contar com todos os resultados decorrentes do
encontro entre os dois continentes, como a mestiçagem e multiculturalidade, nem
eram uma massa totalmente “ocidentalizada”, em que os fortes lastros da África
tradicional devessem ser considerados sinais de atraso, tal como alegaram,
especialmente os “colonialistas” do Século XIX. Esta reflexão não foi feita
pelos “pais das independências” que até se precipitaram (alguns) em tentar
montar de imediato um monstruoso “governo federal africano”, quando os Estados
apressadamente herdados das ditaduras coloniais mal estavam montados para
satisfazer os anseios de todas as proto-nações neles autoritária e
caprichosamente amalgamadas. Também, no meu ponto de vista, até porque é uma
geração praticamente em última fase de extinção, tem que merecer o seu desconto
na atribuição de culpas, nas condições em que realizaram uma obra histórica de
grande dimensão, na sequência da prepotência colonial, sobre os povos de
África. Pelo contrário, há que destacar mesmo a moderação de alguns destes
“freedom fighters”, como Senghor, Nyerere e Kaunda que deixando voluntariamente
o poder, quando se tornou oportuno, porque as circunstâncias históricas o exigiam,
os países que fundaram seguem os seus passos sem as habituais soluções de
ruptura, materializadas geralmente em golpes de Estado ou insurreições
violentas de diversa natureza. Não falarei aqui de Nelson Mandela, que apesar
de pertencer a essa mesma geração de líderes políticos teve o seu momento áureo
de actuação, em circunstâncias históricas e locais muito particulares, mesmo no
âmbito da chamada “Africa Negra”.
Ponto 4
A miséria da política na
África Negra é aquela que hoje, em pleno Século XXI e mais de 50 anos depois
das primeiras independências, se pratica em diversos países do Continente, que
consiste no que só consigo definir com precisão com uma palavra da língua
Umbundu: Okulimpundila (disputa despudorada por produtos, especialmente comida,
“antes que fiquemos com a barriga vazia perante outros potenciais esfomeados ou
apenas glutões de desmedida voracidade). Na verdade é isso a “política do
ventre” de que nos fala o estudioso Jean-Francois Bayard, a partir de uma
expressão recolhida nos Camarões. Mas o que é mais miserável é que não são os
famintos (como as mães zungueiras e aos jovens vendedores no meio das estradas
da rica Angola, a quem não se apresenta nenhuma alternativa) que se empenham
neste okulipundila. Estes pelo contrário, até de seus pequenos negócios são
afastados para deixarem as baixas e altas das cidades limpas, como a Europa
milenar, onde residem os aliados desses “políticos do ventre” africanos. Os
verdadeiros “okulipundilantes” são esses senhores, que com o poder político tomado,
não importa como, colocaram o cerco a tudo o que poderia ser saudavelmente
disputado, contribuindo para o desenvolvimento dos respectivos países e da
África em geral, que não descola da sua posição na retaguarda do mundo. E ficam
nisso 15, 20, 30 e mais anos até passarem o poder e riquezas nacionais de que
são exclusivos detentores aos seus filhos, quando não são corridos, de barrigas
a rebentar de fartura, por povos cansados de os aturar. E assim assistimos a
mais uma lição que “ barrigudos”, que só sabem partilhar a riqueza nacional e
africana com aqueles a quem fingem chamar de estrangeiros, mas que rapidamente
naturalizam, se for necessário, não vão apreender. Assim funciona o
neocolonialismo africano dos dias de hoje, na sua cegueira. Quando começarem as
desordens no Burkina Faso (como quase sempre acontece na sucessão de regimes
que ao invés de cultivar a normalidade da passagem dos poderes, limitam o seu
tempo a acumular riqueza para a sua elite e a intimidar as respectivas
sociedades máxime os potenciais adversários políticos), sobrantes líderes
autoritários e acumuladores de riqueza para os seus, receberão ainda mais
créditos como grandes guardiães da estabilidade. E assim se iniciará mais um
ciclo nos sistemas neocoloniais africanos. Até que “primaveras negras” em
catadupa, recordem um dia às Organizações Internacionais (ONU e UA) que a sua
tarefa tem de deixar de ser bajular líderes políticos que privatizam a riqueza
e o poder, para partilhá-los com parceiros neocoloniais ocidentais (ficam de
fora os chineses que nunca iludiram os africanos com a formalidades de eleições
democráticas de faixada, elaboração de constituições que não se cumprem quando
incomodam quem está no poder; aparecem para negociar com quem domina o poder de
Estado e não enganam ninguém). Nessa altura a própria União Europeia recordará,
provavelmente, o apelo de Monet e Schumann de que a “construção europeia” devia
ser aproveitada para reparar o que correra mal entre os encontros entre a
Europa e a África; apelo que por outras palavras é hoje repetido por Habermas,
um dos mais proeminentes filósofos alemães da actualidade.
Até lá os povos africanos
terão que criar consciência de que a riqueza e o poder político lhes pertence e
os políticos no poder apenas são seus administradores, o que implica a perda do
medo que não dispensa a cultura da tolerância; tarefas de gigantes, quando
regimes com o de Angola, empenham tudo na disseminação discreta do medo, do
culto à personalidade e da intolerância, com a máquina securitária, a partidarização
do Estado e o controlo absoluto da comunicação social, sem qualquer vergonha em
não se diferenciarem do sistema repressivo colonial, de tal maneira que algumas
pessoas, especialmente nascidas e ou crescidas depois da independência estão
impossibilitadas de imaginar, sequer, que possa haver um regime em que governar
não seja uma forma de:
1.Ter poder para retirar do Estado “tudo o que necessitarmos para enriquecermos sem sermos incomodado por ninguém”.
2.Ter poder para transformar suspeitos de
lavagem de dinheiros em grandes figuras nacionais, “desde que que estejam do
nosso lado”.
3.Empobrecer o resto da sociedade
(preferindo os parceiros estrangeiros) “para nos eternizarmos no poder”, por
gerações e gerações.
4.Ter poder para despejar dinheiro do Estado
privatizado, onde quer seja necessário, para “meter pão na boca” de vozes
incómodas mas esfomeadas ou apenas sedentas de encher no máximo as barrigas”;
vozes que logo se calam, por uma questão de “sabedoria política”, não fossem
deixar apertar as paredes do estômago, uma contra a outra, no meio de tanta
podridão.
Por essa “sabedoria
política” em que alguns jovens acreditam, nem se deve falar nessas questões,
como o fazem os pacíficos “jovens revolucionários” de Angola, se queremos triunfar
na vida, ou quando já estamos velhos e devemos “aproveitar” os últimos momentos
da vida, sobre toda essa podridão, sobre a qual poisamos lustrosos mas
ilusórios tapetes em afundamento, sem qualquer honra nem glória.
Samakuva, o líder actual do
maior partido da oposição, ouvi-o, há dias, a colocar a questão na direcção
certa: preciso é discutir, fora das formalidades eleitorais e outras, o
conteúdo das relações ente Angola e Portugal que sirvam os interesses de
Estados e Povos, deixando para traz as actuais, que se fundam na constituição
de consórcios familiares, entre filhos de passageiros governantes portugueses e
filhos de eternos governantes angolanos, como referem vários meios de
comunicação social, cada vez mais desinteressados em investigar tais
imoralidades (para quê, se em relação a isso não funciona, nem em Portugal, o
princípio da independência do poder judicial?). Mas logo se ouvirá dizer (à boa
maneira leninista-nacionalista) que o homem devia falar dessas coisas em casa,
como se em Angola houvesse algum lugar onde essas questões possam ser debatidas
com algum impacto político, com todos os meios de comunicação controlados. E
dirão também que a UNITA não tem moral para se pronunciar assim, porque foi
“perdoada” pelo “arquitecto da paz”; como se a “reconciliação nacional” só
operasse num sentido e a UNITA fosse hoje menos partido que o partido no poder.
E por fim, este texto será catalogado mais uma vez como o produto de um
“frustrado” que pertenceu ao partido único, como se não tivesse havido um
consenso nacional para acabar com este tipo de regime, depois da queda do Muro
de Berlim, já há tantos anos, e como se não soubéssemos todos que estamos
perante um sistema de “homem único”, que se constrói, especialmente desde a
morte do Dr Jonas Savimbi, em 2002, perante a estupecfacção de muitos de nós,
que esperam coisa bem diferente. E como se no regime de partido único, ou mesmo
durante o colonialismo, com todas as atrocidades do tipo político, houvesse
alguma vez tanta imoralidade exibida ostensivamente.
Espanta-me que analistas
vejam no caso da fuga de Campaoré, apenas a componente da luta pelo poder entre
a oposição e a situação, quando nele se visualiza, mais uma vez, a falta de
vergonha de líderes africanos, que depois de tantos anos após o desaparecimento
de gigantes como Nkrumah, Keita, Lumumba, Azinkiwe (com as suas virtudes e
erros de avaliação) nada acrescentam de novo à liderança africana. E ficam
todos mortos de contentes quando são referidos como factores de estabilidade
para interesses de estrangeiros, sem qualquer proveito para a melhoria
organizativa de seus Estados e para a melhor coordenação dos recursos
continentais a favor dos povos de toda a África. E mortos de contentes, quando
depois de tantos anos de poder, se diz que não há quem os possa substituir, nem
mesmo no seio dos seus partidos, o que na verdade, devia ser motivo de profunda
vergonha.
É uma questão de formação
humana, de sentido de missão que deve distinguir líderes de seres humanos de,
acordo com o seu tempo, de líderes exclusivos das suas apetências “estomacais”.
Pondo constantemente os seus países em perigo durante ou depois da sua passagem
puramente material pela terra. Marcolino
Moco- Angola in “Moco Produções”
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